Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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A.A.Bispo e Roberto Schnorrenberg 1980


Collegium Musicum de S. Paulo


Collegium Musicum de S. Paulo












Hamburg 1974. Foto: A.A.Bispo©.



Hamburg 1974. Fotos: A.A.Bispo.
No texto: S.Paulo 1980
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 147/2 (2014:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa de Pós-Graduados
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3057





Musicólogos que não sabem música? Regentes musicólogos?
Relações entre música prática, pesquisa e vida musical de universidades
Collegium Musicum de S. Paulo e Hamburgo em 1974

Relembradas pelos 30 anos de falecimento de Roberto Schnorrenberg em 2013 (1929-1983)


Débito e Crédito - 1974-2014. Época de balanços e reajustes.
Revendo inícios de interações euro-brasileiras na procura de esclarecimentos em situações complexas de heranças culturais

 


Hamburg 1974. Foto: A.A.Bispo©.
A atual necessidade de reconsiderações de atividades iniciadas na Alemanha em 1974 - e que determinaram desenvolvimentos dos estudos euro-brasileiros das décadas seguintes - pode ser exemplificada a partir de uma situação por muitos lados sentida como insatisfatória do presente e sempre comentada em encontros com estudantes e pesquisadores: a existência de professores e estudantes de Musicologia - em particular de Etnomusicologia - que não sabem música, não dominam nenhum instrumento ou cantam.


A prática músical de alguns deles limitou-se a esferas rudimentares da infância e juventude ou á participação como guitarristas ou executantes de outros instrumentos de ouvido ou por cifras em conjuntos de música popular ou rock.


Estrangeiros que procuram essas instituições para estudos, especializações ou doutoramentos, que venceram muitas dificuldades para seguir estudos em grandes centros musicológicos do Exterior, em grande parte com sólida formação musical em escolas superiores em seus países, correm o risco de ser orientados por docentes e assistentes que, apesar de suas posições e auto-consciência possibilitadas pelos seus cargos, apenas dispõem de conhecimentos musicais elementares ou mesmo nulos.


Essa deficiência prático-musical tem consequências na escolha de temas, nas tendências de preferências e simpatia por determinadas correntes e questões musicais, ou seja, traz consequências para a programação de cursos e para a pesquisa. O diletantismo ou mesmo a absoluta insuficiência de preparação instrumental e vocal prejudicam a imagem, a seriedade da disciplina e das instituições.


Insuficiência de preparo musical de musicólogos e a divisão de áreas da Musicologia


Esses problemas agravam-se estudantes e pesquisadores provenientes de regiões não-européias pelas próprias características da divisão de áreas musicológicas institucionalizadas na Alemanha e que compreendem em geral a Musicologia Histórica, a Etnomusicologia e a Sistemática.


Essa divisão, solidificada estruturalmente em cátedras e departamentos, é fundamentalmente marcada por problemas de coerência e lógica quanto à critérios que a define e que misturam de forma complexa objetos ou esferas de estudos, procedimentos metodológicos e áreas geográfico-culturais.


A divisão entre a Musicologia Histórica e a Etnomusicologia não diz assim apenas respeito à questões de métodos, ou seja de pesquisas históricas baseadas em fontes, ou de orientação antes marcada por estudos empíricos a partir do presente, o que já implica em si em complexos relacionamentos para adequadas relações interdisciplinares, mas sim também por uma divisão de competências de cariz geográfico-cultural e que diferencia entre o Europeu e o Extra-Europeu.


No sistema assim institucionalizado, um estudante ou pesquisador proveniente da América Latina ou de outros continentes passa a ser de início dirigido à área da Etnomusicologia ou submetido à orientação de um de seus representantes, uma vez que os especialistas da Musicologia Histórica limitam-se ao Velho Mundo e mesmo definem de forma por vezes surpreendentemente explícita apenas a Europa como área de sua competência.


Desta forma, a aproximação histórica na pesquisa passa a restringir-se ou concentrar-se à Europa, sendo apenas considerada de forma insuficientemente fundamentada na Etnomusicologia, onde fontes históricas são utilizadas antes em introduções, comentários e interpretações sumárias e placativas, não correspondentes em geral ao estado da pesquisa historiográfica respectiva.


Independentemente assim se o latinoamericano teve ou não formação musical superior, até mesmo de excelência, se a sua atenção é voltada antes a um grande compositor, à ópera ou à música instrumental, êle corre o risco de ser enviado de início à orientação de um docente ou assistente que não só não possui qualificação à altura na sua formação como ainda pode considerar depreciativamente a área de interesses e o objeto de pesquisas, marcado por ressentimentos relativamente a expressões européias no mundo extra-europeu, vistas primordialmente á luz negativa do colonialismo e neocolonialismo.


Cria-se, assim, uma situação que surge necessariamente como inadequada, injusta e mesmo indigna para latinoamericanos de alta formação, dirigidos que são em centros que julgavam ser de excelência a orientadores que poderiam encontrar de forma mais qualificada em qualquer conservatório de menor expressão em bairros de cidades de seus países.


Por essa razão, uma recomendação a latinoamericanos para que venham realizar estudos de musicologia na Europa torna-se hoje questionável em muitos casos, e a única recomendação que lhes pode ser feita seria que testassem a formação do seu etnomusicólogo orientador oferecendo-lhe de início algum breve texto musical para ser solfejado ou entoado.


Questões de pressupostos de formação musical para europeus e não-europeus


Essa situação inaceitável do presente em determinados centros de pesquisa não é recente e os seus fundamentos podem ser também ser vistos como decorrência das complexas incoerências resultantes da divisão da musicologia nas suas relações implícitas ou explícitas com a distinção de esferas do Europeu e do Extra-Europeu.


Por décadas discutiu-se a questão se seria justo e adequado exigir-se de um africano ou oriental o conhecimento mais aprofundado da linguagem musical ocidental, o domínio de um instrumento ou o estudo de matérias teóricas tais como Contraponto e Harmonia. Assim como estudantes provenientes de regiões extra-européias podiam ser dispensados do Latim em determinados cursos, também estes pesquisadores poderiam ou deveriam ser liberados de comprovação de formação de tradição ocidental ou de disciplinas complementares instituidas com o escopo de superar insuficiências e que os acompanhariam até os exames intermediários do estudo.


Essa argumentação, sob muitos aspectos plausível, vinha de encontro a intuitos nem sempre explícitos de conquista de maior número de estudantes e pesquisadores extra-europeus, facilitando-lhes os estudos. Passou-se a cogitar se também um futuro etnomusicólogo não poderia dispensar uma formação musical mais aprofundada ou obtida em cursos complementares, perguntando-se se não seria mais adequado que aprendesse um instrumento do contexto cultural pelo qual se interessa.


Dessa forma, em muitos casos em recepção de impulsos norteamericanos, um estudante europeu que mal sabia tocar algum instrumento ocidental podia passar a aprender algum instrumento javanês ou japonês, o que naturalmente jamais ou dificilmente podia vir a corresponder à altura já alcançada no estudo e na execução desses instrumentos no seu contexto próprio, onde se encontram em muitos casos já integrados em currículos de escolas superiores e são cultivados por executantes altamente preparados e de renome.


O diletantismo resultante da insuficiência de pressupostos surge assim como duplo, vigente em diferentes contextos, não podendo ser justificado apenas pelo respeito que obviamente um etnomusicólogo devia manifestar para a cultura a que se dedica, demonstrando um interesse teórico e prático que pode expressar-se no aprendizado de um de seus instrumentos ou na participação observante em execuções, representações, atos festivos e mesmo religiosos.


A perdida função da Transcrição na formação de etnomusicólogos


A última trave que impediu por anos esse desenvolvimento em direção a uma perda de nível e mesmo seriedade em alguns centros da Etnomusicologia foi a prática da Transcrição, acompanhada pela exigência de visita a um curso específico.


As críticas a essa prática de fixação escrita e análise do transcrito - que pressupunha conhecimentos teóricos pelo menos elementares do estudante e pesquisador - foram tematizadas sob diversos aspectos, muitos deles plausíveis. Não só as dificuldades e as insuficiências dos próprios recursos ocidentais de notação musical para o registro de expressões sonoras extra-européias foram tratadas, procurando-se caminhos para superá-las e aperfeiçoar sistemas de sinais, mas sim também a do sentido de registros em notação musical em época marcada pelas facilidades de gravação.


Se a Transcrição pôde ser ainda defendida como veículo, como base visual para análises do pesquisador ocidental, também as discussões relativas a procedimentos analíticos adequados a contextos não-ocidentais relativou o seu significado.


Poder-se-ia dizer que nesse sentido uma função da Transcrição seria antes a de obrigar que o etnomusicólogo europeu possuísse ou adquirisse pressupostos mínimos de formação musical na sua própria cultura. Com a perda de seu significado, suprimiu-se este último obstáculo de acesso à pesquisa a interessados sem pré-condições.


Essa questionável situação do presente representa não apenas uma deformação de decorrências através de décadas, um processo auto-dinâmico de professores sem os necessários pressupostos que passaram compreensívelmente a justificar a não-exigência de formação musical e promoveram discípulos e discípulos de discípulos em situação similar, mas sim também uma decepção de expectativas de desenvolvimento teórico-cultural da Etnomusicologia ou mesmo da musicologia de orientação cultural no seu todo.


Recorrência indevida ao termo Etnomusicologia ou Musicologia cultural


O problema reside aqui na pretensão formulada por etnomusicólogos marcados por insuficiência de pré-requisitos de formação musical de que representam uma Etnomusicologia de orientação cultural.


Jamais, porém, os esforços de décadas de renovação teórica da Etnomusicologia e da Musicologia em geral e que se inseriram em amplo contexto de preocupações teóricas e que exigiam como ponto de partida reflexões fundamentais a respeito da divisão de áreas, de métodos e de superação de concepções de espaços do europeu e do extra-europeu podem ser confundidos com essa pretensão de que justamente pesquisadores e assistentes sem os necessários pressupostos de formação e a serviço de professores também sem conhecimentos à altura de instrumentos ou da linguagem musical ocidental tivessem introduzido essa orientação.


Pelo contrário, a Etnomusicologia ou a Musicologia cultural assim compreendida, é arremessada a um período que se julgava há muito superado de uma musicografia literária de um passado pré-científico, traindo esforços de décadas de muitas personalidades de elevação da Musicologia n seu todo a nível universitário - entre êles Karl Gustav Fellerer (1902-1984 ) -, integrando-a em faculdades de Filosofia e de Ciências Humanas, conquistando com muitos esforços e estrategias o respeito de representantes de outras áreas, posições no sistema acadêmico e a imagem de ciência a ser considerada em seriedade.


É essa posição da disciplina no quadro das ciências que é posto em perigo com o retrocesso a uma Etnomusicologia ou Musicologia cultural mal compreendida.


Problemas já reconhecidos no Brasil há décadas e perspectivas então traçadas


Muitas dessas questões que hoje surgem como de premente atualidade na Alemanha já foram levantadas no Brasil há décadas e que foram discutidas e consideradas a ponto de levar à formação de uma sociedade específica com um Centro de Pesquisas em Musicologia, em 1968.  Esperava-se que esses esforços levassem a cooperações internacionais que permitisssem uma introdução adequada da Musicologia no sistema universitário do Brasil e a um desenvolvimento correspondente em grandes centros da disciplina na Europa.


Uma retrospectiva dos trabalhos iniciados em 1974 na Europa, apoiados pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), e que determinaram os desenvolvimentos dos estudos euro-brasileiros das décadas seguintes, deve sempre partir do amplo complexo de interesses e questões do programa de renovação de perspectivas dos estudos culturais originados no Brasil.


Considerar apenas alguns de seus aspectos, ou aqueles que posteriormente passaram a ser dominantes seria obscurecer e reduzir as dimensões dos desenvolvimentos anteriores decorridos no Brasil e que, hoje, cumpre recordar e, em parte, recuperar.


Os problemas que resultam do complexo incoerente de escopos e métodos de divisão de disciplinas acima considerados e que se encontram à base dos desenvolvimentos deformados da atualidade foram reconhecidos no Brasil em meados de sessenta como resultantes de concepções definidas segundo categorizações do objeto e que apenas poderiam ser solucionados através de um direcionamento das atenções a processos e a estruturas e mecanismos na dinâmica interna do edifício cultural.


Reconheceu-se que somente com esse redirecionamento poder-se-ia superar os problemas de não-consideração de expressões e fenômenos músico-culturais que ficavam entre as pré-determinadas esferas, ao semi-erudito ou semi-popular, ao assim-chamado popularesco e a outros fatos e desenvolvimentos que permaneciam desconsiderados nas divisões convencionais de áreas disciplinares.


Somente essa modificação fundamental de perspectivas poderia superar o problema do uso indevido de interpretações do Folclore em capítulos da História da Música que não podiam basear-se suficientemente em fontes, nem o do emprêgo distorsivo de elucidações e hipóteses de natureza histórica na explicação de origens e de sentidos de expressões do Folclore.


Justamente a menor institucionalização dessa divisão disciplinar no Brasil e os problemas reconhecidos mais facilmente nessas distorções da historiografia musical e do Folclore permitiram assim que se desenvolvesse a visão de um desenvolvimento tanto de uma Musicologia como de uma Ciência da Cultura marcada por uma orientação das atenções a processos e sua análise quanto à estruturas e mecanismos intrínsecos e, a seguir, de edifícios culturais nas suas expressões em processos históricos.


Renovação de perspectivas disciplinares e vida musical


As preocupações com o desenvolvimento de uma renovação das disciplinas teórico-musicais e da prática através de um redirecionamento das atenções foram sempre impregnadas do ideal de desenvolvimento de uma musicologia de orientação cultural adequada e que não podia ser compreendida como simples transplantação de modêlos europeus ou norte-americanos ao Brasil.


A atenção assim dirigida a processos significa uma maior valorização do dinâmico e transformatório, de mudanças, fluxos, correntes e difusões de repertórios, práticas e concepções e, a seguir, dos mecanismos e características estruturais que as explicam. Em consequência, interesses teóricos relacionaram-se mais estreitamente com a prática, com a renovação de repertórios, com o descobrimento e propagação de novas obras e tentativas de novas formas de apresentação para a conquista de novos públicos.


A própria concepção teórica condiciona assim a um relacionamento mais estreito entre teoria e praxis, aqueles que tinham primordialmente interesse de pesquisa ou de alcance de conhecimentos necessitavam possuir obviamente os pressupostos de formação indispensáveis para a consideração adequada da prática como observador participante, os protagonistas da vida musical, não só formação geral adequada como interesse à pesquisa na sua área de atuação.


Nesse sentido, ao lado da música contemporânea, de obras desconhecidas do passado colonial, do século XIX e mesmo do XX,  a música antiga foi alvo de particular  e atenção. Os círculos que se dedicavam à música antiga diferenciavam-se porém entre si quanto às origens, tradições, épocas de surgimento, modos de execução e públicos visados.


Instrumentistas, cantores e regentes confrontavam-se naturalmente com questões de natureza musicológica, pois tratava-se de levantar e importar repertórios e instrumentos, de estudo de literatura, de tratados sobre execução histórica, de interpretação e ornamentação. Poder-se-ia distinguir retrospectivamente círculos com diferentes conotações culturais, sociais e mesmo de idade que cultivavam o repertório mais antigo sob diversas correntes de concepções e pêsos.


Roberto Schnorrenberg, o Collegium Musicum e o programa a ser desenvolvido


Hamburg 1974. Foto: A.A.Bispo©.
Se uma entidade como a Sociedade Bach de São Paulo prendia-se ao movimento Bach e a uma tradição complexa que levava aos grandes nomes do descobrimento e da pesquisa de Bach e de sua época nos séculos XIX e XX, procurando manter uma visão da música e da formação cultural do homem marcada por ideais e valores que se diferenciavam daqueles da vida de concertos e na música de consumo, acentuando formas de expressão marcadas por introspecção e sobriedade, uma entidade como o Collegium Musicum de São Paulo dedicava-se sobretudo às grandes obras da Polifonia Vocal da Idade Média e dos séculos que se seguiram, o que exigia o conhecimento e o estudo de edições e da literatura especializada internacional.


Regente do Collegium Musicum desde 1965 era Roberto Schnorrenberg, personalidade que se salientava não apenas através de suas intensas atividades de regência como também como professor e organizador de seminários e cursos internacionais e pela sua vasta erudição musical.


Embora tendo realizado estudos no Mozarteum de Salzburg, vinculava-se a uma outra época dessa instituição e a outras correntes do que aquelas a que remontavam os mentores da Sociedade Bach, em particular Martin Braunwieser (1901-1991).


Os seus elos com a Alemanha eram estreitos, uma vez que tinha estudado em Detmold, assim como de círculos teuto-brasileiros, o que se manifestou no fato de assumir a direção da Escola Superior de Música de Blumenau.


Como raras personalidades no Brasil, Roberto Schnorrenberg recebia e estudava periódicos musicológicos de sociedades européias e norte-americanas, mantendo-se informado a respeito de novas publicações de partituras e de estudos histórico-musicais.


Como exemplo de concertos fundamentados em estudos e pesquisas do Collegium Musicum pode-se citar aquele realizado no Auditorio Itália, em 1971, sob o patrocínio da Sociedade Pró-Musica Sacra de São Paulo. Esta entidade, então de recente criação, passou a dedicar-se à divulgação da música, em particular da  música sacra vocal, coral e instrumental.


Como professor de regência e composição da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo (IMSP) em sucessão a Martin Braunwieser a partir de 1970, participou dos debates e das iniciativas prático-musicais relacionados com a Etnomusicologia e a História da Música de orientação segundo processos culturais preconizada pela sociedade fundada em 1968 com o seu Centro de Pesquisas em Musicologia.


Acompanhou de perto a fundação do Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista para a execução adequada culturalmente de obras levantadas segundo os critérios preconizados de autores esquecidos ou silenciados, em particular do século XIX.


Sobretudo participou dessas discussões relativas a uma atualização de concepções como professor de cursos de especialização em História da Música a nível de pós graduação. Em 1974, o Collegium Musicum passou a ter os seus ensaios na Faculdade de Música do IMSP.


Nessa posição, contribuiu fundamentalmente à elaboração do programa de trabalhos que deveria vir a ser realizado na Europa e que tinha como escopo a intensificação de interações internacionais no sentido de desenvolvimento das concepções musicológicas segundo as tendências e perspectivas originadas e discutidas no Brasil.


Como até então disciplinas de cunho musicológico existiam singularmente apenas no âmbito de uma escola superior de música, a faculdade do IMSP, esse programa deveria preparar a institucionalização universitária da Musicologia no Brasil como parte integrante de faculdades de Filosofia e Ciências Humanas segundo os modêlos europeus, ao contrário, assim, de intuitos de determinados regentes e músicos práticos presos antes ao modêlo de uma Escola de Comunicação e Artes em âmbito universitário e que, por  muitos motivos, parecia ser questionável.


O caminho para uma institucionalização da disciplina assim concebida deveria ser preparado e acompanhado - como no caso da experiência histórica européia - pela criação de uma Sociedade Brasileira de Musicologia.


Expectativas de uma institucionalização adequada da Musicologia no Brasil


Tratava-se, nesse sentido, da institucionalização adequada da disciplina como ciência no Brasil, de superação de uma situação determinada pela falta de musicólogos adequadamente formados e portadores de qualificação universitária - uma vez que essa formação não podia ser adquirida no Brasil - e ao mesmo tempo da justa e necessária participação de músicos e regentes de erudição, voltados também á pesquisa, mas sem  comprovações de cursos regularmente completados em institutos de musicologia, ou seja, não-musicólogos no sentido do termo.


Se Renata Braunwieser não pudera ter sido a primeira musicóloga devidamente formada em instituições especializadas da Europa como desejado pela Sociedade Bach, apesar de sua estadia na Áustria com esse objetivo, o programa elaborado com a contribuição do regente do Collegium Musicum procurava novos caminhos para o alcance de mesmos fins: a institucionalização da disciplina como ciência no âmbito das Ciências Humanas e da Filosofia, não de escolas de artes.


A questão da justa e necessária participação de regentes e músicos práticos que, apesar de eruditos e pesquisadores, não possuiam formação específica e títulos nas iniciativas preparatórias e nas estruturas visadas de uma futura Sociedade Brasileira de Musicologia marcou, assim, desde o príncipio o programa a ser desenvolvido.


Tratava-se de conceber uma estrutura na qual regentes ou outras personalidades da vida prático-musical de erudição estivessem representados ao lado de um Conselho de especialistas devidamente formados. Não se tratava aqui de conselheiros de um órgão de presidência não necessáriamente ocupado por especialista devidamente formado - como infelizmente seria por fim introduzido em 1982, com as previstas lamentáveis consequências - mas sim de um Conselho como corpo especializado.


A presidência e aqueles provenientes antes da prática musical não teriam apenas funções representativas, mas, poderiam apontar necessidades e prioridades aos pesquisadores, estabelecendo elos da ciência com a vida musical, impedindo assim que a pesquisa se dirigisse a questões sem maior relevância social.


Esse reconhecimento da dignidade do regente ou do músico prático voltado também a estudos e à pesquisa ao lado do musicólogo propriamente dito refletia-se também na importância vista nos coros e orquestras de universidades, abrangentes de todas as áreas. O estudo da organização dessas estruturas da prática musical universitária, muitas vezes próxima à pesquisa, consistia um dos aspectos do programa de interações a ser desenvolvido na Europa.


Hamburg como primeiro centro musical a ser procurado


Hamburg como um dos principais centros da vida musical que deviam ser procurados no início do programa de contatos e interações a ser desenvolvido.


Em Hamburg residiam e atuavam brasileiros, salientando-se os alunos da pianista Yara Bernette, entre êles Noemia Braga e, em particular, o pianista Marco Almeida:



Hamburg foi apontado explicitamente por regentes brasileiros, tanto a partir da perspectiva da Sociedade Bach de S. Paulo, como daquela do Collegium Musicum de São Paulo.


Do ponto de vista da Sociedade Bach de São Paulo, como salientado por Martin Braunwieser em carta de 1974, tratava-se antes de considerar a história musical de Hamburg como exemplo modelar do grande passado e da nobilidade de uma prática musical fundamentada e refletida.


Lembrando a cultura musical burguesa desenvolvida nas cidades hanseáticas, salientou sobretudo a tradição secular da ópera em Hamburgo, sede da primeira casa de ópera da Alemanha e cidade de Georg Friedrich Händel (1685-1759) nos seus anos de juventude. Lembrou do instrumento de Arp Schnitger da Jakobikirche nas suas relações com a história de J.S.Bach e sua família, em particular de Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) como responsável pela música das grandes igrejas da cidade como sucessor de Georg Philipp Telemann (1681-1767).


Sob a perspectiva do regente do Collegium Musicum de São Paulo, tratava-se sobretudo de considerar Hamburg como local histórico da criação desse tipo de instituição - Collegium Musicum - no passado e de sua tradição no presente.


Jürgen Jürgens (1925-1994) e o interesse por C. Monteverdi (1567-1643) no Brasil


Nesse último sentido, entre as principais personalidades da vida musical de Hamburg procuradas destacou-se a do regente Jürgen Jürgens, Professor e Diretor Musical da Universidade, regente da Camerata Accademica a ela adjunta e do Coro Monteverdi.


O seu nome era conhecido no Brasil sobretudo através do empenho de Roberto Schnorrenberg no estudo e na divulgação da obra de Monteverdi pelo Collegium Musicum de São Paulo. Jürgen Jürgens, ainda que vindo da prática, surgia como um dos mais destacados pesquisadores de música antiga, em particular de Claudio Monteverdi, autor de várias gravações e edições. A sua maior obra editorial, as Vésperas de Santa Maria de Monteverdi, vinha de encontro à maior obra realizada pelo Collegium Musicum de São Paulo sob Klaus-Dieter Wolff (1926 -1974) e Roberto Schnorrenberg.(Veja)


A preparação e a execução do Vespro della beata Vergine não apenas representou um evento de excepcional significado na vida do Collegium Musicum de São Paulo e outros coros, como oportunidade para o estudo de questões relacionadas com o significado da obra, da criação monteverdiana e da prátida de execução histórica que então marcavam as preocupações em meios musicológicos europeus.


Acompanhado pela cantora Irmgard Gwinner (nascida Schumann, 1912-1987), esposa do organista Volker Gwinner (1912-2004) da Escola Superior de Música de Hannover (Veja http://revista.brasil-europa.eu/147/Brasil-em-Hannover_1974.html), os contatos em Hamburg puderam ser realizados e os diálogos desenvolvidos em várias ocasiões no sentido do programa elaborado no Brasil.


No centro das atenções estiveram questões relativas à posição do regente ou do músico prático dedicado à pesquisa no âmbito das estruturas universitárias da Musicologia e do papel do Diretor de Música da Universidade.


Uma das ocasiões para a troca de idéias nesse sentido e projetos para o futuro deu-se após a apresentação de Carmina Burana de Carl Orff (1895-1982) no Centro de Congressos de Hamburg, obra realizada pelo Monteverdi-Chor e pelo Coro e Orquestra da Universidade de Hamburg.



Encontro em Blankenese: regentes e músicos pesquisadores, funções e problemas


Muitas das questões levantadas na década de 70 mantém a sua atualidade no presente. Uma delas - talvez a fundamental - dizia respeito aos pressupostos de formação musical vistos como necessários para a admissão de estudantes nos institutos de musicologia nas diferentes universidades, se baseados em provas, na escolha da música como matéria principal no ciclo secundário ou se complementados durante primeiros semestres de estudos até ao assim-chamado exame-intermediário.

Essa questão era decorrente do reconhecimento que um musicólogo não seria apenas um historiador que terminasse o curso de História em Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, sem os necessarios conhecimentos musicais de base, sem saber realizar mesmo um baixo-contínuo em partituras que encontrava, mas sim que já antes do início dos estudos devesse apresentar pré-requisitos quanto a conhecimentos relativamente avançados e domínio considerável de um instrumento ou de canto. Isso, porém, exigia procedimentos especiais nas respectivas faculdades quanto a critérios de admissão, diferenciando a área de outras das Ciências Humanas.

Para a comparação das diferentes normas seguidas, realizou-se primeiramente um levantamento da situação nas várias universidades. Constatou-se, nessa visão geral, incoerências quanto a critéríos e, sobretudo, que de forma incompreensível, a disciplina não era considerada em toda a sua amplitude nos vários institutos, havendo aqueles que se restringiam p.e. à História ou à Musicologia Comparada, o que significava uma redução inadmissível sob a perspectiva do programa em desenvolvimento, uma vez que iimpossibilitava comparações e equivalências e empedia o redirecionamento teórico-cultural pretendido.

Essas reconhecidas deficiências passaram a ser discutidas em varias ocasiões a partir do encontro de Hamburg. As interações internacionais não deveriam assim levar apenas a preparar uma Sociedade Brasileira de Musicologia e a institucionalização posterior da área no âmbito das Ciências Humanas mas também contribuir a uma renovação da disciplina no seu todo no sentido de sua reorientação teórico-cultural.

Correspondendo às preocupações de Roberto Schnorrenberg, o diálogo com o regente do Collegium Musicum e Professor da Universidade de Hamburg disse respeito fundamentalmente às relações entre a musicologia e a prática, às condições especiais que devem haver quanto à formação de pesquisadores e artistas e, sobretudo, as suas funções, ambas de alto significado, que se interagem e complementam, mas que necessariamente devem ser diferenciadas.

Se por um lado surgia como fato óbvio que estudantes de musicologia trouxessem do secundário pré-formação musical, passível de complementação mas que não poderia ser prosseguida quanto a domínio prático de forma intensiva já por razões de tempo, o futuro executante, regente ou compositor deveria poder contar com disciplinas suplementares de cunho musicológico para uma ação fundamentada, estas porém, teriam um direcionamento especial, mais dirigido à atividade prática.

Elas não deveriam e poderiam transformar-se em sobrecarga que roubasse tempo e forças que deveriam ser destinadas ao exercício técnico, à formação interpretativa ou ao processo criador. Esse problema já tinha sido observado no excesso de matérias teóricas em cursos superiores de música na Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo segundo as reformas curriculares no início da decada de 70. Similar desenvolvimento podia-se observar em outras instituições de ensino, em particular em conservatórios que passavam a ter cursos superiores.

Coadnuar a dedicação integral que se exige de um pesquisador que passa horas em arquivos e bibliotecas com a dedicação também integral que se exige de um instrumentista, cantor, compositor e regente é praticamente impossível, exigindo-se aqui diferenciações relativamente a especializações. Assim como é inadmissível que um musicólogo não possua pressupostos básicos de pré-formação musical, também deveria ser inadmissível que músicos práticos e regentes, para além de todo o interesse por uma atividade fundamentada se apresentem como musicólogos.

Essa distinção vinha de encontro com o observado na prática de titulações, onde, na Alemanha, um Dr.phil diferenciava-se de um Dr.mus. - ou seja, aquele obtido através de realização prática ca acompanhada por alguma explanação - e que, em jôgo de palavras, era até mesmo designado de forma depreciativa como "Dr. geléia" ou "Dr. compota" (alemão: Dr.mus).

A necessidade de uma distinção quanto à formação e funções resultava também de aspectos humanos, de personalidade, de diferentes objetivos de vida e de auto-realização e expressão. A introspecção necessária a estudos antes teóricos ou filosóficos ou até mesmo a introversão de muitos que se dedicam uma trabalho de arquivo ou às características pessoais que possibilitam tomar a si as dificuldades e as aventuras de pesquisas de campo dificilmente se coadunam com a extroversão, a formação à performance em publico e em palco de artistas e regentes, ao desejo de se colocar à luz e ganhar aplausos.

Se um musicólogo, depois de vários anos sem praticar o seu instrumento com intensidade apresentar-se em público, torna-se evidente o seu despreparo. Para um artista ou regente, porém, que se pronuncia de modo aliciante sobre temas musicologicos, a deficiência é muito mais dificil de ser constatada, pois é encoberta pela forma de comunicação, escolha de temas, retórica, auto-consciência próprria de personalidade de artista e gestos.

Essas atividades têm, porém consequências negativas, pois dirige antes a atenção a fatos e dados apresentados de forma a despertar a atenção, por vezes a sensação, encobrindo processos de alcance de conhecimentos, a problemática mais profunda da pesquisa, as suas dificuldades e, sobretudo, a sua história e desenvolvimento. Aqueles que assim procedem - também alguns musicólogos - ornamentam-se com o trabalho alheio, roubam-lhes injustamente os méritos, uma vez que tendem a apresentar fatos e desenvolvimentos sem a necessária consideração do processo de produção de saber, dos caminhos percorridos, das idéias e reconhecimentos de contextos resultantes de muitas leituras e reflexões.

Como salientado nos diálogos, de forma alguma, porém, poder-se-ia dispensar o artista ou o regente com interesse pela pesquisa e erudição no trabalho em conjunto com musicólogos devidamente formados na área de Ciências Humanas, sobretudo numa fase intermediária que deveria levar à formação de uma Sociedade Brasileira de Musicologia, acompanhada de um processo renovador internacional. Tratava-se, antes de conceber uma estrutura adequada e justa de trabalho conjunto e de interações produtivas.


Preocupação de estudantes brasileiros de música por uma formação fundamentada

Como exemplo da seriedade com que músicos brasileiros procuravam na época formação fundamentada na Alemanha pode-se citar carta de Francisco Jose Colares de Paula, de Maranguape, Ceará, de 15 de julho de 1977. Tendo recebido bolsa para piano do DAAD na Escola Superior de Música e Artes Plásticas de Hamburg, escrevia solicitando dados a respeito de matérias complementares que gostaria de frequentar ao lado do seu estudo pianístico, no caso de musicalização infantil.


Balanço dos desenvolvimentos promissoramente iniciados

Por diferentes razões, assim, apesar de iniciativas e empreendimentos de sucesso, desvios, obstáculos e fraquezas humanas não possibilitaram um desenvolvimento satisfatório no sentido dos trabalhos tão promissoramente iniciados.

Considerando esse início das interações, marcado por seriedade nos intentos de institucionalização adequada da Musicologia como ciência e do reconhecimento da dignidade da prática musical fundamentada em estudos e pesquisas, surge como inconcebível a situação atual na qual estrangeiros correm o risco em algumas instituições da Europa de serem orientados por docentes e assistentes que não possuem os pressupostos de formação musical.



Matéria preparada por colaboradores do ISMPS
orientada e traduzida de forma reelaborada por
Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Musicólogos que não sabem música? Regentes musicólogos? Relações entre música prática, pesquisa e vida musical de universidades: Collegium Musicum de S. Paulo e Hamburgo em 1974".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 147/2 (2014:1). http://revista.brasil-europa.eu/147/Brasil-em-Hamburg_1974.html