Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

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Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 152/9 (2014:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N°3147






Recepção musical e sua didática
A verbalização no ensino musical e artístico de orientação científica na Alemanha
em paralelos com o Brasil
Primeiro curso de História da Música no Brasil em Escola de Música alemã (1982)


 
O principal posicionamento teórico que tem determinado os estudos culturais em relações internacionais referenciados segundo o Brasil das últimas décadas é o da orientação da atenção a processos, não a esferas culturais categorizadas a priori.


Essa orientação foi originada da necessária renovação de disciplinas culturais em meados dos anos sessenta do século passado, em particular daquelas voltadas à música.


As reflexões, pesquisas, experimentos e vivências nessa consideração de processualidades conheceram no decorrer dos anos diferentes focalizações.


Se na década de sessenta a atenção foi dirigida sobretudo a questões de difusão, renovando compreensões convencionais a partir de analogias com conceitos das ciências naturais, no decorrer dos anos 70 as reflexões foram guiadas sobretudo segundo o conceito de recepção.


Cumpre recordar alguns aspectos desse desenvolvimento do pensamento e das iniciativas para um prosseguimento coerente e fundamentado das reflexões.


O conceito de recepção e a história da recepção musical na Pesquisa e na Educação


Assim como o conceito de difusão, também emprêgo do termo recepção foi marcado por uma diversidade de sentidos, com interferências de suas compreensões nas diferentes áreas de conhecimento e do uso quotidiano.


De um ponto de vista mais imediato, foi utilizado simplesmente para designar o recebimento e a adoção de obras, estilos, tendências e correntes na música e nas artes em determinado espaço cultural, no caso, no Brasil. Dirigindo a atenção a processos receptivos assim compreendidos, procurou-se renovar visões da história musical, artística e musical que, partindo de categorizações e essencializações do objeto, concebiam a dinâmica receptiva apenas sob a perspectiva de influências, empréstimos ou contribuições.


A partir de um emprêgo antes documental e descritivo do termo - por exemplo levantamento e valorizações de músicos e artistas estrangeiros que atuaram no Brasil, de recepção e difusão de obras, de estilos absorvidos por brasileiros em estudos e estadias no Exterior - a atenção logo foi dirigida a questões de recepção de correntes de pensamento quanto a valores e de critérios de apreciação e julgamento.


O termo não foi, porém, apenas utilizado nesse sentido antes convencional de história da recepção cultural, musical e artística. Foi fundamentalmente marcado pelo seu emprêgo na teoria da comunicação. As relações entre arte e comunicação passaram desde fins da década de sessenta do século XX a constituir principal foco de atenções no âmbito das preocupações com a análise de processos culturais, que agora se voltavam à recepção de mensagens por parte de um recipiente.


Na interferência nem sempre refletida de conceitos de diferentes proveniências e contextos, essa compreensão de recepção relacionou-se com a muito mais remota - conhecida até mesmo na tradição teológica - de que a recepção procede a modo do recipiente.


Estabelecia-se aqui pontes multifacetadas com a Psicologia, a Estética, os Estudos Culturais e a Educação. A percepção em geral, aquela de obras musicais, de arte e de valores culturais e a sua transmissão no ensino, assim como a pré-disposição do recipiente passaram a ser focos de atenção privilegiada nas áreas disciplinares afins da Percepção e da Estética na Educação Musical e Artística.


Literatura e Repertório na Licenciatura em Educação Musical


O tratamento do tema nessas disciplinas levou, no caso da formação de professores em cursos superiores de Licenciatura da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo ao reconhecimento da necessidade de inclusão das matérias de Repertório e Literatura Musical. Não se tratava aqui do intuito de uma retomada da antiga Apreciação Musical, mas sim de uma tentativa de promover competências em professores para a transmissão de recepção consciente de obras a seus alunos nas escolas secundárias.


Como o termo literatura musical indicava, esse intento compreendia análises das diferentes possibilidades de percepção musical através do estudo de textos de crítica, de comentários em jornais e de livros de história da música ou outros. Esse procedimento tinha como um de seus objetivos contribuir a um alargamento de horizontes, preparando tanto em professores como em seus alunos a abertura à criação musical contemporânea e a música de contextos culturais não-familiares.


Com o redirecionamento da Licenciatura em música àquela da formação polivalente de professores no âmbito das artes em geral, essas disciplinas deveriam também passar por uma ampliação.


Exemplaridade do tratamento da Estética e História da Arte por Flávio Motta


Possibilidades desse tratamento amplo do Repertório e da Literatura na  comunicação estética compreendida como processo no passado e no presente tinham sido transmitidas por Flavio Motta em cursos de História da Arte e Estética da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.


Com o uso então inovativo de métodos audio-visuais no confronto com obras de arquitetura, artes visuais e música de diferentes contextos e épocas, demonstrara-se as múltiplas possibilidades de leituras de sentidos, contribuindo à ampliação da capacidade perceptiva e interpretativa de recipientes, à abertura de visões, valores e atitudes.


Nos trabalhos que passaram a ser desenvolvidos na Europa a partir de 1974 segundo o programa de cooperações e interações internacionais de renovação de perspectivas desenvolvido no Brasil, constatou-se similaridades, mas também diferenças relativamente às reflexões conduzidas segundo o termo recepção, à teoria da recepção e à história da recepção na música e nas artes.


A recepção na Literatura e a verbalização no ensino da História da Arte na Alemanha


A principal diferença resultava de uma primordial orientação das reflexões segundo os estudos científicos da Literatura na Alemanha, o que também se manifestava num interesse particular pelas relações da música e das artes com a língua e na característica verbalizadora dos estudos de História da Arte em universidades.


Se as aulas acima mencionadas de Flavio Motta se caracterizavam por uma grande economia de palavras, bastando o próprio confronto visual com múltiplas obras de arquitetura e de artes plásticas, em projeções simultâneas, afirmativas ou contrastantes, acentuadas e diferenciadas sonoramente, elucidadas antes por gestos, mímica ou parcas intervenções do professor, as aulas expositivas e os seminários em História da Arte de um professor como Heinz Karl Ladendorf (1909-1992) em Colonia distinguiam-se pelo extraordinário significado concedido a verbalizações.


A atenção à descrição meticulosa de obras e à formulação de interpretações faziam das aulas e trabalhos acadêmicos em si realizações de excelência de expressão verbal, quase que obras ou espetáculos de literatura e retórica.


Recepção musical em reflexões condutoras de eventos internacionais


Como similar tendência teórica de orientação segundo desenvolvimentos da literatura podia ser observada na musicologia, pareceu ser necessário trazer o tema da recepção musical sob o ponto de vista de sua história e de processos comunicativos no presente no primeiro simpósio internacional de maiores dimensões relativos a questões culturais realizado no Brasil, o Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“, em 1981, sobretudo pelo fato de que no seu âmbito deveria ocorrer a fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia.


Consequentemente, como texto introdutório da coletânea de artigos de autores brasileiros que deveria servir de base e dar impulsos às discussões durante o evento tematizou-se a recepção musical no Brasil. (A.A.BIspo, „Zur Rezeptionsgeschichte der Kirchenmusik in Brasilien“, Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Musices Aptatio 1981).


Nesse texto, trazia-se à consciência que para o Brasil, pelas próprias características de sua história, como país colonizado e missionado, o estudo sob a perspectiva do conceito de recepção adquiria fundamental significado.


Entretanto, registrava-se o estado ainda incipiente do estudo da história da recepção no Brasil. A sua realização era dificultaa pela situação das fontes. As obras européias conservados nos arquivos tinham sido até então pouco consideradas, uma vez que o principal interesse da pesquisa tinha sido a revelação de obras de compositores do país. Também um exame sistemático de programas, de artigos de jornal, de catálogos e reclames assim como de catálogos de acervos particulares ainda não tinha sido desenvolvido. Além do mais, colocavam-se problemas metodológicos.




Recepção musical e Ensino musical na Semana Alemã-Brasileira de Leichlingen


Dando continuidade à discussão da Recepção Estética no âmbito da formação de professores na Licenciatura Musical e Artística no Brasil e no ensino em escolas secundárias, o tema marcou a primeira Semana de Música Alemã-Brasileira em Leichlingen, em 1982.


Realizada no mesmo ano da 14. Bundeschulmusikwoche em Berlim, dedicada ao tema „Educação e Cultura Musical“, a semana Alemã-Brasileira compreendia-se como um forum internacional para a discussão de relações entre Ciência e Educação (Veja).


Essas relações foram consideradas em particular quanto às relações entre a Musicologia de orientação cultural e o ensino nas escolas de música e nos ciclos secundários, o que devia ter prosseguimento com a consideração de outros contextos internacionais em semanas seguintes.


As reflexões relativas à recepção no âmbito da Educação podiam basear-se em considerável literatura, salientando-se aqui aquelas de Werner Klüppelholz, membro da direção do Arbeitskreis Musikpädagogische Forschung e.V., AMPF.


Discussão de reflexões e propostas de Werner Klüppelholz


Tendo estudado na Escola Superior de Música e na Universidade de Colonia, onde havia-se doutorado (Sprache als Musik. Studien zur Vokalkomposition bei Karlheinz Stockhausen, Hans G. Helms, Mauricio Kagel, Dieter Schnebel und György Ligeti, Colonia 1976), de renome pelas suas publicações sobre questões didáticas, em particular da música contemporânea (e.o. Modelle zur Didaktik der neuen Musik, Wiesbaden 1981), era natural que suas colocações fossem particularmente consideradas na Semana de Música Alemã-Brasileira.


O principal texto discutido em aulas e em encontros de professores na preparação da Semana de 1982 foi um texto relativo à didática da história da recepção musical publicado naquele ano (Werner Klüppelholz, „Von Engeln und Feldherrn in sonniger Mondnacht: Notizen zu einer Didaktik der musikalischen Rezeptionsgeschichte“, Musik und Bildung, 14/2,1982, 95ss).


Relações entre percepção e palavra - didática da recepção musical


Werner Klüppelhoz partia nas suas explanações do pressuposto de que a consciência - o pensamento e a percepção - constituia um complexo marcado por estreitas relações, por assim dizer comprimidas e capazes de serem desenvolvidas.


A língua constituia um instrumento de estruturação e diferenciação da percepção. Para a percepção visual, o autor salientava que estaria confirmado empiricamente que a capacidade de descrição exata de uma obra corresponderia áquela de percepção mais acurada. Quanto mais a atitude do recipiente passasse de uma contemplação muda, sem palavras, àquela do demonstrar, descrever e comparar, tanto mais a percepção, inicialmente difusa, tornar-se-ia consciente e ordenada.


Esse posicionamento do autor - que já se manifestara na ênfase à língua na sua dissertação „Sprache als Musik“ - correspondia aqui à prática acima mencionada de extrema verbalização na História da Arte, como praticada na Universidade de Colonia.


Partindo dessa constatação nas artes visuais, o autor presumia que o mesmo poderia valer no concernente à recepção de música mais complexa ou não familiar. O confronto direto, mudo, sem palavras com música que difere daquela com que o ouvinte está familiarizado correspondia a um processo receptivo no qual interferem julgamentos de valor, associações e suposições mais ou menos arbitrárias, retalhos de saber, sendo que o ouvido se prende a fragmentos ou a aspectos secundários.


A convicção do autor era que, como comprovado experimentalmente, as informações verbais sobre a música modificam julgamentos de valor e podem diferenciar a audição, ainda que tais modificações ocorressem sobretudo no campo cognitivo. Poderia também haver mudanças de julgamente através de sugestões de prestígio, essas, porém, não poderiam constituir possibilidades legítimas de intervenção pedagógica.


Inversão da função da palavra no ensino musical - primado do texto?


Sob a premissa que também o campo de percepção musical pode ser diferenciado através da palavra, o autor propõe uma inversão da função da palavra no ensino musical. Não primeiramente a música, ou seja aquilo que foi ouvido devia ser traduzido em palavras, como uma espécie de protocolo verbal da música, mas o próprio texto devia ser o ponto de partida e a base do ouvir, ou seja, o autor preconizava o emprêgo primordial da palavra no ensino musical.


Um tal emprego da verbalização procurava sistematizar; não pretendia apenas diferenciar a audição, mas também diminuir as dificuldades da transmissão no ensino de música sentida como complexa ou pouco familiar.


Um caminho para esse procedimento didático da recepção musical era para o autor, textos escritos da história da recepção musical, ou seja, da história da aceitação e assimilação de obras musicais.


As relações entre o material escrito colocado à disposição pela musicologia histórica e os resulzados da psicologia da recepção passam a ser considerados nessa aproximação em intenção didática, ou seja sob o aspecto pragmático do tratamento de música complexa e não-familiar no ensino secundário.


Um dos objetivos dessa proposa era o de contribuir à disposição interna dos alunos no sentido de prepará-los à audição de música desconhecida, do passado ou contemporânea. Na opinião de Klüppelholz, esse procedimento levaria a uma maior diferenciação do ouvir, à mudança de julgamentos de valor, a relações afetivas estáveis com a música até então desconhecida e, por fim, ao costume de ouvir características sonoras e também à recepção racional da música.


Funções da aproximação verbal à música


Em exemplos de textos da recepção histórica, Klüppelholz considerava cinco funções de aproximação verbal à música, que não se excluiam, mas se interrelacionavam.


A primeira função no tratamento de texto referenciados segundo obras no ensino era a da estruturação formal de um acontecimento musical de densidade considerável.


A segunda função seria a da interpretação hermenêutica de supostos conteúdos musicais. Esses textos - que marcaram procedimentos mais antigos da crítica e mesmo da musicologia - contrapõem-se em geral àqueles caracterizados pela conceituação objetiva e por informações da análise formal, sobretudo no caso da música instrumental autônoma, onde o conteúdo não é estabelecido a priori, de modo que surgem inúmeras possibilidades de interpretações hermenêuticas, colocando-se a questão da arbitrariedade.


Uma terceira função da aproximação verbal à música seria a da emocionalização da recepção. Poucas das interpretações hermenêuticas seriam livre de conotações emotivas, criadas por significados secundários de palavras ou de constelações de palavras que modificam o colorido do significado semântico.


Conotações emotivas mereceriam ser assim consideradas nas suas dependências relativamente ao contexto do recipiente; elas pressupõem um contexto semântico determinado e também características de personalidade e experiências do indivíduo.


Entre os textos discutidos neste contexto incluiu-se a „Sinfonia da Terra“ que precede a História da Música Brasileira de Renato Almeida (História da Música Brasileira, 2a. ed., Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1942).


A quarta função seria a da imunização perante ideologias. O autor lembrava que ideologias, definidas como parcelas de uma verdade tomadas como sendo o todo, transportadas por interpretações, serviam como confirmações de convicções e afirmações ideológicas, em geral políticas.


Essa imunização perante ideologias dizia respeito não apenas à literatura marxista, mas também  àquela marcada por críticas e lamentos de decadência musical ou cultural em geral. No caso do Brasil, essa função tematizada por Klüppelholz surgia como de particular relevância, considerando a carga ideológica da literatura histórico-musical de cunho nacionalista relativa à música brasileira.


Questões como ponto de partida para leituras de textos relativos à música


Do ponto de vista prático, a análise de um texto sobre música poderia partir na sala de aula de algumas questões colocadas aos alunos: quais os conceitos formais incluidos no texto; quais interpretações de conteúdos musicais são nele percebidas; que pontos em comum e diferenças apresenta um texto com relação a outros textos; que interpretação parece ser correta; que efeitos sobre outros ouvintes podem ser presumidos; quais são as expectativas sonoras despertadas; como os alunos podem êles próprios escreverem textos tais como críticas de concertos ou comentários de gravações.


Essas questões poderiam levar segundo Klüppelholz a um processo de análise crítica, de argumentação mais precisa e diferenciada do ouvir comparativo. Ao mesmo tempo, levariam os alunos a se acostumarem a ouvir e receber conscientemente características sonoras de uma música à qual não estavam familiarizados. Estes seriam pressupostos para uma atitude positiva, de abertura, sem valorações antecipadas.


Paralelamente, os alunos tomariam o hábito de ler conscientemente textos referentes à música mesmo fora da classe de aula, ou seja, comentários na imprensa, livros de bolso sobre música, periódicos e outros, o que levaria a uma atitude diferente daquela resultante de uma simples recepção difusa, sem sentidos.


Através de todas as formulações arbitrárias ou objetivadoras, um ensino que assim procedia levaria segundo o autor por fim aos limites da palavra, para além dos quais se encontra toda a música verdadeiramente grande, ou seja ao silêncio que soa. (op.cit. 99)


Relativações da proposta de primado da palavra a partir do Brasil


Na Deutsch-Brasilianische Musikschulwoche de 1982, a proposta da consideração da recepção musical no ensino a partir do primado da palavra, ou seja, de tratamento análitico de textos vários, foi alvo de reflexões relativadoras e críticas a partir da experiência brasileira.


Compreendia-se que houvesse essa tendência na Alemanha por dois motivos: primeiramente, a orientação científica da Educação em geral e do Ensino Musical em particular, discutida há anos e atualizada por planos oficiais; em segundo lugar, como mencionado, a posição condutora dos estudos da Literatura na consideração da Recepção e da prática verbalizadora na Históra da Arte.


A orientação científica no ensino musical caracterizava-se por uma sobrevalorização da racionalidade, da capacidade analítica, sistemática e classificadora. Em casos extremos, o ensino musical em escolas secundárias podia tomar características de uma introdução à ciência ou de preparo aos estudos universitários.


O exemplo dado pela História da Arte na Universidade alemã demonstrava o significado da palavra na descrição acurada e retoricamente brilhante na leitura e interpretação de obras, o que - presumia-se - podia ser aplicado também à música. A experiência brasileira, porém, no modêlo de Flávio Motta, trazia à consciência que essa verbalização representava na verdade traduções de meios de expressão, de redundâncias, e que não era impossível despertar a capacidade diferenciadora, captar sentidos e abrir novas perspectivas sem o desvio através da literatura, mas pelos próprios meios expressivos visuais ou através de recursos sinestésicos.


Correspondentemente, no caso da música, poderia ser a própria música ou recursos sonoros em geral que deveriam ter prioridade, despertando êles próprios a capacidade diferenciadora, a captação de sentidos, à disposição do recipiente para a aceitação de música desconhecida ou não familiar.


A consideração da recepção musical no ensino a partir primordialmente de textos, de críticas, de programas e outros materiais escritos representaria antes uma literatura aplicada, desconhecendo outras funções do ensino musical. A proposta de uma prioridade à palavra que aqui se manifestava contrariava também uma função cognitiva que em antiga tradição cabia à música em especial. A colocação da música ao lado das artes visuais e da plástica representava um desenvolvimento relativamente recente, dos últimos séculos.


A música fêz parte através dos séculos do sistema disciplinar do Quadrivium, ou seja das ciências relacionadas com o número da Aritimética, Geometria, Música e Astronomia. Essa disposição de disciplinas, como já considerada no âmbito da disciplina Estética no Brasil, possuia relações muito mais amplas com concepções científico-naturais do edifício cultural, em particular com os elementos da matéria.


Essas disciplinas, em estreito relacionamento entre si, serviam a um processo cognitivo, determinado diferentemente segundo as associações e conotações das respectivas disciplinas, estreitamente vinculadas entre si. A música não fazia parte do Trivium, ou seja das disciplinas da palavra, da Gramática, Retórica e Dialética.


Sem desejar revitalizar esse sistema do passado, cumpria porém dele retirar impulsos para um ensino da música que, considerando as suas próprias características e meio de expressão, viesse de encontro às múltiplas funções do ensino musical nas escolas e, ao mesmo tempo, contribuisse a uma atitude de abertura dos alunos a obras complexas ou a música não familiar e à capacidade diferenciadora. Orientação científica não deveria ser compreendida como verbalização.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“ Recepção musical e sua didática. A verbalização no ensino musical e artístico de orientação científica na Alemanha em paralelos com o Brasil“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 152/9 (2014:6). http://revista.brasil-europa.eu/152/Didatica-da-recepcao-musical.html