Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Lisboa. Fotos: A.A.Bispo, 2012 ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/2 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3073



Uma programática de origem luso-brasileira
em anos de mudanças geo-político-culturais
Jorge Peixinho (1940-1995)
como referencial nas complexas relações Portugal-Alemanha-Brasil

 
©A.A.Bispo


Parece por vezes inacreditável, em visão retrospectiva, que os desenvolvimentos das últimas décadas quanto às interações referentes a Portugal e ao Brasil no âmbito dos estudos culturais, em particular daqueles relativos á música, tivessem tido princípios tão promissores e avançados na segunda metade da década de 60 do século XX.


Considerando os desvios, bloqueios, caminhos questionáveis, retrocessos quanto a idéias, intuitos de estrategias de poder acima de motivos ideais que obscureceram os aspectos altamente positivos que também marcaram as atividades, ganha-se a impressão que em nenhum outro caso torna-se tão necessário como neste das relações científico-culturais entre o Brasil e Portugal um balanço do passado, uma reconscientização de origens com o sentido de dectectar as razões de desvios na expectativa que ainda se possam realizar reajustes. (Veja)


Esses problemas e a necessidade de sua análise não dizem respeito apenas ao Brasil e a Portugal, mas envolvem a Alemanha, a portugueses e brasileiros formados na Alemanha, à ação de alemães em Portugal e que também se estende ao Brasil, e, não por último, instituições eclesiásticas, em particular também aquelas do Catolicismo alemão nas suas relações com Portugal e o Brasil.


Torna-se necessário rever esses caminhos, suas origens e desenvolvimentos, sobretudo também pelo lado do Brasil, pois imagens falsas de desenvolvimentos e fatos criados, julgamentos baseados em gravações, publicações e citações recíprocas em estudos podem levar a julgamento inadequado de caminhos e relações, pessoais e institucionais, idéias, orientações e tendências, levando a que se fortaleça por desconhecimento elos e configurações inadequadas.


O procedimento esclarecedor desse problemático desenvolvimento pode ser apenas ser baseado na exposição e elucidação de contextos pouco conhecidos, dos ideais e intuitos que marcaram os seus inícios e procuraram efetivar-se em iniciativas posteriores apesar de todos os impasses.


Torna-se necessário, assim, trazer à consciência que as interações internacionais de intentos renovadores e dirigidos ao futuro já há muito começaram, que a internacionalização de estudos e da pesquisa hoje tão reconhecida e fomentada não começa do nada, que possui os seus pressupostos baseados em programa conscientemente preparado há décadas, possibilitado pelo apoio de anos de organização alemã de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), universidades e muitas outras instituições. Os sucessos e insucessos não podem ser desconhecidos para que não se repitam os mesmos êrros e se solidifiquem ainda mais as relações desfavoráveis que tanto prejudicaram a efetivação de seus intentos.


Origens luso-brasileiras e o papel de um intelectual e compositor português


A legitimidade para o tratamento de questões tão pertinentes a Portugal mas que foram levantadas no Brasil, de lá originando-se um movimento e mesmo um programa destinado a interações internacionais, fundamenta-se no fato de ter origens luso-brasileiras e portuguesas e terem recebidos os seus impulsos principais através da decisiva co-ação de um músico, criador e intelectual português que como poucos soube incentivar as reflexões e a abertura de visões de jovens brasileiros, em particular daqueles de ascendência portuguesa: Jorge Peixinho.


Aqui residem os fundamentos daquele que seria mais tarde o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa, fundado na Alemanha em 1985 (I.S.M.P.S. e.V.). Também nesse caso vale lembrar que a internacionalização já há muito começou, não apenas na Europa, mas também, e primeiramente, no Brasil, e esta foi relacionada com o confronto que se processou com heranças culturais.


A ação do compositor e intelectual português de encorajar e apoiar a procura de novas perspectivas, esclarecimentos e de tomada de posições conscientemente imbuídas de anelos de alcance de lucidez não disse respeito apenas a problemas estéticos contemporâneos, mas sim também à modificação de interpretações de decorrências internacionais em época marcada pela crise do antigo império colonial português.


Essa mudança de posicionamentos tornava-se premente sobretudo entre pesquisadores e estudantes de formação luso-brasileira, marcados familiarmente por visões do passado explicáves pela história imigratória e pelo cultivo de expressões e modos de vida a serviço da manutenção de laços familiares e comunitários e da afirmação cultural em associações culturais.


Estas eram, em geral, marcadas pelo cultivo de danças, trajes e práticas musicais do folclore de Portugal e suas regiões, fomentados também por párocos e fundamentadas em concepções político-culturais promovidas e difundidas pela propaganda cultural portuguêsa de décadas do Estado Novo.


Problemática da herança cultural luso-brasileira


A crise que passou a abalar de forma crescente o império colonial português nos anos sessenta, que assumia dimensões mundiais, despertava extraordinária atenção e levava a posicionamentos contraditórios na opinião pública, teve necessariamente consequências para desestabilização de certezas não refletidas e de questionamentos sôbre o status quo em círculos luso-brasileiros.


A vinda de retirados e imigrantes de regiões em conflito e de Portugal fortaleciam, com base nas experiências amargas de fugitivos que deixavam bens materiais e heranças culturais por vezes de séculos, a tendência à manutenção de imagens e convicções, do alcançado no decorrer da história, de sínteses celebrativas do alcançado no passado, e favoreciam compreensivelmente posicionamentos conservadores, e até mesmo passadistas e mesmo retrógrados. Para aqueles que atentavam a mudanças da opinião pública e sobretudo para jovens que vivenciavam posicionamentos críticos em meios estudantís fazia-se sentir um desconforto que, ainda difícil de ser expresso e justificado, levava a uma sensação da irreversabilidade das decorrências.


Concomitantemente, passou-se a questionar a herança luso-brasileira recebida, tomando-se consciência em muitos casos que esta fora produto de contextos político-culturais de décadas passadas e sobretudo da propaganda cultural.


Estas, atingindo famílias que procuravam manter elos com conterrâneos através de décadas, fizeram-nas esquecer até mesmo de razões que haviam levado à emigração de seus antepassados e que em muitos casos não foram movidas por intuitos que podiam ser vistos como conservadores, voltados ao passado, retrógrados ou reacionários, mas, pelo contrário, que tinham sido abertos a novas tendências, correntes do pensamento, mesmo aquelas não-ortodoxas do ponto de vista católico.


Essa situação mental, compreensível pela própria ousadia de emigrantes em procurar futuro em novo mundo, modificou-se sob as condições da vida da imigração, pela instabilidade e pelo desejo de auto-afirmação, reconhecimento e integração na nova sociedade, sendo sustentada pelo ideário dos anos 30 e 40 e pela literatura de propaganda cultural.


O confronto com a carga politico-cultural representada pela herança do passado favorecia a procura de esclarecimentos, a inquirição de memórias familiares e intuitos de superação de situações e perspectivas que passavam cada vez mais a mostrar-se ultrapassadas.


Importante papel nesse questionamento de problemas relativos á herança cultural desempenhou, em São Paulo, o regente, agente cultural, professor e pesquisador de disciplinas culturais Edgard Arantes Franco. Atuando em comunidades e irmandades portuguesas e luso-brasileiras como mestre de coros e orquestras, conhecedor de tradições, formas de expressão e repertórios, ao mesmo tempo, como professor de Canto Coral na tradição orfeônica e Folclore e Etnografia em conservatórios, experimentou de forma particularmente sensível tensões existentes e desejos de mudança.


A orientação nacionalista brasileira do repertório orfêonico e do Folclore de um lado, o cultivo de expressões tradicionalistas no sentido da propaganda cultural lusa de outro, somados à  difusão e mesmo pressão de movimentos restauradores na música sacra no espírito do Motu Proprio de Pio X (1903) em igrejas frequentadas por portugueses e que sufocavam práticas e repertórios sacro-musicais mais antigos e próprios das comunidades, levou-o a reconhecer contradições e problemas relativos a concepções de Folclore, a sua pesquisa, o seu ensino, e também à prática do canto coral.


As questões assim levantadas possuiam dimensões de natureza histórica, uma vez que eram sempre acompanhadas por elucidações quanto a origens e integradas em interpretações de desenvolvimentos históricos que teriam levado à configuração de expressões culturais, danças e sobretudo música em linguagem nacional. O tratamento desses problemas a partir da literatura histórico-musical não levava a soluções, uma vez que esta, também orientada em grande parte por interpretações nacionalistas da História, recorria redundantemente a explicações do Folclore.


Essas preocupações, compartilhadas por historiadores da música e estudantes prestes a encerrar a sua formação, levaram á convicção da necessidade de renovação de perspectivas disciplinares. Não a definição de áreas segundo compartimentos da cultura categorizadas segundo determinados critérios valorativos, mas sim uma orientação a processos e processualidades passou a ser preconizada.


Somente assim poder-se-ia também considerar adequadamente fatos, expressões e desenvolvimentos de "entre-esferas", mudanças, transformações e, sobretudo, novas tendências da música popular fomentadas pelos meios de comunicação e que, em grande parte marcadas pela recepção de impulsos da cultura popular do mundo de língua inglêsa, levava à tão combatida "americanização" nos conservadores círculos luso-brasileiros.


Jorge Peixinho e Nova Difusão




Foi no decorrer desse movimento de confronto com a herança cultural e de procura de soluções para os problemas constatados em disciplinas culturais, e que levaria à constituição de uma sociedade destinada explicitamente à renovação de perspectivas e de práticas culturais, em 1968 (Nova Difusão), que deu-se o encontro decisivo com Jorge Peixinho.


Apesar de estar ainda nos seus vinte anos, Jorge Peixinho trazia ao Brasil larga e diferenciada formação e experiência internacional, obtida em Portugal, na Itália, na Alemanha e na Suíça, já sendo reconhecido como um dos mais destacados representantes de tendências avançadas da música contemporânea.


Tendo estudado no Conservatório Nacional de Lisboa e posteriormente com Boris Porena (1927-) e Goffredo Petrassi (1904-2003) na Accademia di Santa Cecília em Roma, onde formou-se em 1961, Jorge Peixinho trouxe ao Brasil também impulsos e técnicas que recebera de Luigi Nono (1924-1990) em Veneza, Pierre Boulez (1925-) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007) em Darmstadt. Possuia assim contatos com o mundo musical da criação contemporânea avançada da Itália e da Alemanha.


Embora mantendo elos com outros centros da criação artística e participando em outros festivais da Argentina e do Brasil, a sua ação mais intensa deu-se como professor de composição nos Cursos Internacionais do Paraná e Festivais de Música de Curitiba em fins da década de sessenta.

Jorge Peixinho utilizava-se nas suas aulas de suas próprias composições para tecer comentários, em geral em diálogos, em locais e situações informais, assim como de seu escrito "Música e Notação", de 1966 (Cadernos de hoje: Poesia Experimental 2, Separata). Entre os principais nomes de referência encontrava-se o de Fernando Lopes Graça (1906-1994), considerado sobretudo através de textos dos "Ciclos de Cultura Musical" realizados em Lisboa.


Entre as suas próprias obras então comentadas, encontravam-se várias compostas em fins da década de 50 e inícia da de 60, entre elas Tríptico para vozes, solos e vários instrumentos, os Episódios para quarteto de cordas, a Morfocromia para 12 instrumentos,  a Diafonia, para harpa, cravo e piano, celesta, percussão e grupo de cordas, e entre as mais recentes ou aquelas que estavam ainda em processo de composição, as Kinetofonias, para grande orquestra de cordas, sobretudo as Quatro Estações, para trompete, violoncelo, harpa e piano, então principal foco de atenções.As sucessões Simétricas I, para piano solo (1960) foram executadas durante o Festival.


Esses eventos, que contaram com a participação de professores e músicos provenientes de diferentes partes do mundo e do Brasil de diversificadas áreas de interesse e orientações, apresentavam, na sua organização e programação, um predomínio de personalidades de São Paulo.


Esse fato era devido sobretudo ao papel de direção e liderança exercido por Roberto Schnorrenberg (Veja), convidando este ao empreendimento internacional não apenas aqueles de sua rêde de contatos profissionais e culturais, mas emprestando aos Cursos e aos Festivais a marca do seu interesse por grandes obras coro-orquestrais do repertório sacro do passado e a questões musicológicas, mais especificamente histórico-musicais.


Esse interesse era sobretudo voltado à música antiga, à polifonia da Idade Média tardia, do Renascimento e do Barroco, e que cultivava como regente do Collegium Musicum de São Paulo. Preocupado com questões de prática de execução histórica, dedicava-se ao estudo de tratados do passado e estudos publicados em revistas musicológicas internacionais, tratando de problemas teóricos das obras que procurava obter com base nesses estudos.


Nos eventos do Paraná interagiram assim de forma especial personalidades que se interessavam pelo canto coral, pela música sacra, pela pesquisa musical do passado brasileiro e, sobretudo, pela música antiga, mais em particular das grandes obras da polifonia.


Foi nesse contexto que Jorge Peixinho de forma aparentemente paradoxal desenvolveu as suas aulas de composições e interagiu, também com o movimento originado em São Paulo em época de sua constituição na sociedade fundada em 1968.


Tendências inovadoras da estética contemporânea e das convicções político-culturais do pensador português nas suas inserções internacionais e aquelas nascidas da necessidade de renovação de perspectivas em disciplinas culturais de São Paulo relacionaram-se sob o signo da orientação programática dos Cursos e Festivais.


Não podia deixar de haver, assim, uma singular aproximação entre preocupações e reflexões da criação musical contemporânea com aquelas da música antiga, em particular de instrumentos antigos e da polifonia vocal da Renascença.


O interesse pelo Renascimento possibilitava considerações sob diferentes aspectos, não apenas relativamente à época histórica e à sua música, tão consideradas pela direção e pelos professores do Curso Internacional segundo as diferentes correntes tradições em que se inseriam, como também sob uma perspectiva que o referenciava segundo a atualidade, compreendendo o termo sob o aspecto político e político-cultural na situação de transformação por que passava o mundo, em particular o colonial português.


Se o termo e similares tinham sido empregados até então intensamente pela literatura de propaganda político-cultural, então criticamente discutida, passou-se a refletir sôbre uma Renascença de uma Renascença recompreendida. Tratava-se sobretudo de procurar outros enfoques na consideração da expansão portuguesa, da época dos Descobrimentos, das colonizações e suas consequências. Esses intentos aproximavam as reflexões daquelas preconizadas pela Nova Difusão, uma vez que dirigia as atenções não a esferas da cultura - erudita ou popular - mas sim a processos e processualidades.


Problemas das relações com o interesse pela música sacra e renovação litúrgica


Sob o aspecto teórico-musical, uma vez que Jorge Peixinho também estava encarregado de lecionar Matérias Teóricas, a atenção foi dirigida a procedimentos composicionais da polifonia, sobretudo sob o aspecto da estruturação horizontal-polifônica de vozes relativamente ao Cantus Firmus ou vertical-homofônica, dando-se especial atenção às interações entre esses procedimentos, indagando-se razões de desenvolvimentos sob diferentes aspectos.


Correspondendo à diversidade das correntes de pensamento representadas no Curso e Festival, uma das questões que preocupavam aqueles mais envolvidos com problemas filosóficos e teológicos referentes à música sacra, era aquela que dizia respeito ao relacionamento entre processos histórico-musicais da polifonia, a expansão portuguesa e da expansão do Catolicismo no mundo.


Essa atenção a questões sacro-musicais era particularmente atual na época, marcada que era esta pelos intuitos renovadores do Concílio Vaticano II e considerada em vários cursos e apresentações no âmbito dos Cursos Internacionais e do Festival.


Esses intuitos, voltados sobretudo à participação ativa do povo nos atos litúrgicos, baseando-se sobretudo na música folclórica, em linguagens e instrumentos populares, colocava de lado o repertório em latim, a polifonia e o Canto Gregoriano que tanto haviam marcado o movimento sacro-musical pré-conciliar.


Intentos, concepções e interesses contraditórios, expressos ou subjacentes, existiam em concomitância, causavam mal-estar e despertavam o desejo de esclarecimentos e de clareza de visões.


O interesse pela música antiga, pela música "colonial" no Brasil, pela polifonia vocal dos séculos XVI e XVII, tão atual e constatado também em personalidades consideradas como esclarecidas e avançadas político-culturalmente não podia ser servir indiretamente a passadistas tendências sacro-musicais que se opunham às intenções conciliares.


Como discutido com Jorge Peixinho, esse interesse pelo passado não devia favorecer subrepticiamente uma intensificação religiosa ou mesmo recatolização de músicos, cantores, pesquisadores e compositores.


Como poderia coadunar-se o estudo e o interesse por esse passado musical com as convicções de músicos e pesquisadores de outras confissões, afastados da religião ou críticos da Igreja? Como é que se poderia procurar uma revisão de perspectivas sentidas como ultrapassadas da expansão portuguesa e dos Descobrimentos deixando sem consideração distanciada um de seus principais fatores, aquele da expansão cristã, da Reconquista e da missão?


Questões de antropocentrismo e Aleluia com a integração de vozes de animais


Essas preocupações eram particularmente acentuadas entre aqueles que criticavam o antropocentrismo das concepções cristãs, mesmo que estas fossem entendidas como teocêntricas.


Essa crítica ao antropocentrismo era própria de movimento que defendia uma outra atitude ética de respeito á natureza e aos seres viventes na corrente de pensamento de Albert Schweitzer (1875-1965), representada sobretudo por Renata Braunwieser, também atuante no Curso Internacional e Festival de Curitiba. Como presidente da Sociedade Bach de São Paulo, a mais tradicional entidade que se dedicara à música antiga, influenciada pelo pensamento de Albert Schweitzer e, ao mesmo tempo, por um passado teosófico, confrontava-se de forma especialmente intensa com esse tipo de questões. (Veja)


Foi nesse contexto de interações e de preocupações por vezes paradoxais que o editor desta revista compôs, no decorrer das sessões com Jorge Peixinho e em sua homenagem, uma peça para coro e orquestra que procurou considerar o complexo das questões em debate.


Baseada em Cantus firmus, um Aleluia gregoriano, elaborou-se uma estrutura instrumental e vocal, na qual se integravam vozes de animais. Essas foram gravadas ao vivo nada menos do que pela especialista em Canto Gregoriano Eleanor Dewey (Veja), que, principal representante da Semiologia no Brasil, colocava-se em distância ao movimento gregoriano do passado, procurando novos caminhos nos estudos da notação e da linguagem dos sinais em geral. A peça foi executada em concerto final do curso de composição de Jorge Peixinho.



Atenção dirigida a sociedades, corporações e rêdes sociais


Esse confronto conflitante com a problemática da herança de ideários e posições trouxe à consciência a necessidade de dar-se maior atenção às associações culturais portuguesas nos seus pressupostos históricos e nas mudanças por que passavam. Essa preocupação correspondia àquela voltadas à função de sociedades e corporações na vida cultural de regiões imersas em processos de mudanças culturais e sociais com a abertura de estradas e que levou à realização de viagens de pesquisas ao Leste e Nordeste do Brasil e, a seguir, ao Sul.


Ela correspondeu também à atenção dada ao papel desempenhado por associações culturais em grupos de ascendência imigratória, de alemães ou italianos, que já há muito se confrontavam com a crise causada pela mudança do cenário político internacional com o fim da Guerra. Após conferência no Centro de Comércio "Mário F. de Azevedo" de São Paulo, em 1973, quando os resultados das viagens de observação e pesquisas foram considerados ao lado de questões relativas a estudos culturais,  em particular do Folclore, decidiu-se realizar uma viagem a Portugal para a constatação da situação de associações e da sua função no momento conturbado e de mudanças por que passava o país envolto em lutas na África. Esse intento foi facilitado pela ascendência portuguesa dos pesquisadores, que puderam contar com o apoio de familiares em Portugal, efetuou-se no início de 1974.


As atenções concentraram-se sobretudo na Beira Baixa, procurando-se reconhecer - como anteriormente no Brasil - rêdes de relacionamentos entre corporações musicais de diferentes localidades a partir de um determinado referencial, no caso o da banda de Tinalhas. Exames de materiais que revelavam superadas funções exercidas pelos músicos na prática musical em igrejas relacionaram-se com a observação de problemas resultantes da falta de músicos devido à guerra, com as suas implicações para a vida festiva das localidades.


Os contatos realizados mantiveram-se e possibilitaram a continuidade de intercâmbios tanto com a Alemanha a partir da segunda metade do mesmo ano como com o Brasil, estabelecendo-se, assim, um triângulo de relações que precedeu àqueles que se realizariam com a pesquisa relacionada com Portugal em Colonia, co-determinando com a experiência obtida perspectivas e diálogos.





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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.)."Uma programática de origem luso-brasileira em anos de mudanças geo-político-culturais. Jorge Peixinho (1940-1995) como referencial nas complexas relações Portugal-Alemanha-Brasil".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/2 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Luso-Brasileiros-e-Jorge-Peixinho.html