Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 151/8 (2014:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N° 3135



Gaurama (Rio Grande do Sul)


Nomen est omen?

A estação de Barro na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul
em processos culturais no Alto Uruguai
S. Luís Gonzaga (1568-1591) como modêlo para a juventude colonial

 

O atual município de Gaurama - cidade cognominada de „Princesa do Alto Uruguai“ -, embora criado oficialmente apenas há 60 anos, merece particular atenção nos estudos de processos culturais em contextos euro-brasileiros.


A sua consideração nesses estudos não é recente, ainda que tenha sido dirigido a época anterior da sua emancipação como município, quando a atual cidade era conhecida sob outra denominação: Barro. Ali surgiu, ao redor da estação de mesmo nome da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, a Colonia Barro.


Dois foram os contextos que, estreitamente relacionados entre si, levaram à consideração de Barro em estudos pesquisas desenvolvidas já desde fins da década de 60: o da imigração e colonização, e o das vias de comunicação sob a perspectiva de análises de processos de difusão cultural. (Veja)


Ambos programas de estudos foram consequências de preocupações e iniciativas voltadas à atualização de perspectivas e métodos em disciplinas culturais, levando à fundação de uma sociedade dedicada à renovação do pensamento e da prática através de um direcionamento da atenção a processos (Nova Difusão, 1968).


Essa orientação possibilitou novas aproximações à questões culturais de imigrantes em geral, de colonos europeus vindos para o Brasil a partir do século XIX e dos processos que desencadearam. Esses estudos relacionaram-se com intuitos de renovação de concepções e métodos da área do Folclore, até então marcado por concepções de cunho nacionalista, como se discutia no âmbito do Museu de Artes e Técnicas Populares (Museu do Folclore) da Associação Brasileira de Folclore.


Em estreito relacionamento com estudantes e formados da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, desenvolveu-se um programa de estudos de vias de comunicação sob a perspectiva de processos culturais no passado e no presente do Brasil e que levou a viagens de levantamento de dados e contatos ao Leste e Nordeste do Brasil em 1972 e ao Sul do Brasil em 1973. (Veja)


Uma particular atenção foi dada à constatação de rêdes de contatos sociais e profissionais pelas quais se processavam intercâmbios e cooperações, mudanças e renovações de tendências de pensamento e da prática cultural e artística, às suas formações e transformações.


Em época marcada pela abertura de vias no litoral da Bahia e no Brasil Central e Amazonas, com a atualidade de questões relacionadas com a expansão em regiões até então cobertas de florestas e os problemas culturais que acarretavam, entre outros no contato com povos indígenas, esses estudos de vias de comunicação e de análise de rêdes aguçaram a percepção para os estreitos elos entre vias de comunicação, processos de expansão e a história da imigração e colonização nas diferentes regiões do Brasil, em particular também nos Estados do sul.


Esses estudos decorreram em anos marcados pelas reformas desencadeadas pelo Concílio Vaticano II, e que levavam a profundas transformações na vida cultural de cidades menores que, na sua maioria, tinha sido em grande parte concentrada nas igrejas, com coros, mestres e músicos atuantes também em bandas e no ensino musical particular e em escolas.


Essas reformas levavam ao abandono do repertório até então cultivado. Este era constituído sobretudo por obras de compositores europeus e brasileiros divulgados pela imprensa religiosa, salientando-se aqui a ampla difusão de autores marcados por concepções, técnicas e estilos da reforma restaurativa no espírito do Motu Proprio de Pio X (1903) das décadas anteriores ao Concílio, possibilitada sobretudo pelos Franciscanos de Petrópolis.


Do repertório ainda mais antigo, que havia sido no passado combatido pelos representantes dessa reforma, apenas restavam fragmentos. Essa constatação despertou a atenção às relações entre vias de comunicação, processos de expansão a novas terras, assentamento de colonos, desenvolvimento de comunidades e o movimento de reforma restaurativa litúrgico-musical.


Na atualidade das preocupações devido ao recrudescimento religioso em várias partes do mundo, com suas trágicas consequências, também o fomento de uma reintensificação das atividades missionárias no Brasil não pode deixar de ser considerado sob o pano de fundo dos processos desencadeados no passado e as reflexões já encetadas.


Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande: a estação e a colonia de Barro


Entre as ferrovias consideradas sob o aspecto do seu significado para processos imigratórios, colonizatórios e culturais em regiões de expansão do sul do Brasil deu-se especial atenção à Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande.


Essa companhia, sociedade anônima brasileira com sede no Rio de Janeiro, foi constituída em 6 de fevereiro de 1893, com uma duração de 95 anos a contar da última emissão de obrigações. O seu objetivo era o de explorar uma extensão de ca. 3500 quilômetros, ligando com os seus trilhos os Estados de São Paulo e o Rio Grande do Sul, colocando-os em comunicação com a Argentina e o Paraguai, assim como com os principais portos do Atlântico.


A União subvencionava projetos de colonização dos Estados, como, no Rio Grande do Sul, os de Guarani, Ijui e Erechim. Entre aqueles empreendidos pelos Estados ou pelas companhias de estradas de ferro, sem contribuição pecuniária da União mas que recebiam imigrantes que a União fazia vir, encontravam-se Affonso Penna no Paraná e Nova Galicia, assim como no trecho que seguia à estação Legru da estrada de ferro S. Paulo-Rio Grande.


Em os centros coloniais mantidos ou subvencionados pelo Governo Federal encontravam-se Erechim e Santa Maria, o primeiro contando em 1911 928 famílias e 5.010 pessoas, So segundo 53 famílias e 339 pessoas em 2011. (Annuaire du Brésil Économique 1913, Rio de Janeiro: Le Brésil Économique,1913, pág. 331)


Erechim foi criada em 1908, passando a coordenar a venda de terrenos em região ainda coberta de florestas. A negociação dos lotes ficava a cargo da Comissão de Terras e a Empresa Colonizadora Luce, Rosa & Cia (Ernst Häussler, Empresa Colonisadora Luce, Rosa & Cia, Ltda, 1924). Essa empresa era recomendada pelo Auslandswart para a emigração ao Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em particular para a colonia de Neu-Württemberg. (Georg Tzscherner, Südamerika, Madeira, Westindien, Kanarische Inseln, Paderborn: Salzwasser 1929, 201).


Ao redor da estação e ao longo dos trilhos desenvolveu-se nos anos anteriores à Primeira Guerra a colonia de Barro, centro de chegada de imigrantes que se fixaram na região a partir de 1910, transformando-se em polo marcado pela vida e saída de colonos e mercadorias, centro de recebimento de notícias, trocas comerciais, intercâmbios vários e mesmo vida social. Situando-se em região coberta de matas, Barro foi marcado pela venda de lenha para a ferrovia ao longo da via e pelo comércio de madeiras de suas várias serrarias.


Ao redor dessa estação desenvolveu-se uma sociedade pluri-étnica e pluri-nacional, cuja maior porcentagem era de alemães, italianos e poloneses, mas também de outras proveniências, de origem do antigo império áustro-húngaro, do Báltico, da Rússia, da Ucrania, assim como holandeses, portugueses e espanhóis. Entre êles, muitos eram católicos.


A formação da comunidade foi acompanhada pela fundação de associações, entre elas a Sociedade Marechal J. Pilzudski, de poloneses. Em 1924, a Societá Italiana di Mutuo Soccorso Principessa Mafalda surgiu como testemunho do espírito associativo e de cooperação assistencial dos italianos. As denominações de sociedades alemãs como Deutscher  Verein Graf von Spee e, General Feldmarcharchal Von Hindenburg criadas na década de vinte indicam a permanência da memória e da orientação política nacional dos colonos alemães vindos após a Primeira Guerra para Barro e circunvizinhanças. Indicam, assim que a consideração da população de imigrantes alemães nessa região deve ser feita a partir de outras premissas contextuais e político-culturais do que no caso de regiões de passado colonial mai antigo.


Franciscanos alemães em comunidade surgida ao redor da estação

A ida dos Franciscanos alemães que se encontravam em Três Arroios para a estação de Barro deu-se sobretudo pela presença de católicos italianos que se assentaram desde 1910 em meio às matas da região, atraídos pela fertilidade das terras e pela riqueza em madeiras.


A companhia colonizadora procurava como outras fomentar a vinda de imigrantes dos países europeus debilitados pela Guerra oferecendo condições favoráveis de vida, e para colonos católicos surgiam como atrativa a garantia de que encontrariam assistência para a sua família e educação para os seus filhos.


A população ao redor da estação tinha sido assistida inicialmente por religiosos que residiam em Três Arroios e cujas atividades se estentiam a 26 capelas do distrito, entre elas uma de alemães, outra de italianos e uma de poloneses.  Os padres Fidelis Kamp e Chrysostomus Adams, assim como o irmão Wigbert Birk ali se salientaram, passando o Pe. Fidelis Kamp a auxiliar a paróquia recém-fundada, cuja sede era na estação e Barro.


O desenvolvimento e as perspectivas de prosperidade do local foram tais que o bispo de Santa Maria, logo após a Guerra, transferiu a sede da paróquia de Três Arroios a Barro. Vinha de encontro, aqui, a pedidos da população católica de Barro em época marcada por discordâncias relativamente à orientação positivista de políticos.


Seguindo o seu pedido, a Província Franciscana criou uma representação, para ali se transferindo de Três Arroios o P. Fidelis Kamp. Como auxiliar, passou a contar com o P. Justinus Girardi, até então ativo em São Francisco do Sul, em Santa Catarina. Os colonos italianos puderam assim contar, finalmente, com um sacerdote que dominava plenamente o seu idioma.


Tensões quanto à escolha do terreno e seus sentidos espirituais


A primeira preocupação dos religiosos foi também em Barro a de construir uma igreja paroquial que substituisse a modesta igreja existente.


A realização desse intento plano exigiu a superação de grande dificuldades. A população local, após ter conseguido a transferência da paróquia de Três Arroios para Barro, tendo alcançado o seu intento, perdeu o entusiasmo inicial para o levantamento de fundos, surgindo também divergências quanto à escolha do local.


Também o próximo pároco, o P. Modestus Oechtering, não conseguiu que se chegasse a um acordo. Esses primeiros anos do assentamento dos Franciscanos em Barro foram assim marcos por tensões e dificuldades.


Por essa razão, perante os problemas quanto à escolha de local para o levantamento da igreja, resolveu-se restaurar e aumentar a antiga capela. Pela precariedade de meios, foi essa construída de madeira - como a de Três Arroios -, ainda que ampla, com três naves e duas torres. A modesta residência dos religiosos foi transformada em pequeno convento. Dessa forma, Barro passou a possuir uma igreja simples, mas considerada como digna. Da mesma forma, a modesta casa onde até então tinham vivido deu lugar a um pequeno convento solidamente construído sob a direção do P. Modestus Oechtering, responsável pela comunidade entre 1921 e 1925.


Para a sua melhor administração, o P. Fidelis Kamp passou a residir em Barro, sendo seguido pelo P. Hubert Zeller, Preside de Três Arroios. (Festschrift zum Silberjubiläum der Wiedererrichtung der Provinz von der Unbefleckten Empfängnis im Süden Brasiliens 1901-1926, Werl i. Westf. 1929, 75)


Os problemas surgidos quanto à localização da igreja relacionavam-se com o fato dos Franciscanos sempre preferirem zonas afastadas da movimentação de centros, situadas em limites urbanos e semi-rurais, marcados pelo trabalho com a terra e, no caso, com a exploração das matas, junto a populações simples e modestas, o que vinha de encontro às virtudes franciscanas de modéstia e simplicidade.


Em situação marcada por qualidades de paisagem e silêncio, distante da movimentação centralizada na estação, de sociedade marcada por preocupações e intentos de negócios e assuntos de terra, os Franciscanos pretendiam criar um ambiente adequado à vida religiosa interiorizada, à penitência, ao afastamento das movimentações do mundo, marcado pela alegria seráfica. Convento, igreja e colégio deviam tornar-se centro de formação e irradiação de princípios restaurativos religiosos na sociedade que se formava, de fortalecimento da vida religiosa de famílias católicas, fomentando a frequência à missa e atos litúrgicos, assim como o da formação de uma nova geração acostumada à vida religiosa.


Mais tarde, criou-se um colégio dirigido por Franciscanas para a educação de meninas. Essas religiosas, vindas na sua maioria do norte-fluminense, assumiram também o socorro de doentes no hospital, cuja direção foi entregue a um médico vindo da Alemanha. (op.cit. 73)


Nomen est omen: „buraco lamacento e sujo“. Imagem de Barro para Franciscanos


O intento dos Franciscanos alemães de lutar contra a secularização da sociedade, restaurar a religiosidade, formar uma vida religiosa individual e coletiva e agir contra comportamentos que consideravam como de decadência moral do homem voltado ao mundo, ao ganho, a exterioridades, ao luxo e à luxúria, encontrou pelo que tudo indica campo fértil na sociedade criada ao redor da estação de Barro.


É significativo que o P. Cletus Espey OFM, que oferece no mencionado Festschrift uma crônica das atividades da Ordem nessa localidade, inicia o seu texto com a menção do nome da cidade, levantando associações aos leitores alemães entre o local e a decadência moral e de costumes da população.


„Se acreditar-se no ditado „Nomen est omen“, não se pode esperar de Barro nada mais do que um buraco de lama e sujeira; pois isso significa o nome da cidadezinha de mata construída graciosamente sobre uma colina na parte mais a norte do Estado do Rio Grande do Sul. Fundada em 1910 por colonos italianos, o local atraiu logo numerosos colonos devido à fertilidade do seu solo e das riquezas de suas florestas. A ferrovia São Paulo-Rio Grande instalou uma estação em Barro e contribuiu assim muito ao desenvolvimento rápido do local. No ano de 1919, também o bispo de Santa Maria transferiu a sede da paróquia de Três Arroios para Barro.“ (op.cit. 73)


São Luís (Aloísio) Gonzaga (1568-1591) como modêlo de exemplaridade no Barro


A dedicação da igreja a São Luís Gonzaga, pode ser vista como um sinal da preocupação dos Franciscanos por questões morais na sociedade multicultural de Barro, marcada pela sua estação.


Em particular, indica o intento de educar futuras gerações segundo o exemplo de castidade desse santo. É significativo que o modêlo humano escolhido para ser venerado e conduzir as atividades em Barro tenha sido o mesmo daquele escolhido para o bairro de Ipanema no Rio de Janeiro, então marcado pela popularidade das praias e da vida mundana.(Veja)


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo







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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). „Gaurama (Rio Grande do Sul). Nomen est omen? A estação de Barro na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul em processos culturais no Alto Uruguai. S. Luís Gonzaga (1568-1591) como modêlo para a juventude colonial.“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 151/8 (2014:5). http://revista.brasil-europa.eu/151/Gaurama.html