Carlos Gomes no Ano Europeu da Música 1985

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 161

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 161/12 (2016:3)



Antonio Carlos Gomes (1836-1896) no Ano Europeu da Música de 1985
crepúsculo e morte em Belém
vestígios documentais e reflexões sobre o nacionalismo na imprensa paraense



50 anos de homenagem a Carlos Gomes em São Paulo (1966)

40 anos do início do programa euro-brasileiro em Milão (1976)

30 anos do Ano Carlos Gomes (1986)



 

O ano de 1985, declarado pelas comunidades européias "Ano Europeu da Música", adquiriu especial significado para o desenvolvimento dos estudos de processos culturais relacionados não só com Portugal - nação européia - mas sim também com países extra-europeus marcados culturalmente pelos portugueses, entre êles, sobretudo, com o Brasil.


Nele foi fundado, como entidade registrada na Alemanha, o Instituto de Estudos da Cultura Musical na Espaço da Língua Portuguesa (I.S.M.P.S.e.V.), (Veja) oficializando, assim, em país europeu, o Centro de Pesquisas em Musicologia fundado em São Paulo, em 1968, no âmbito de sociedade voltada ao estudo de processos culturais (Nova Difusão).


O "Ano Europeu da Música" e encontros euro-brasileiros em Roma


A oficialização como entidade registrada na Europa do Centro brasileiro pareceu ser oportuna, uma vez que o "Ano Europeu da Música" - que não era "Ano da Música Européia" - representava um momento importante de trazer à consciência os processos culturais desencadeados pelos portugueses em regiões não-européias à época dos Descobrimentos e no decorrer da história missionária e colonial, criando desenvolvimentos e situações que não poderiam deixar de ser lembradas no ano assim designado.


O "Ano Europeu da Música" tinha sido antecedido por outras iniciativas e publicações, entre êles aquelas que, em 1983, celebraram grandes compositores europeus. Esses eventos trouxeram à consciência a necessidade de uma maior valorização, também na Europa, de compositores de países não-europeus que, pela sua origem, formação e vida estiveram estreitamente relacionados com o Velho Mundo.


Entre êles, destacava-se Antonio Carlos Gomes, o compositor brasileiro que, após formação no Brasil, aperfeiçoou-se na Itália e ali alcançou extraordinários sucessos, desempenhando papel de importância na história da música italiana do século XIX.


Às vésperas das comemorações, em 1986, do seu sesquicentenário de nascimento, decidiu-se considerá-lo em trabalhos de 1985 que, sob o signo do "Ano Europeu da Música", servissem à preparação dos eventos de 1986.


Oportunidade para a realização de encontros entre pesquisadores europeus, brasileiros e de outros países da América do Norte e do Sul ofereceu-se em sequência ao Congresso Internacional de Música Sacra promovido pela organização pontifícia de música sacra e outras instituições de diferentes países e que também realizou-se por motivo do "Ano Europeu da Música" em Roma, no mês de novembro de 1985.


Nesses encontros euro-brasileiros paralelos, mas independentes daquele congresso estiveram presentes representantes do projeto "Música na Vida do Homem" - posteriormente "Um História Mundial da Música" -  do Conselho Internacional de Música da UNESCO. Entre os brasileiros, destacou-se o Prof. Dr. José de Almeida Penalva (1924-2002), que então realizava pesquisas sobre A. Carlos Gomes para livro em preparação.


Nessas reuniões, salientou-se a excepcional relevância de Carlos Gomes como o primeiro grande compositor das Américas que não só alcançou extraordinários sucessos na Europa como também desempenhou papel de importância no desenvolvimento músico-cultural de uma de suas nações, a Itália.


Lembrando-se que o sesquicentenário de A. Carlos Gomes de 1986 ocorria um ano antes daquele de Heitor Villa Lobos (1887-1959), e assim da sequência altamente significativa de anos comemorativos para estudos de questões relativas às relações entre o Brasil e a Europa e ao complexo do nacional e do nacionalismo, decidiu-se estabelecer uma ponte entre os dois eventos.


Em oportuna coincidência, no "Dia da Música" de 1985, 22 de novembro, data da festa de Santa Cecília, celebrada em Roma com missa solene e concertos, o Govêrno brasileiro declarou, através do decreto 91.971, o ano de 1986 como "Ano Carlos Gomes" e o compositor como "patrono da música no Brasil."


Belem do Para. Foto A.A.Bispo 1981. Copyright

90 anos da morte de Carlos Gomes em Belém


No decorrer das reflexões, relembrou-se que no "Ano Carlos Gomes" de 1986 não se celebrava apenas o seu sesquicentenário, mas sim também se rememorava os 90 anos de sua morte, ocorrida em Belém do Pará. Essa data trazia assim à tona das discussões o retorno do compositor ao Brasil após ter passado grande parte de sua vida na Itália, onde alcançara sucessos e renome, levantando assim questões relevantes para a consideração de seus sentimentos nacionais.


A lembrança do seu retorno ao Brasil no fim da vida, em estado de saúde já grave, e o seu falecimento em Belém merecia ser considerado como particular atenção no "Ano Europeu da Música", uma vez que levantava questões relevantes para a discussão de seus sentimentos patrióticos ou nacionais, de sua consciência de identidade, de seus elos emocionais e mentais com a Europa, com o Brasil e mesmo com as diferentes regiões do país.


Pareceu ser assim oportuno considerar a rememoração de sua morte no Pará antes de comemorar o seu sesquicentenário. Se a sua formação no Brasil e a sua ida à Europa surgiam como relevantes para estudos de seus pressupostos culturais, de sua integração e de seus sucessos na Itália - e até mesmo de sua italianidade - era o seu retorno que prometia mais conhecimentos a respeito da seus sentimentos e ideais relativos ao Brasil, à sua brasilidade, questões que sempre marcaram preocupações pelo nacional na sua personalidade e obra no Brasil.


Para essas considerações, os eventos puderam basear-se em resultados de estudos e encontros realizados em Belém, salientando-se aqueles de 1981 em preparação à fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia. Entre as instituições visitadas, merece ser salientado o Conservatório Musical ou - após mudança de forma jurídica - a Fundação Carlos Gomes.


A morte de Carlos Gomes tinha sido assunto de artigos  de Amassi Carreira Palmeira publicados em jornais de Belém em 1985 ("A morte de Carlos Gomes" ( O Liberal, 1 de janeiro de 1985, 5; A Província do Pará, Belém, 02 e 03 de abril de 1985, 3).


O autor estudou, com base em materiais publicados em A Província do Pará,  o impacto da morte de Carlos Gomes e do comportamento do povo em cortejos fúnebres, o que levou o seu corpo ao Conservatório de Música ( Academia de Belas Artes), o que o conduziu dali ao Cemitério de Nossa Sra. da Soledade, onde ficou vários dias, e o terceiro, que o levou à Catedral e, dali, após grandes exéquias, ao navio Itaipu rumo ao sul do Brasil.


O artigo, nas suas diversas partes, ofereceu assim não só uma pormenorizada descrição dos cortejos como teve a qualidade de chamar a atenção a questões de imagem, pois apenas o renome que gozava Carlos Gomes no Pará justificava a magnitude das cerimônias fúnebres e a grande participação popular salientadas pelo autor. Para manter de forma correta as informações, uma vez que os documentos consultados se encontravam em precárío estado de conservação ou já não mais existiam, Amassi Carreira Palmeira transcreveu na medida das possibilidades palavras de testemunhas da época registradas pela imprensa, o que aumenta o significado de sua contribuição.



Após tratar do impacto da morte de Carlos Gomes e do comportamento do povo no primeiro cortejo, e que denomina de "romaria", o autor trata do traslado dos restos mortais do Conservatório/Academia de Belas Artes para a capela o Cemitérío da Soledade e que foi registrado pela imprensa como o mais extraordinário acontecimento da história registrado pelas crônicas da época. Mais de 10.000 pessoas formaram o imponente préstito, vindas de todos os pontos da cidade e dos mais longínquos bairros.


"Não se pode descrever a massa popular compacta que enchia a frente do Conservatório e cercanias desde as 6 horas da manhã. (...) Muita gente vimos, que não podendo vestir roupa preta, trazia fumo no braço e no chapéu. Às 8 horas em ponto, depois de ter uma grande orquestra, sob a regência do maestro Roberto de Barros executado a imortal sinfonia do Guarania, e após haver o nosso ilustrado amigo e distinto poeta dr. Paulino de Brito feito a apogia do morto, num breve, mas eeloquentissimo discurso, que a todos impressionou vivamente, seguiu o préstito pela Praça Saldanha Marinho, Rua do Riachuelo, Av. da República e Serzedelo Correa. (...) (O Liberal, loc.cit.)


Esta parte do trabalho publicado em várias edições de Amassi Carrera Palmeira adquiriu relevância sobretudo por registrar nomes e as muitas instituições que se fizeram representar no cortejo fúnebre de Carlos Gomes. Deles pode-se constatar, entre outros aspectos, que não só escolas e instituições católicas como tambem várias lojas maçônicas de Belém participaram do préstito, fato compreensível pelo pertencimento do compositor à maçonaria, de tanta influência na Itália e no Brasil


Como descrito de fontes da época, seguiu-se à frente, o Estado Maior do Regimento Militar do Estado e o corpo de cavalaria com a sua banda, trajando grande gala e com a bandeira envolta em crepe. Seguiam-se todas as escolas, levando os alunos grinaldas de flores. Depois seguiram-se o Ateneu Paraense, Instituto Paraense de Educandos Artífices, Colégio do Amparo, Arsenal de Guerra com a banda de música, Escola de Santa Maria de Belém, Colégio e S. José, Colégio Merva, Colégio Antunes, Orphelinato Paranese, Colégio da Imaculada Conceição, Conservatório de Música e Liceu Benjamin Constant, Socidade Propagadora de Ensino, Escola Normal, Sociedade Ordem e Progresso, Clube Guarany com banda de música, Corpo de Bombeiros volutários, Clube Naval do Grão Pará, Ateneu Comercial, Associação Dramática Recreativa e Beneficiente, Centro Republicano Português, Sociedade Vigiense 31 e Agosto, Grupo Velocipédico, Clube Euterpe, Academia de Belas Artes, Grêmio Literário Português, Clube Deus Pátria e Liberdade, Mina Literária, Assembléia Paranese, Sociedade Parajese, Administração do Teatro da Paz, Lojas Maçonicas Aurora Harmonia e Franternidade, Renascença e a Firmeza e Humanidade, Estrada de Ferro de Bragança, Intendência Municipal, A Província do Pará, A Folha do Norte, República, Diário de Notícias, Diário Oficial, Senado e Câmara dos Deputados do Estado, oficialidade do navio peruano Constitucion, ladeando o ministro-cel, UIbarra, Alfândega, Escola dos maquinistas e pilotos, Clube das Violetas, Clube dos machinistas, Sociedade Estrela do Oriente, Sociedade Mecânica Paraense, Sociedade Beneficiente Artística Paraense, Sociedade 28 de Julho, Recebedoria do Estado, Tesouro e Secretaria de Governo, Conselho Municipal, Forum Superior, Tribunal de Justiça, Instituto Nacional de Música do Rio, Junta Comercial, Correio Século de Lisboa, Mala da Europa e outras associações.


No cemitério, oraram o Barão e Marajó, Dr. Firmo Braga, D. Pedro Suarez, consul da Bolivia, Dr. Joaquim Cabral, Maia Filho, Otávio Pires, Julião Veita, Pinto Moita, Hilário de Santana, Vitório de Oliveira, Bertoldo Nunes, Dr. Barroso Rebelo, Dr. Helias Viana Domingos Barreira, Francisco Pacheco, João Paulo Ramos e Silva, Alves Dias, Eustachio de Azevedo, Virgílio Mendonça, Eladio Lima, Raimundo Lameira, Firmino Resende, Jaime Abreu e Theodoro Rodrigues.


"A Loja Harmonia enviou um belo andor onde viam-se uma lindissima grinalda e uma adorá´vel menina vestida de 'Fosca'. Foi uma das expressivas alegorias.


Representaram-se também brilhantemente a colônica israelita, e o corpo cocnsular aqui residente com belas grinaldas. (....)


Junto ao coche a banda do 15° Batalhão tocava sentidas marchas fúnebres."



A música nas exéquias na catedral de Belém e o Congresso Internacional de Música Sacra


Realizando-se os encontros euro-brasileiros de 1985 paralelamente com o Congresso Internacional de Música Sacra em Roma, considerou-se com particular atenção a descrição das exéquias de Carlos Gomes na catedral de Belém segundo os dados transmitidos por Amassi Carreira Palmeira. Transcrevendo relato de jornal da época, o autor oferece significativos dados relativos à configuração sacro-musical das solenidades, das obras apresentadas e dos nomes de participantes.


Tratando do cortejo fúnebre de saimento dos restos mortais do cemitério à catedral, o autor transcreve descrição de jornal que dá testemunho da ocorrência popular e da participação de autoridades e instituições:


"Pela manhã começava a fluir o povo para o cemitério da Soledade, onde se achavam os sagrados despojos de Carlos Gomes, também viam-se ali diversas familias de nossa sociedade que ainda comolcaram flores sobre o ataúde do grande morte. Mais tarde começaram a chegar os carros das comissões da imprensa de Belém, das repartições públicas, das associações, assim como representantes das forças armadas federais, estaduais e guarda nacional, das intendências municipais dos habitantes do interior do Estado, as autoridades de segurança e o povo. Todos esses esperavam a trasladação o grande brasileiro autor de 'O Guarany'. Quando naquele recinto falou-se de que era já hora de partir dali Carlos Gomes o povo começou a colocar-se nas grades dos mausoléus para dali melhor assistir o saimento. (...)

Seguraram as alças até a porta do cemiterio os seguintes drs. Lauro Sodré, Gov. do Estado, dr. Rosado, Intendente Municipal, dr. Cipriano Santos presidente da Câmara dos Deputados, ten.cel. Benedito comandante do I Corpo do Regimento Estadual, e diversos representantes de outras autoridades. (...)


O povo acompanhou o coche à pé desde o cemitério até a Catedral. As janelas das casas por onde passava o préstito estavam apinhadas de famílias. Na Av. o povo afluia, nos passeios nos bancos, assim como esperavam ansiosamente a passagem do grande maestro Carlos Gomes. (...)"



A missa e o ofício de corpo presente de Carlos Gomes surgem como um marco na história da música sacra com acompanhamento orquestral em época na qual já se intensificava o movimento de restauração litúrgico-musical no qual o clero do Pará desempenhou relevante papel. Merecedor de atenção é, assim, a coexistência de obras ainda marcadas pela tradição lírica e instrumental e o Canto Gregoriano dos meninos de côro.


"Na Catedral como fora anunciado celebraram-se as exéquias solenes do imortal Carlos Gomes. A vasta nave da Sé estava repleta de povo e do mais seleto que tem a sociedade paraense. Duas lindas e riquissimas grinaldas em forma de lira rodeavam o ataúde, onde repousavam os restos do maestro da música brasileira. (...)


A missa do Requiem foi celebrada pelo reverendissimo cônego cura D. Mâncio Caetano Ribeiro, acolitado por alguns clérigos e entre êstes o Rev. Cônego Coutinho vigário geral do alto Amazonas.


No coro uma voz suavíssima inebriante ergueu-se então, com acompanhamento do órgão e da grande orquestra. Ouviram-se as primeiras notas desse delicioso poema melancólico Ave Maria de Gounod. (...)


Ninguém voltava-se, todos conheciam a voz de Virginia Sidndey Block, a mesma artista de sangue que sabe tão bem desferir ternuras deliciosas nas cordas vocais como nas cordas do violino previlegiado. Era solene o instante. Ao fundo o sacerdote oficiava num recolhimento ora pronobis!...suplicava ainda a mesma voz num impulso supremo dos crentes. Seguiu-se então a parte principal do programa: a 'Elegia à Carlos Gomes' de Roberto de Barros sobre o motivo da marcha fúnebre inacabada de Carlos Gomes, partes do Guarany e do Schiavo, també´m de Carlos Gomes. As distintas cantoras que cantaram e fizeram parte da orquestra com as vozes nas exequias foram: Filonilia Paiva, Juliana Pena, Cacilda Eirado Martins, Alice Miranda Block, Alice Ribeiro a esposa do prof. Panário e o próprio prof. Panário.

Mas, bem depresssa, outras carícias soluçaram na harpa de Esmeralda Ceervantes. (...)

A 'Apoteose à Carlos Gomes' serviu assim para a apresentção de valiosas composições musicais e aqui o público fez inteira justiça. Também agradou muitissimo o trecho de 'Lágrimas de Cordovil'."

(...)

O oficiante e seus ajudantes ladeados por dois meninos do coro ficaram atrás iniciando os versiculos do Libera me Domine. Novos dobres fúnebres nos campanários e todo o coro vibra, retumba, e reboa pelas abóbadas soturnas e cavernosas do Dies ira. Foi feita a execução do libera-me. À 9:30 horas foi entoado o 1° pater.

As subidas, trinados e gorgeios de aves fazem ouvir-se do alto.

É surpreendente, emocionante, o constrade da música e daquelas singelas melodias.

Nas intercadências dos cânticos religiosos, a nave inteira repercutia a voz de cristal de aligero fantasista como que emissá´rio proposital de pequenos habitantes das matas onde Pery viu revivr na floritura da garganta dos pássaros os cânticos de amor que seu coração enviou ao céu num impulso de paixão.

(...)

À porta da Catedral bandas de música executavam machas fúnebres e acompanharam o feretro até o trapiche do Loyde Brasileiro. (...)" (loc.cit.,)


Materiais de Belém a Campinas: nova partida simbólica de Carlos Gomes


Sob o título "Um novo adeus de Carlos Gomes, que se vai como filho pródigo", O Liberal anunciou, em 11 de agosto de 1985, a entrega de materiais referentes a Carlos Gomes a Campinas.



Esses materiais eram resultantes de trabalhos de Clóvis Silva de Moraes Rego e do fotógrafo Pedro Pinto que, há anos, tinham projetado publicar um livro sobre a vida e a obra do compositor. Para preparar o trabalho, realizaram levantamentos em bibliotecas e arquivos particulares, descobrindo e revelando materiais. A pesquisa tinha sido terminada, mas a obra não fora publicada.


Aproximando-se o ano de celebrações de Carlos Gomes, o fotógrafo decidiu doar os negativos para a Prefeitura de Campinas, uma vez que em Belém ninguém teria mostrado interesse pelo material. Sem esconder a sua frustração por essa pouca valorização da passagem pelo Pará de tão grande personalidade, o fotógrafo tinha a consciência de colocá-los em mãos que prometiam zelar mais cuidadosamente pela memória do compositor, fato compreensível por ter ali nascido, e não apenas escolhido para viver os seus últimos meses de vida, como foi o caso do Pará.


Tratava-se de mais de cem negativos que registravam parte da correspondência pessoal, autorizações de transferência de dinheiro em favor de estudantes carentes no Pará, capa em marfim de uma tecla do piano que tinha sido roubada durante uma exposição, o relógio que parou na hora exata de sua morte, a batuta com que regeu concertos em Belém, uma capa de livreto de Il Guarany encenado no Teatro da Paz, em 1907, e outros objetos.


Entre as fotografias, encontravam-se aquelas da cobertura dos funerais feita por A Província do Pará e de Carlos Gomes regendo algumas de suas obras. Uma ilustração feita no dia de sua morte apresentava significativa alegoria: uma índia oferecendo uma coroa de louros ao compositor ao lado do caixão com o seu corpo.


Importante resultado das pesquisas fora a revelação da sua correspondência com o poeta Paulino de Brito (1858-1919) de 25 de novembro de 1890, onde agradece as suas poesias Noites em Claro. Nela A. Carlos Gomes salienta-se ser "brasileiro legítimo".


Um dos fatos também revelados pelos pesquisadores foi o da doação de quantia ao orfanato do Pará feita pelo compositor por carta endereçada do vapor inglês Potovi a João Costa, em 24 de agosto de 1896. Essa transferência de dinheiro não deveria ser tomada pública através dos jornais. Nela, o compositor que esperava assumir a direção do Conservatório, designava-se expressamente como paraense. Esse gesto de benemerência e o desejo de manter-se anônimo correspondiam a procedimentos do compositor na Itália, onde destacara-se em iniciativas de beneficiência e comiseração por órfãos do círculo de escritores e artistas de sua convivência. (Veja)


"Carlos Gomes e o Nacionalismo" refletido nos 90 anos de sua morte


Lenora Menezes de Brito, em artigo de título "Carlos Gomes e o nacionalismo", publicado em O Liberal (22 de setembro de 1985, pág. 20)  salienta, de início, que a morte de Carlos Gomes em Belém era uma data histórica das mais importantes para a vida cultural do Pará. Pelos 90 anos de seu falecimento, seria oportuno relembrar um dos temas mais debatidos sobre o compositor: o seu nacionalismo.


Para tratar dessa questão, a autora parte de reflexões relativas à literatura. Para ela, o nacionalismo na música deu-se apó,0s ter surgido na literatura. A ficção - o romance, conto e novela - , teria sido um dos gêneros mais cultivados no Romantismo. O romance histórico como consequência desse movimento salientou a cor local, a apresentação da natureza em comunhão com os sentimentos dos personagens, o realce da nobreza de caráter em oposição à vilania, o triunfo do bem e o castigo do mal. O romance histórico correspondeu à tendência para uma visão lírica da realidade. Nele, destacou-se, no Brasil, José de Alencar (1829-1877) que, sob a sugestão de Honoré de Balzac (1799-1850), viu a realidade de forma idealizada.



O romance histórico partia do passado histórico, principalmente medieval, pois quanto mais longínquo e lendário o assunto, mas se aguçava a imaginação do autor. Este procurava reconstituir o clima da época, hábitos de vida, costumes, dando largas à imaginação em criar heróis nacionai e emprestar ao romance histórico força de epopéia moderna. A transformação de personagens em heróis, expressão e uma consciência coletiva, poder-se-ia constatar nos romances indianistas de José de Alencar.


Passando a mencionar a narrativa sempre repetida na literatura segundo a qual Carlos Gomes teria ouvido em Milão anunciarem pelas ruas o romance do Il Guarany, e citando a biografia escrita por sua filha Itala Gomes de Carvalho, segundo a qual o compositor o teria lido de um só folego, a autora considera que, com a sua alma vibrante de brasilidade, o compositor ter-se-ia apaixonado pelo romance, desejando transformá-lo em ópera.


"Naquelas páginas encontrara tudo o que precisava para o seu intento. A saudade da pá´tria, fez com que os sons jorrassem embebidos de espirito brasí´lico, quentes e ensolarados de sol tropical, misteriosos como nossas florestas, coloridas pelo riso escarlate e uma papoula e pelos gorgeios da passarada à solta na mataria." (loc.cit.)


Considerando o nacionalismo na música em geral, lembra M. I. Glinka (1804-1857), que em 1836 levou à cena "A vida pelo Czar", cujo tema é o herói nacional Ivan Sussanin, sendo por esse motivo considerado como o criador da "Escola Nacional" na música. Descobrindo na música de sua terra cultivada pelo povo em regiões afastadas escalas de sons inteiros, e até mesmo a presença dos modos eclesiásticos, procurou usar timbres originais, mostrando o quanto o melodismo europeu empanava e fazia esquecer a presença musical do povo. Para o músico romântico, esse elemento consistiu um forte apelo à liberdade tão própria do Romantismo, sendo que características de rítmo e melodia desse "outro" forneceram as bases da "Escola Nacional".


A música popular tradicional, a música folclórica não-escrita com seus músicos executando o que ouviram dos pais e avós  que oferecia ritmos livres por não estarem presos à notação, tornou-se o material de trabalho para os nacionalistas.


A autora lembra que Carlos Gomes ouvira, na sua Campinas dos idos de 1836, músicos, modinheiros, que lhe transmitiram essa herança. Esse patrimônio seria "parte de uma música pagã", no que ela teria de primitivo. Daí explicar-se-ia o langor de certos temas de sua ópera Il Guarany, como o da ária de Peri no III ato; ainda com Peri - o "nosso índio", "o nosso herói medieval" -. ou a ária Sento una forza indomita, onde a bravura do herói é patenteada por uma linha melódica um tanto rude, de forte brasilidade.


A frase inicial da Abertura ou Protofonia de Il Guarany, pintada em fortes e vibrantes acordes, evidenciaria para L. Menezes de Brito a pujança da terra brasileira, o espírito da aventura, o entrechoque do branco com índio. Perpassando ttoda a obra, em eloquentes modulações, o tema manteria a unidade da obra.


Por fim, a autora lembra que a Abertura passou a ser um segundo hino nacional do Brasil, tal a sua força vinculadora e comunicante. A autora revela aqui uma das fontes na qual baseou-se para escrever o seu texto: o livro Apreciação Musical, de Caldeira Filho. Essa opinião de aqui ter-se um das mais patéticas e elevadas expressões da alma brasileira postas em música seria corroborada pela sua colega Dinah Silveira de Queírós.


Nos encontros euro-brasileiros de 1985, discutiu-se se a possibilidade de outras aproximações ao nacional na música a partir de uma orientação musicológica dirigida a processos culturais. Com a atenção assim dirigida, o predomínio de perspectivas que partem da literatura relativam-se, pois esta mesmo passa a inserir-se em processos de maior abrangência.


De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“Antonio Carlos Gomes (1836-1896) no Ano Europeu da Música de 1985
crepúsculo e morte em Belém- vestígios documentais e reflexões sobre o nacionalismo na imprensa paraense“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 161/12 (2016:03). http://revista.brasil-europa.eu/161/Carlos_Gomes_no_Ano_Europeu_da_Musica.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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Crepúsculo em Belém
Fotos A.A.Bispo 1981 ©Arquivo A.B.E.