França Antártica e França Oriental
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos atuais: Malta e Madagascar. A.A.Bispo 2014 e 2015 ©Arquivo A.B.E..

 

154/6 (2015:2)



A França Antártica no Brasil e a França Oriental no Madagáscar
- O Fort Dauphin -



Imigração, Estudos Coloniais e Colonialismo 2015
pelos 450 anos do Rio de Janeiro

Em continuidade a ciclo de estudos realizados em Malta (2014)

 

Em ciclo de estudos euro-brasileiros realizado em Malta, em 2014, - ano preparatório para as comemorações dos 450 anos do Rio de Janeiro pela A.B.E.- , considerou-se com especial atenção o episódio da „France Antarctique“ no Brasil do século XVI nas suas inserções em processos culturais europeus, e, particular naqueles marcados por tensões confessionais no Cristianismo e do secular combate aos muçulmanos.



No centro das atenções esteve Nicolaus Durand de Villegagnon (1510-1571) - o  Vice-Admiral Joanita.


Refletiu-se sobre as novas aproximações que resultam de uma consideração mais aprofundada de uma cultura religiosa marcada pelo culto a S. João Batista na análise de conflitos religioso-políticos da Europa no confronto com o mundo extra-europeu não-cristão e para os estudos da tentativa francesa de fixação no Brasil no século XVI
(1555-1567).  (Veja notícia da A.B.E. de 20.09.2014).


O brasileiro que visite Mdina, a antiga capital de Malta, que é com a sua catedral, igrejas, palácios e instituições culturais conhecida como a mais nobre cidade maltesa, surpreende-se ao ler na placa da principal rua da cidade um nome de
Mdina/MAlta. Fotos A.A.Bispo 2014 Copyright.Arquivo A.B.E..
Villlegagnon, tão conhecido dos estudos brasileiros. Reconhece, assim, um dos mais significativos elos entre Malta e o Brasil e descortina novas perspectivas para a consideração de aspectos pouco analisados do episódio da presença francesa no Rio de Janeiro no século XVI.


A imagem de Villagagnon surge como ambivalente na historiografia, dando origem não apenas a diferentes interpretações de suas concepções e seus atos, como também de sua personalidade: paradoxias e avaliações contrárias, como se não se bem compreendessem as suas ações, motivos e posições.


Mdina/MAlta. Fotos A.A.Bispo 2014 Copyright.Arquivo A.B.E..
Uma maior atenção necessita ser dada ao fato de Villegagnon ter sido estreitamente vinculado por elos de parentesco com o Grão Mestre da Ordem de Malta, tendo sido êle próprio ordenado cavaleiro em 1521. Como membro da Ordem religiosa militar, não apenas a sua carreira, mas também a sua visão do mundo estava marcada pela luta contra os „infiéis“. Tendo já participado de muitos combates, contribuiu a repelí-los em Malta, em 1551.


Essa atuação sua pode ser comparada com a de um altivo cavaleiro paladino defensor da fé em complexo de tensões que era profundamente enraizado em ediifcio cultural e que é conhecido no Brasil até o presente como Cristãos e Mouros. Esse papel marcava a sua auto-consciência, como se depreende da sua posição quanto à vitória de Tripolis, na qual tomou parte em 1553. Não se pode esquecer que a memória dessa vitória sobre os muçulmanos no norte da África ainda estava necessariamente muito viva à época da expedição ao Brasil, ocorrida apenas dois anos depois.


Nos estudos euro-brasileiros levados a efeito em Malta, considerou-se porém um outro aspecto resultante do pertencimento de Villegagnon à Ordem de Malta: as características de uma religiosidade marcada pelo culto a São João. Este emprestara o nome à ordem que era soberana em Malta e que administrava a ilha em status de vassalagem sob o vice-rei espanhol da Sicília, a Ordem dos Joanitas.


A Ordem de Malta ou de São João tinha essa dedicação provavelmente pela sua atuação em hospital dedicado ao Precursor em Jerusalem, mantendo esse fim assistencial e caritativo de socorro aos pobres, necessitados, doentes e perseguidos, o que se manifesta na denominação de Fraternitas Hospitalaria. É possível que essa finalidade de ajuda fraternal a necessitados em peregrinação dos hospitalários tenha contribuido a que Villegagnon assumisse o encargo de dirigir a expedição ao Brasil, uma vez que socorria os huguenotes perseguidos, esses também „a caminho“, assim como o Admiral. Apenas posteriormente teria Villegagnon tomado consciência das dimensões profundas das divergências teológicas, incompatíveis com o Catolicismo.


Não só a auto-consciência de cavaleiro militar da Ordem pode explicar a atitude criticada como autoritária de Villegagnon no Rio de Janeiro, como também uma cultura religiosa marcada pela exemplaridade de São João Batista para um comandante Joanita, impregnado da mentalidade da Cavalaria Militar religiosa. As características do culto a São João Batista do passado são em grande parte pouco compreendidas na atualidade, podendo aqui auxiliar o conhecimento das concepções e formas de expressão ainda vigentes na tradição brasileira.


São João, o maior homem até então nascido, o que justifica atitude de soberania, o líder auxiliador dos homens atribulados sob o jugo da condição terrena a renascer pelo batismo, o que explica o espírito hospitalário,  repleto do fogo do espírito já antes de nascer, levou a associações com o fogo, o que se manifesta em muitas tradições festivas e que também mantém os estreitos elos do ano religioso com o natural do hemisfério norte. Compreende-se, assim as relações com antigas concepções jupiterianas, como vem sendo analisadas na área de estudos Antiguidade/Cristianismo.


Rever sob o pano de fundo da história maltesa esse empreendimento francês de 1555 que, com o objetivo de criar uma colonia trouxe centenas de pessoas à baia do Rio de Janeiro e levou fundação do forte Coligny, denominado segundo o admiral calvinista Gaspard de Coligny (1519-1572), é de significado para a história do Rio de Janeiro, do Brasil em geral, das relações entre França e Brasil, para o estudo de encontros culturais, para a história colonial e sobretudo para a história da religião, em particular da Reformação.


O intento francês era o de estabelecer presença na baía que oferecia tão favoráveis condições de abrigo e posição estratégica para as viagens oceânicas, utilizando-se para isso de huguenotes franceses que deveriam ali fundar uma colonia. Dois objetivos encontravam-se assim relacionados: o estratégico para o desenvolvimento de atividades comerciais em dimensões globais e o da solução de tensões internas na França, criadas pela propagação do movimento de Reforma. Os exilados ou aqueles que recebiam a possibilidade de um refúgio eram afastados do país e deveriam lançar as bases para uma instalação francesa no Brasil. No âmbito de uma pequena colonia, entre mar e florestas, seriam também mais facilmente controlados, sobretudo por ali se encontrar um vulto exponente do Catolicismo militante: Villegagnon.


Assim como a situação francesa que levou à viagem, a vida da colonia foi compreensivelmente marcada por conflitos religiosos, nos quais Villegagnon desempenhou papel determinante. Os calvinistas foram reeinviados à Europa em 1558, sendo outros mortos. Coligny foi morto na noite do dia de São Bartolomeu, trágica data na história dos conflitos religiosos à época da Reformação. Essse conflitos refletiram-se em importantes obras para os estudos referentes ao Brasil no século XVI, a do franciscano André Thévet O.F.M. (1516-1590) do lado católico, a de Jean de Léry (1536-1613) do lado protestante.


Para cotejo: questões da presença francesa no Índico nos séculos XVI e XVII


Na ainda sob muitos aspectos obscura história da presença portuguesa e da francesa no Índico no século XVI, em particular na ilha do Madagáscar, tem-se vaga notícia de que, em 1504, ca. de 80 portugueses sobreviventes de um naufrágio alcançaram terra em Tholongar, no sul do Madagáscar. Para a defesa contra os nativos, construiram um forte. Este teve de ser abandonado em 1527, sendo os portugueses mortos ou expulsos.


Assim como no Brasil os franceses já desde o início do século XVI estavam envolvidos no comércio do pau-brasil com os indígenas do Nordeste, tendo sido combatidos sob Martim Afonso de Souza ((ca. 1500-1564/1571), deveria ser investigado se também não estiveram envolvidos em tratos comerciais com os habitantes de uma ilha tão marcada pelas suas madeiras nobres como o Madagáscar. Isso explicaria as decorrências relacionadas com Diogo Soares no norte da ilha, um navegante e aventureiro que estava sob a proteção de Martim Afonso de Souza, desempenhando nesse sentido um papel comparável no Índico àquele que havia sido exercido pelo seu protetor no Brasil. (Veja)


Tentativas de colonização sistemática no Madagáscar por parte da França deram-se no contexto da modificada situação política internacional determinada pela união pessoal entre Portugal e a Espanha (1580-1640) e da época que se seguiu.


Essas atividades francesas inseriram-se no âmbito das atividades mercantís da Société française de l‘Orient que, em 1643, implantou uma colonia em península do sul do Madagáscar que, no passado, tinha conhecido um povoado de náufragos portugueses. Nesse caso, ainda que obscuro, a presença francesa teria sido preparada e encontrara já grupos populacionais descendentes de antigos náufragos, mestiços, já marcados por contatos anteriores.


Fort Dauphin - significado para a história da presença francesa no Índico


A história francesa no Madagáscar deve ser assim considerada no âmbito das atividades da companhia de comércio criada na França segundo o modelo da Companhia das Índias Orientais dos Países Baixos. À Companhia dava-se o monopólio do comércio e o direito de posse de territórios conquistados, de formação de tropas, de cunho de moedas e de justiça.


Para a defesa dessa colonia, os franceses levantaram um forte que recebeu o nome de Fort Flacourt segundo o nome de Étienne de Flacourt (1607-1660), vindo para substituir o administrador da colonia Jacques Pronis (?-1655).  Esta era conhecida por Fort Dauphin, uma referência ao príncipe que, a seguir, tornar-se-ia Luís XIV (1638-1715). Trata-se da atual Tôlanaro (Tolagnaro ou Taolanaro), cidade da região de Toliara, habitada sobretudo pelo grupo populacional dos Antanosy.


Se nomen est omen, a presença francesa na ilha que chegaria a ser conhecida como „França do Oriente“ necessita ser considerada no contexto político francês da época máxima do absolutismo francês e dos seus antecedentes.


Significado de Flacourt: autor da Histoire de la Grande Isle Madagáscar (1661)


Mais conhecido da história da antiga ilha Bourbon (La Réunion), onde teria também dirigido tentativas de assentamento da França, Étienne de Flacourt provinha de família de mercadores de Orléans.


Parentes seus tomaram parte na Compagnie des Indes orientales criada pelo Cardeal Richelieu (1585-1642), em 1642. À época de sua chegada a Fort Dauphin, em 1648, já existiam elos marítimo-comerciais regulares entre a França e a colonia, como aqueles de um capitão de nome Roger Le Bourg.


Sendo Flacourt catóilco e Jacques Pronis protestante, questões confessionais cristãs na Europa, transplantadas para regiões extra-européias merecem, assim, ser consideradas não só no Brasil como também nas tentativas francesas de colonização do Índico.


Também a história de Fort Dauphin foi marcada por tensões e pelo fato de ter havido colonos que se aliaram aos nativos. Essa situação, intensificada pelas doenças, levou a uma revolta e ataque com grande número de mortos de 27 de agosto de 1674.


Os sobreviventes da colonia estabeleceram-se na atual La Réunion, de modo que o episódio de Fort Dauphin surge como importante momento na história da presença francesa no Índico. Procurou-se criar infra-estrutura de estaleiros navais e realizaram-se expedições exploratórias a outras regiões, entre outras à ilha de Sainte-Marie.


O porto, local de comércio de escravos, teria continuado a ser visitado por franceses envolvidos nesse comércio. Estes tentaram novamente estabelecer uma colonia em 1768, projeto abandonado em 1771.


Com a instauração do regime colonial francês no Madagáscar, em 1895/6, Fort Dauphin passou ao domínio francês, regime que durou até meados do século XX, encontrando-se ali sediada uma guarnição militar.


Madagascar. Fotos A.A.Bispo 2014. Copyright.Arquivo A.B.E..

Madagáscar e Fort Dauphin no Atlas de Joan Blaeu (1596-1673)

Numa das raras e mais detalhadas representações cartográficas da Ilha de S. Lorenço ou Madagáscar (Insula S. Laurentii vulgo Madagáscar), a do Atlas de Joan Blaeus, com base em desenhos de Flacourt, em 1658, encontram-se referências que contribuem à elucidação da situação no Madagáscar no século XVII.

No mapa de título Africae nova descriptio, o Madagáscar  e muitas ilhas do Índico são apresentadas no contexto geral do continente africano. Ese mapa, entre os primeiros de Wiellem Blaeu, foi primeiramente publicada ao redor de 1617, sendo incluida em outras obras a partir de 1630 até os anos 60 do século XVII.

De particular interesse são as representações de habitantes das diferentes regiões com os respectivos trajes típicos. Supõe-se que uma das fontes do editor seria o relato de Leo Africanus, o viajante e geógrafo ‚al-Hasan ibn-Muhammad al-Wazzan convertido ao Cristianismo sob o Papa Leão X, autor de uma descrição da África publicada primeiramente em 1550 na Itália.

A representação de Madagáscar e do Índico, que indica a consideração de dados posteriores, traz muitas indicações em português. Nela não se encontra, porém, a indicação de Diégo-Suarez. Nesse extremo norte de Madagáscar, apenas encontra-se registrado o Cabo de São Sebastião.

No map aencontra-se, na parte ocidental da ilha, o registo de „Terra de Gado“. Com o título de „Rex in Madagáscar“, a ilustração apresenta um homem nú com um cajado e uma mulher trazendo a característica „toga“ branca malgache. (op.cit. 140-141)

Um mapa especialmente dedicado ao Madagáscar foi publicado em 1662. Nele encontra-se registrado Matatana, no sudeste da ilha, como pequeno povoado fundado pelos portugueses na costa oriental. O mapa inclui uma indicação de particular interesse histórico, aquela que registra a degradação natural de uma fértil região em consequência de guerras („Pais tres fertile, bandonné et ruiné par les guerres“).

Na parte ocidental da ilha representada no mapa, encontra-se mais uma vez, significativamente agora em duas linguas, em português e em francês, a indicação de tratar-se de região conhecida pelo grande número de reses ( „Terra de gado“, „Pays riche en bestial“). Esse registro é um documento relevante para o Madagáscar, considerando-se que o boi, em particular o zebu, adquire grande significado econômico e cultural, estando estreitamente relacionado com o edifício cultural e de práticas do culto de ancestrais.

Nesse mapa realizado com os conhecimentos de Flacourt  já se encontra o registro de Diégo- Suarez.


Madagáscar na Orbis Habitabilis Oppida et Vestitus, de K. Allard (1648-1770)

No Orbis Habitabilis Oppida et Vestitus, publicado em Amsterdam, ca. 1695 (Kassel u. Basel: Bärenreiter 1966) de Karel Allard (1648-1770), os costumes dos habitantes do forte Dauphin (Castrum Delphinicum) são apresentados em gravura (Carolus Allard, Orbis Habitabilis Oppida et Vestitus, mit einer Einführung von R. A. Skelton, Kassel e Basel: Bärenreiter 1966, Das Bild der Welt I/IV, Het Fort Dauphin, prancha 57).

Juntamente com a imagem oferecida nessa obra de habitantes de Moçambique, essa representação surge como de relevância para estudos de processos culturais no Índico e na África Austral na sua recepção na Europa. Nela vê-se no centro da imagem de um zebu pastando, vendo-se ao fundo navios e a dupla paliçada de Fort Dauphin. O boi é ladeado por um homem e uma mulher trajando a característica „toga“ malgache. A atitude de dominância da mulher representada corresponde ao papel importante desempenhado por mulheres na sociedade malgache.

De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).„A França Antártica no Brasil e a França Oriental no Madagáscar
- O Fort Dauphin“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 154/6(2015:02).http://revista.brasil-europa.eu/154/France_Antarctique_e_Oriental.html


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