Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Coburg 1976. Foto: A.A.Bispo ©








Coburg 1976. Foto: A.A.Bispo ©















Coburg 1976. Monumento ao rei Alberto: Bayreuth

Fotos: A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 147/10 (2014:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3065





Um Dia na Fortaleza de Coburg
do "mestre-capela imperial brasileiro" Adolf Maersch
autor de
Marília de Itamaracá ou a Donzela da Mangueira

Lord e Cantor: Ernst II (1818-1893) em paralelos com Pedro II





Débito e Crédito - 1974-2014. Época de balanços e reajustes.
Revendo inícios de interações euro-brasileiras na procura de esclarecimentos em situações complexas de heranças culturais


 
A passagem dos 200 anos de nascimento de Richard Wagner (1813-1883), em 2013, deu ensejo a recapitulações de desenvolvimentos das últimas décadas nos estudos eurobrasileiros relacionados com o compositor, a sua obra, o seu pensamento, as suas repercussões e consequências. (Veja)


Longe de tratar-se apenas de rememorações de experiências, pesquisas e iniciativas, o ano trouxe de forma renovada à consciência questões que, tratadas no decorrer desses anos, mantém sob muitos aspectos a sua atualidade no presente.


Principal marco desses trabalhos foi a participação brasileira no Centenário dos Festivais de Bayreuth, em 1976, através do editor, evento de extraordinária importância na história dos estudos e da vida musical relacionados com o compositor e sua obra.


Os motivos da participação no Centenário e as questões então tratadas apenas podem ser compreendidos a partir de desenvolvimentos precedentes no Brasil.


Foram as preocupações da pesquisa, o direcionamento das atenções e a orientação vindas do Brasil que fizeram com que essa participação surgisse como necessária e mesmo imprescindível.


No decorrer dos trabalhos, as atenções foram dirigidas a contextos político-culturais que, revelando-se de extraordinário significado para o entendimento de relações com o Brasil, levou a uma viagem a Coburg, cidade situada na região montanhosa da floresta da Turíngia, dominada pela fortaleza de Coburg e residência do antigo Ducado de Saxe-Coburgo e Gotha.




Coburg no estudo de desenvolvimentos precedentes aos Festivais de Bayreuth


A visita a Coburg resultou da constatação de que antes de se considerar a Casa dos Festivais, a obra de Wagner com ela relacionada, as suas irradiações e o movimento wagneriano derivado dessa fase já posterior da história da vida do compositor, tornava-se necessário considerar desenvolvimentos antecedentes na decorrência temporal dos acontecimentos.


O risco de considerações anacrônicas da história, o da projeção de desenvolvimentos posteriores no passado mostra-se de forma particularmente grave no caso de Wagner. Vários dos mais questionáveis aspectos do complexo wagneriano relacionam-se com essa projeção de fatos posteriores a anteriores e contribuiem a criar uma situação caracterizada por falta de clareza, ambivalências, dúvidas e mal-estares em mixto de fascínio e repulsa, entusiasmo e aversões.


O mestre-capela de Dresden participante da Revolução de 1848 e o Wagner de épocas tardias surgem com características contrastantes, em parte difíceis de serem compreendidas nas suas implicações político-culturais. A tentativa de evitar-se projeções anacrônicas na análise de processos não significa abandonar a consciência de seus efeitos posteriores e o intuito de se detectar, no desenrolar dos acontecimentos, cernes e agentes motores de desenvolvimentos futuros na sua questionabilidade.


Para estudos de processos culturais relacionados com o Brasil, esse esforço de consideração de decorrências no seu vir-a-ser temporal surge como exigência para análises adequadas de contextos e desenvolvimentos. Os estudos relacionados com Wagner não podem partir dessas fases posterior de apoios de Pedro II a Bayreuth, da recepção de obras de Wagner no Brasil, do uso de elementos da linguagem musical wagneriana por compositores brasileiros e, ainda mais, do movimento wagneriano em comunidades alemãs e na vida cultural em geral.


Êles devem partir de décadas anteriores, mesmo que nelas não se constatem nas fontes, referências explícitas, no Brasil, ao compositor e à sua obra. Essa ausência, explicável em grande parte pelas dificuldades do idioma e da distância quanto a uma vida musical marcada por elos com o mundo latino, não pode levar a uma delimitação de perspectivas que impeça o reconhecimento e a análise de processos históricos nas suas dimensões internacionais.


Riscos de reducionismo na procura de cientificidade através de análise musical


Mesmo que obras de Wagner não tenham sido executadas, mesmo que compositores brasileiros quanto a textos, à música e à compreensão do drama musical não manifestem de forma mais evidente em fase mais remota àquela que a historiografia convencional admite uma influência wagneriana na criação musical no Brasil, esses fatos não devem fundamentar um reducionismo na análise de processos culturais nos quais a música se insere.


Esse reducionismo é em parte resultado da intenção de musicólogos de superação de uma fase pré-científica da disciplina, de procura quase que desesperada de objetividade científica em análises positivas do texto musical, um desejo sempre formulado e esperado sobretudo por brasileiros - e latinoamericanos em geral - que sentem dele necessidade nos seus países e o procuram nos grandes centros europeus.


Essa expectativa de rigor esperada da análise de elementos estilísticos, formais e outros da linguagem musical revela-se, porém, como expressão de cientificismo que apenas oferece uma ilusão de objetividade se não for aprofundada através de uma análise cultural da própria análise do texto musical.


Essa discussão, nascida das preocupações por uma renovação de disciplinas teórico-musicais no Brasil através do direcionamento da atenção a processos e que levou à fundação de sociedade específica e do Centro de Pesquisas em Musicologia, em 1968, foi retomada em encontros em centros alemães, onde constatava-se que esse anelo à objetividade cientificista de extremada expectativa à análise de partituras surgia quase que como síndrome de estudantes do "Terceiro Mundo" segundo o vocabulário da época.


Sob o pano de fundo dessa discussão é que se procedeu a visita a Coburg, orientada que foi pela intenção de ali reconhecer contextos e desenvolvimentos mais amplos que, mesmo antes da assim-chamada "influência wagneriana" nas suas evidências no Brasil, explicassem relações, abrindo novas perspectivas para estudos e interpretações de desenvolvimentos.


Partindo de Adolph Maersch: entre a Alemanha e o Brasil


O olhar dirigido a desenvolvimentos antecedentes tem consequências também para a análise do papel desempenhado pela música e pelo movimento da Ópera Nacional e da no Brasil em suas inscrições em contextos internacionais. Questões referentes à Ópera Nacional foram particularmente atuais no inicio do programa de estudos e interações que, preparado no Brasil, passou a ser desenvolvido na Alemanha a partir de 1974.


Já há anos eram conhecidos graças a Ayres de Andrade informações mais precisas acerca do movimento de criação de teatro lírico no idioma nacional a partir de relatórios do diretor do Teatro Lírico Fluminense a Pedro II. (Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e seu tempo 1808-1865: Uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos, 2 vols., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967, 86 ss.)


Citando relatório de 1852, Ayres de Andrade menciona um alemão como sendo um ótimo poeta e compositor, e que trabalhava em ópera: Adolfo Maersch. Este seria um dos autores que contribuiriam a uma solenidade prevista para o aniversário de D. Pedro II e que representaria o inicio de um desenvolvimento no sentido de criação da ópera nacional.


"Quatro homens se hão alistado para a confecção de um trabalho para o dia 2 de dezembro (...). Um alemão, que me asseveram ser ótimo poeta e compositor de música, trabalha em uma ópera, que me oferecerá´ínstrumentada." (op.cit. II, 86)


A Ayres de Andrade cabe o grande mérito de ter percebido o significado desse músico, salientando que até então a êle não se havia feito a devida justiça. Os dados por êle pioneiramente levantados a partir de fontes brasileiras possibilitaram um primeiro esboço da vida e da atuação de Maersch, músico então também totalmente esquecido na pesquisa histórico-musical alemã, um nome ignorado na sua posição de entre-mundos e de contextos submersos.


Segundo os dados levantados por Ayres de Andrade, Adolf Maersch chegou ao Rio de Janeiro em 1849. Estudara na Academia Real e Filarmônica de Berlim, afirmando ter obtido formação com Franz Liszt (1811-1866). Essas indicações sugerem tanto a sua formação e proximidade à prática vocal de coros masculinos e do cultivo do canto popular de cunho nacional como ao virtuosismo pianistíco.


Esses elos elucidariam os vinculos de Adolf Maersch com a tradição das sociedades de canto Liedertafel e da prática de conjunto de cantores, e que se refletiu no Brasil com o Sängerbund que participou em concertos da época dos anelos de desenvolvimento da Academia de Musica e Ópera Nacional (op.cit.93), uma denominação que dirige a atenção imediatamente a uma determinada fase da história político-cultural alemã e a Coburg.


Já no ano seguinte à sua chegada, Maersch anunciava dar aulas de composição, canto e piano. Afirmando que empregava um método prático novo, por meio do qual até meninos de pouca idade podiam fazer rápidos progressos, indica uma orientação de ensino voltada ao sucesso a ser alcançado em pouco tempo, vindo de encontro à procura de formação musical para filhos de famílias em ascensão. Métodos de ensino, orientação prática e formação de diletantes de círculos burgueses prósperos do Rio de Janeiro relacionam-se nesse anúncio de Maersch de 1850 e indicam paralelos com situações alemãs em época de desenvolvimento de um Bildungsbürgertum. A prática, o sucesso rápido, o progresso da vida comercial no espírito liberal encontrariam aqui a sua correspondência no ensino.


Como Ayres de Andrade indica, já em 1851 Maersch demonstrava interesse por assuntos brasileiros, colocando em música a Canção do Exílio de Gonçalves Dias (1823-1864). A escolha desse texto indica a proximidade de Adolfo Maersch à tendências do assim-chamado Indianismo, ou, mais corretamente, das preocupações pelo desenvolvimento de uma consciência cultural nacional a partir de uma visão de formação de nacionalidade baseada na união do índio - da índia -, do nativo com o europeu.


Essa abertura de Maersch já nos primeiros anos de sua presença no Rio de Janerio a essa corrente romântica brasileira não pode ser interpretada apenas como indício de sua propensão a tendências de moda e seu tino ao sucesso. Ela pressupõe estreitos paralelos com visões culturais que o músico trazia da Alemanha, a interesses que também em determinados meios alemães estavam voltados tanto à valorização daqueles da gerra como ás bases histórico-culturais do povo alemão em época de anelos de união nacional.


Essa orientação, segundo os dados de Ayres de Andrade, atingiu a sua primeira expressão maior em 1854 com a publicação, em versão para piano e canto e piano, de trechos da ópera Marília de Itamaracá ou A Donzela da Mangueira (ed. Salmon & Cia), e que, como salienta o pesquisador, teria sido a primeira manifestação do nacionalismo - ou melhor do nacional - introduzindo-se no teatro lírico, antecedendo de sete anos a ópera A Noite de São João, de Elias Álvares Lobo (1834-1901), considerada como a primeira levada à`cena em língua nacional e assunto brasileiro.


Ayres de Andrade salienta, assim, a necessidade de uma revisão de apreciações históricas, ainda que a obra do compositor paulista, diferentemente daquela de Maersch, tenha sido encenada. (loc.cit. II, 87)


A atualidade de Elias Álvares Lobo e seu redescobrimento em fins da década de 60


O interesse por Elias Álvares Lobo havia sido despertado pela redescoberta e estudo de suas obras pelo editor desta revista a partir da medição de Meninha Lobo em meados dos anos sessenta, pelo levantamento e catalogação de sua obra e execução de algumas de suas composições. Esse trabalho culminou, em 1974, com a execução da Missa de S. Pedro de Alcântara, dedicada a D. Pedro II pelos estudantes e professores da Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo, auxiliados por músicos e cantores de diferentes orquestras e instituições.


Essa execução, acompanhada de estudos pretendeu vir de encontro aos intuitos de uma realização culturalmente adequada, visando a correção de interpretações que desqualificavam obras da tradição coro-orquestral como liturgicamente inadequadas, vistas como expressões de influências operísticas ou profanas na arte sacra.


Procurando-se novos caminhos elucidativos, e dirigindo-se a atenção a processos culturais, considerou-se o fato do compositor, que se dedicaria sobretudo à música sacra, ter alcançado renome como autor da primeira opera em idioma nacional e com assunto nacional, a citada A Noite de São João.


Nesses intentos de procura de novos enfoques, o olhar foi voltado a elementos de coerência entre a obra criada a serviço da ópera nacional, da valorização do idioma nacional, da  apenas aparente contradição de linguagem operística italiana, da dedicatória a D. Pedro II e da música sacra de suposta profanidade mas que expressava uma concepção do Cantor, como manifesta na grande aria do Laudamus para Tenor da Missa de S. Pedro de Alcântara.


O título da ópera do músico alemão - Marília de Itamaracá ou a Donzela da Mangueira, com libretto de De Simoni, surpreende pela sua cariz brasileira ou mesmo por possível distância bem-humorada ou levemento irônica de cunho popular, diferindo do teor grandiloquente de várias produções nacionais e sugerindo elos com correntes do teatro lírico mais ligeiro e sentimental de determinados círculos da Alemanha da época.


A abertura dessa ópera, segundo Ayres de Andrade, foi executada já em 1855 no segundo concerto promovido por Sigismund Thalberg (1812-1871) no Teatro Lírico Fluminense, Rio de Janeiro, sendo a orquestra dirigida por Gioacchino Giannini (1817-1860). Essas indicações surgem como coerentes com a menção de uma formação de Maersch com F. Liszt, com uma tendência sua e de Thalberg ao sucesso rápido e financeiro, assim como à música de ópera italiana.


O método prático empregado por Maersch parece poder explicar ter sido êle nomeado já em 1856 a professor de música do Imperial Instituto de Meninos Cegos. O seu interesse pela canção nacional e pelo seu tratamento em composições virtuosísticas de efeito manifestou-se nas Flores Guanabarenses, terminadas em 1852, onde elaborou as populares modinhas Alta noite tudo dorme, Novos ares, novos climas, Meu coração vivia, Minha Marília não vive, Adorei uma alma impura e Herva mimosa do campo.


O grande empreendimento de Maersch no Rio de Janeiro segundo o levantamento de Ayres de Andrade teria sido o por êle organizado Grande Concerto Vocal e Instrumental de 12 de dezembro de 1857, com participação de seus alunos do Instituto.


Nesse concerto, apresentam-se uma ária da sua ópera Marília de Itamaracá por soprano do Teatro Lírico Fluminense e uma fantasia sobre motivos da ópera para três pianos, executada pelo autor, por Guilherme Weiss, proveniente da classe comercial, assim como Achille Arnaud, todos estrangeiros, apreciados por S. Thalberg e de poucos anos de residência no Brasil.


Nesse sob muitos aspectos relevante empreendimento cultural, Maersch apresentou uma recém-criada Fantasia-Sinfonia com canto, coros e orquestra dedicada ao tema A Confederação dos Tamoios, constituida dos quadros: No mato virgem do Brasil, Alocução de Aimberé aos Tamoios, Sonhar à beira-mar, O Beija-flor e o Sabiá, Melancolia de Iguaçu, Os adeuses de Iguaçu e de Aimbiré.


A escolha do assunto tratado por Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), com a sua formação européia e a sua influência nos círculos imperiais, indicava que Maersch acompanhava os acontecimentos do dia, baseando-se na obra de 1856 do poeta, intelectual e diplomata, incentivado pelo Imperador. Maersch dedicou-se aqui ao assunto da revolta dos indígenas contra os portugueses em 1560. (op.cit. 189-190)


Adolph Maersch nos seus elos com Coburg e com Ernst II


A procura de fontes sôbre a vida e a obra de Adolph Maersch em instituições alemãs para a complementação dos dados levantados por Ayres de Andrade e a sua devida contextualização não se revelou de fácil execução.


Tomou-se conhecimento, nos arquivos alemães, que produziu Lieder, cantos para coros masculinos, obras para piano de cunho brilhante - como uma Grande sonate sinfonique für das Piano-Forte (s/d) e peças teatro cantado ligeiro. Antes de vir ao Brasil dedicara-se ao canto em língua nacional e adjetivação de caráter alemão com os Vier deutsche Lieder (gedichtet und für eine Singstimme mit Begleitung des Piano-Forte, 1845). Já no Brasil, o seu nome continua a estar presente na Alemanha através da edição de peças de salão (Drei Salon-Stücke für das Pianoforte, ed. Lange, 1850).


No ano de sua partida, publicou-se o seu Singspiel em um ato Lord und Sänger (Frankfurt a.M.: Streng und Schneider, 1849), com libretto de Eduard Hartenfels, autor de Lustspiele, cantos e de textos de óperas cômicas (e.o. Die Sennerhütte).


Se o título de Lord und Sänger parece já sugerir uma relação entre Senhor e o Cantor, tema sugestivo para a época da Revolução Liberal, a forma de Singspiel sugere um caminho para a melhor apreciação de sua Marília de Itamaracá, surgida nos próximos anos no Brasil.


O título Lord und Sänger surge como particularmente instigante considerando-se que Maersch, em 1850, compôs uma obra para piano sobre melodias da ópera Zayre do Duque de Saxe-Coburg e Gotha Ernst II, principal vulto aristocrático defensor dos anelos liberais e de união nacional alemã (Mélange sur des thèmes de l'oper Zayre de S.A. le D. de S.-C.-G. arrangé pour le pianoforte, ed. Sinner 1850), personalidade que em si concretizava o ideal de ser Senhor e Cantor.


"Ein Tag auf der Veste Coburg" do "mestre-capela imperial brasileiro" em Leipzig 1863


Notícia publicada no jornal de música da Baixa Renânia (Niederrheinische Musik-Zeitung), na sua edição de 14 de março de 1863, abriu novas perspectivas para os estudos relativos a Adolph Maersch posteriores a seus sucessos no Brasil, sendo já apresentado na Europa como "mestre-capela imperial brasileiro".


A notícia refere-se à realização de uma nova ópera do compositor, em Leipzig, ópera cômica em dois atos de título Die Findlinge oder Ein Tag auf der Veste Coburg (Druck und Comissionsverlag Fischer und Kürsten).


O notícia documenta o insucesso da ópera, o que seria justificável segundo o crítico. Tratar-se-ia de uma obra rudimentar, de iniciante, tanto sob o aspecto musical quanto ao texto, este qualificado como extremamente trivial, ainda que mostrando leves indícios de que a criação de Maersch poderia tornar-se melhor.


Leipzig. Die neue zweiactige Oper „Die Findlinge" oder „EinTag auf der Veste Coburg" von Adolph Maersch (kaiserlich brasilianischem Capellmeister) machte Fiasco, verdiente auch dasselbe, sowohl was Musik, die anfängerisch, wenn auch nicht ohne einige kleine Ansätze zum Besseren, als was Textbuch anlangt, welches höchst trivial ist.


Tudo indica assim, que Maersch, no Brasil, manteve-se afastado de um desenvolvimento que ocorrera na Alemanha, permanecendo ainda fixado no espírito de 1849/1850, do cultivo de um diletantismo justificado pelos anelos liberais e de união nacional centralizados em Coburg, em particular no vulto de Ernst II e que já não mais correspondia à época da encenação de Ein Tag auf der Veste Coburg.


Tratar-se-ia assim de uma crítica injusta à sua obra, uma vez que esta refletia outros anelos, outras concepções do homem, das artes, de outro contexto histórico-polítíco, no qual o diletantismo de uma formação integral do Cantor e da primordialidade da Arte no homem livre surgia com conotações antes positivas.




Ernst II, Duque de Saxe-Coburg e Gotha - vulto da história político-cultural


A viagem a Coburg, em 1976, teve assim como objetivo sobretudo considerar em contexto adequado a personalidade de Ernst II, Duque de Saxe-Coburg e Gotha na história político-cultural da Alemanha sob a perspectiva de suas irradiações no Brasil.


A conjunção de Coburg e Gotha, em união pessoal mas com administrações separadas, havia sido alcançada em 1826 em decorrência de acontecimentos familares. Filho mais velho do Duque de Ernst von Saxe-Coburg-Saalfeld (1784-1894) e de Luise von Saxe-Gotha-Altenburg (1800-1831), esta última herdeira de linha, era irmão do Príncipe Alberto (1819-1861), futuro marido da rainha Vitória. Subiu à soberania do Ducado Duplo de Saxe-Coburg e Gotha em 1844.


Talvez marcado pela vida conjugal complexa de seus pais, Ernst II, diferentemente de seu pai de tendências liberais, conduziu uma vida receptiva às alegrias da vida, da cultura, das artes e dos esportes.


Esta sua condução de vida foi possibilitada pela ampla formação intelectual e artística que recebeu de professores particulares, dominando várias línguas estrangeiras, além de realizar estudos de Alemão, Filosofia, Historia, Geográfia e Ciências Naturais, entre outros também em Bonn, o que nele despertaria o interesse pela História Cultural, por tradições populares e antiguidades, pela museologia e por viagens a países estrangeiros.


A sua formação musical e cultural de Côrte foi adquirida paralelamente à sua formação militar a partir de 1839 no regimento da Guarda Real da Saxônia em Dresden, tornando-se Major General de Cavalaria.


O renome nacional de Ernst II como herói militar na Alemanha foi conquistado em 1849 como comandante na batalha de Eckernförde, vitoriosa para as tropas federadas alemãs contra a Dinamarca. Foi essa vitória, assim, que marcava a imagem de Ernst II à época da vinda de Adolph Maersch ao Brasil.


A compreensão da posição política e político-cultural de Ernst II torna-se difícil sob uma perspectiva que, partindo apenas do Brasil e de concepções posteriores de nacionalismo, não considere a situação alemã.


Ernst II congregou tanto interesses do Liberalismo revolucionário como do nacional entendido como o da união de alemães no seu território. Assim, embora discordando politicamente de Otto von Bismarck (1815-1898), participou ativamente na Guerra Alemã de 1866 ao lado da Prússia e foi um dos grandes vultos da fundação do Império Alemão na Guerra Franco-Prussiana.


Essas relações apenas aparentemente contraditórias de um Nationalliberalismo eram decorrentes de anelos da Revolução de 1848, fracassada na Alemanha dividida em muitos pequenos estados aristocráticos, mas que encontrara em Coburg um defensor e promotor.




Movimento liberal, renovação, união nacional e liberdade associativa


Ernst II, tomando a si os ideais revolucionários, encampando-os logo das reinvidicações do comitê revolucionário de 1848, fêz com que Coburg se transformasse em centro simbólico-cultural de uma política determinada pelos interesses da burguesia liberal em ascensão. Possibilitou assim a concretização de direitos civis apregoados na Assembléia Nacional de Frankfurt, entre outros da liberdade de imprensa, representação popular, defesa civil, direito de posse de propriedades e de associação, garantida esta no Ducado a partir de 1852.


Ao contrário assim de outros territórios alemães, marcados que foram por conturbações e perseguições de atos revolucionários, Coburg tornou-se como uma exceção sob o seu soberano liberal, e a união alemã sob a liderança da Prússia surgia neste contexto como coerente na superação das configurações conservadoras e mesmo reacionárias da pluralidade dos estados aristocráticos.


Essa abertura de Ernst II aos ideais progressistas da época manifestou-se não apenas na adoção da bandeira tricolor, de chapéus com fitas preta-vermelha e dourada, permitindo que a associação nacional alemã (Deutscher Nationalverein) realizasse a sua assembléia nas estalagens da praça do castelo, mas sim também na implantação de improvimentos técnicos, tais como iluminação a gás, abertura de ferrovias e criação de escolas.


Esses desenvolvimentos foram acompanhados esteticamente por uma reforma do castelo-fortaleza no espírito romântico e de seu parque segundo modêlos inspirados no paisagismo inglês. Espírito liberal e de abertura ao progresso uniram-se assim, nessa época, na valorização do nacional na língua e nas expressões culturais e da Natureza na tradição do paisagismo inglês.


São essas relações que permitem compreender características fundamentais de estruturas da prática musical, cultural e esportivas que então se desenvolveram e que se transformariam no decorrer dos tempos. Nelas incluem-se as sociedades alemãs e ligas nascidas em Coburg e Gotha, entre elas a Deutsche Turnerbund, o Deutscher Sängerbund e o Deutscher Schützenbund, estruturas que tiveram a sua irradiação no Brasil, como demonstrado na participação do Sängerbund do Rio de Janeiro na mencionada récita da Academia de Música e Ópera Nacional, marcando também a vida de muitas regiões coloniais.


Ernst II e a música - incentivador, criador, Senhor e Cantor, nobre e esclarecido diletante


Ernst II pode ser considerado como modêlo de uma concepção de vida na qual a música, a poesia, o teatro, as artes e as práticas esportivas em geral surgem como parte integrante das atividades do homem culto, não restringindo-se a sua prática ao exercício profissíonal ou a uma formação mais especializada como instrumentista, cantor, compositor, ator ou poeta.


Pode ser assim visto como o mais prominente representante destacado de um diletantismo musical da época da burguesia liberal manifestado no florescimento da prática da música doméstica, das associações vocais e instrumentais e em composições, um termo não deveria ser compreendido nas suas conotações negativas.


Esse diletantismo foi por êle próprio reconhecido que, na sua autobiografia Aus meinem Leben und aus meiner Zeit, salienta o significado da Arte na sua vida e que desempenho quase que funções de Religião.


Foi um grande colecionador de artes e objetos de valor histórico-cultural, criando um Museu Ducal em Gotha, a partir de 1864. Além de escrever romances, Ernst II dedicou-se à composição, criando obras instrumentais e vocais, canções, hinos, cantatas, duetos e obras para coros masculinos, assim como óperas que foram executadas nos teatros da Côrte de Coburg e Gotha, tais como a citada Zayre, Tony, Diana von Solange e, entre as de maior ressonância, Casilda (1851), e, sobretudo, Santa Chiara, de 1854.


Em algumas de suas composições, talvez as mais ligeiras, Ernst II usou de pseudônimos, como Otto Wernhard para a opereta Der Schuster von Straßburg ou K. v. N. em Alpenrosen. Algumas de suas composições, em particular para coros masculinos, tornaram-se populares, tais como o Hino ao Poder do Canto (Hymne auf die Macht des Gesanges ou o Hino da Tricolor alemã (Die deutsche Trikolore).


Para as obras de maior envergadura, procurou o auxílio de músicos com conhecimentos teórico-musicais mais sólidos do que os seus.  Para a sua ópera Santa Chiara, tentou conseguir o auxílio técnico de Richard Wagner (1813-1883), convidando-o a vir a Coburg.


Já aqui, porém, tornou-se manifesta a diferença quanto às concepções de arte de Ernst II, marcadas pelo entusiasmo diletante, e aquelas de R. Wagner, que as via com certa ironia depreciativa. A orientação segundo a grande ópera e a música italiana, o brilho convencional da atividade criadora diletante, ainda que justificadas pela concepção liberal do homem de iniciativa voltado ao desenvolvimento de suas aptidões, não correspondiam aos intentos de R. Wagner.


Ernst II e o papel da mulher: Charlotte Birch-Pfeiffer (1800-1868)


Ernst II contou com a estreita colaboração de Charlotte Birch-Pfeiffer, um dos nomes mais destacados de escritoras do século XIX, hoje em esquecimento. De grande produtividade, criou grande número de obras teatrais, sendo considerada como a "mãe de peças sentimentais".


Obras suas foram utilizadas como libretti não só por Ernst II como também por compositores como G. Meyerbeer (1791-1864) e F. v. Flotow (1812-1883). Também a grande produção de Charlotte Birch-Pfeiffer inscreve-se em época marcada por intentos de sucesso financeiro da burguesia liberal, da música de sucesso fácil e passageiro, transformada em objeto de comércio, mas que pode perder as suas conotações negativas de trivialidade se consideradas sob uma perspectiva cultural e politico-cultural adequada.



Ernst II e viagens a regiões extra-européias. F. Gerstäcker (1816-1872) e o Brasil


Entre as personalidades que merecem ser particularmente lembradas do círculo de Ernst II salientam-se Friedrich Gerstäcker, escritor renomado pelos seus relatos de viagens e Alfred Brehm (1829-1884), zoólogo, popularizador de temas relacionados com a vida animal.


Estes, juntamente com o desenhista Robert Kretschmer (1818-1872) e outros viajantes, acompanharam-no em viagem que realizou à África, em 1862. Com o apoio de Gustav Freytag (1816-1895) e de outros colaboradores, nem sempre nomeados, publicou as suas experiências no livro altamente representativo e ilustrado com litografias de título  "Viagem do Duque Ernst de Saxe-Coburg-Gotha ao Egito e aos países do Habab, Mensa e Bogos" (Reise des Herzogs Ernst von Sachsen-Coburg-Gotha nach Aegypten und den Ländern der Habab, Mensa und Bogos, Leipzig 1864).


A personalidade mais significativa a ser lembrada nesse contexto é a de Gustav Freytag, o autor de Soll und Haben, o livro por excelência do liberalismo nacional alemão. (Veja)


Como amigo e protegido do Duque, estabeleceu o contato com Friedrich Gerstäcker, admirado por Ernst II pelas suas viagens, sobretudo à América do Norte, mas também à América do Sul, Califórnia, Tahiti e Austrália (1849-1852), passando este a residir no parque do palácio Rosenau a partir de 1854, participando da sociedade político-literária de Ernst II.


Nessa moradia, chamada de Schweizerei, o escritor produziu romances de aventuras e de países distantes, como Die beiden Sträflinge (1856) e Herrn Mahlhubers Reiseabenteuer (1857).


Em 1860, Gerstäcker realizou uma viagem à América do Sul, visitando regiões com colonias alemãs. Publicou os resultados dessa viagem no livro 18 Monate in Südamerika, em três volumes, no qual também adverte aqueles que desejavam emigrar descrevendo as agruras da vida nas colonias.


Nascido em Hamburgo, provinha de família de interesses artísticos, filho de cantor de ópera e atriz, tendo obtido formação em comércio. Desde jovem acalentou intenções de emigrar, pensando sobretudo em transferir-se ao Brasil.


Essas suas intenções românticas relacionavam-se com imagens de vida na natureza, fora de cidades e do ambiente artificial da vida social e cultural, de cultivo do isolamento e de retiro, de caça, de viagens em regiões não conhecidas.


O entusiasmo pelas viagens e seus relatos, pela vida em liberdade de viajantes que determinam os seus próprios rumos que se criou no ambiente de Coburg relaciona-se assim estreitamente com a personalidade de F. Gerstäcker e o seu ideal de emigração ao Brasil, uma visão romântica acompanhada de desilusões e de saudades de retorno.


Foi após este seu livro com relatos de suas experiências no Brasil que realizou-se a viagem de Ernst II à África, inaugurando uma fase de particular florescimento desse tipo de literatura na Alemanha.


Essa literatura de viagens, estas encerradas com uma grande excursão pela América do Norte, México, Caribe e Venezuela, em 1867, popularizou-se sobretudo por artigos mais curtos, em parte escritos durante as viagens, enviados do Exterior e publicados em revistas populares de grande difusão.


(Veja em continuidade)


Matéria preparada por colaboradores do ISMPS
orientada e traduzida de forma reelaborada por
Antonio Alexandre Bispo







Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Um Dia na Fortaleza de Coburg do "mestre-capela imperial brasileiro" Adolf Maersch, autor de Marília de Itamaracá ou a Donzela da Mangueira. Lord e Cantor: Ernst II (1818-1893) em paralelos com Pedro II".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 147/10 (2014:1). http://revista.brasil-europa.eu/147/Coburg-Brasil_Adolf-Maersch_1976.html