O Brasil e a pobreza na Itália no século XIX

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 161

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 161/11 (2016:3)





O Brasil e pobreza na Itália no século XIX como fator de emigração
Arte e beneficiência de corações altos à época do Liberalismo
na obra de A. Carlos Gomes (1836-1896)


50 anos de homenagem a Carlos Gomes em São Paulo (1966)

40 anos do início do programa euro-brasileiro em Milão (1976)

30 anos do Ano Carlos Gomes (1986)



 
A emigração italiana ao Brasil, a vida, as atividades e a integração de seus descendentes em regiões de colonização e em cidades do Brasil, assim como o papel desempenhado por italianos na vida cultural, em particular na vida musical brasileira, determinante no caso de São Paulo, constituem objetos de estudos de extraordinário significado nos estudos de processos culturais relacionados com o Brasil. (Catálogo: Governo do Estado de São Paulo, Imprensa Oficial, 1997)


Importante iniciativa para a conservação de materiais e documentos, da memória e para estudos foi a criação do Museu da Imigração, em São Paulo, em 1993, instalado nas dependências da antiga Hospedaria dos Imigrantes, um conjunto de edifícios construido entre os anos de 1886 e 1888.


Não há outro vulto da história cultural do Brasil que possua maior relevância para os estudos ítalo-brasileiros relacionados com a emigração e a imigração de italianos do que o compositor Antonio Carlos Gomes (1836-1896). Na difusão e na permânencia de sua obra lírica destacaram-se italianos e seus descendentes, e a lembrança de seu nome, de sua vida e obra foi perenizada por personalidades e instituições da colonia ou de círculos de italianos em cidades brasileiras, que a êle levantaram monumentos.


A sua formação no Brasil decorreu em época marcada pela ação de professores e músicos italianos na vida musical do país e a sua cidade de origem - Campinas - foi nas décadas de sua existência centro de região cujo florescimento agrícola mais deveu à vinda de mão-de-obra de imigrantes.


É, porém, a vida posterior de sua obra e da imagem póstuma de sua personalidade que mais revelam os elos de Antonio Carlos Gomes com o complexo temático da imigração italiana no Brasil.


Considerar Carlos Gomes à época de sua vida sob a perspectiva dos estudos da imigração italiana no Brasil não procede por caminhos de imediata evidência. Se na sua criação operística o problema então prementemente atual da escravidão foi tematizado em Lo Schiavo, aquele dos imigrantes que substituiram a mão-de-obra escrava não encontraram similar expressão.


Os caminho para as aproximações são outros: não aqueles dos estudos da imigração, mas sim aqueles da emigração e suas causas. Os desenvolvimentos nos quais o compositor brasileiro se inseriu devem ser considerados antes da perspectiva italiana, do contexto do qual se explica a saída de tantos emigrantes para os países americanos, entre êles para o Brasil.


A atenção dirige-se sobretudo às causas econômico-sociais que explicam o fenômeno emigratório na Itália, à pobreza nas regiões rurais e nas cidades italianas e que, embora secular, atingiu dimensões desesperadoras sob as condições de vida da época da industrialização de centros fabrís como Milão e da política liberal do Reino da Itália.


Integrado na Itália, vivendo em Milão, Carlos Gomes não podia deixar de confrontar-se com a miséria e com os problemas sociais e humanos que foram principais fatores da emigração.


No seu convívio com personalidades da vida social, intelectual e artístico-musical italiana que procuravam mitigar tais situações de desesperança através de atos de benemerência, Carlos Gomes envolveu-se com iniciativas beneficientes a apoios assistenciais. Entre essas personalidades que se destacaram pelas suas preocupações por problemas sociais salientaram-se Antonio Ghislanzoni (1824-1893), escritor e autor de textos tratados musicalmente por Carlos Gomes, e Amilcare Ponchielli (18341886), compositor ao qual se unia por estreitos laços de amizade e que era seu vizinho em Manggianico/Lecco. (Veja)


Sob as condições do liberalismo italiano, a ação caritativa, que no passado tinha sido quase que exclusivamente tarefa da Igreja, deu lugar em parte a um envolvimento mais intenso de idealistas, intelectuais e artistas em iniciativas assistenciais. Questões de beneficiência passaram a estar no centro das atenções.


Congresso internazionale di beneficenza di Milano


A década de 80 iniciou-se com o Congresso internazionale di beneficenza di Milano. Nele trataram-se questões relativas à beneficiência hospitalar e sanitária, de relações entre beneficiência e a ordem pública, assim como ofereceram-se levantamentos estatíscos de fundações beneficientes na Itália e da organização da beneficiência em geral. Considerou-se, em Milão, os objetivos e as atividades da Associação Internacional de Beneficiência e aquelas atuantes nos diferentes países, como a Associação de Beneficiência de Genebra (Bureau central de bienfaisance), ou as associações respectivas na Alemanha e na Espanha.


Esses trabalhos foram publicados em 1882 (Atti del Congresso Internazionale Di Beneficenza Di Milano: Sessione del 1880, Annali di statistica VIII, Serie 2/14, 1882), ano em que se realizou, a 17 de fevereiro, uma Riesposizione Veglia di Beneficenza no Teatro alla Scala que merece particular consideração nos estudos relacionados com Carlos Gomes.


Riesposizione Veglia di Beneficenza


Tanto o compositor brasileiro como A. Ponchielli compuseram obras que foram dedicadas às principais entidades responsáveis pelo evento, a municipalidade e a sociedade orquestral da cidade de Gambalò e aos músicos que com ela colaboraram. Esse fato revela os elos existentes entre o círculo de Ponchielli e Carlos Gomes com a comunidade de Gambolò, cidade lombarda da província de Pavia.


Ponchielli compôs para a Riesposizione o Tutti ebbril, Op. 90,  um "galop sfrenato per pianoforte", dedicado à junta municipal e à Società Orchestrale di Gambalò e uniti (Ed. Ricordi).


Carlos Gomes dedicou a essa sociedade orquestral de Gambalò a sua composição Pensa, uma melodia para mezzo soprano ou contralto, com palavras de Antonio Ghislanzoni. Merecedora de particular atenção é a ilustração da capa dessa obra também editada pela casa Ricordi, uma vez que apresenta uma jovem em atitude meditativa em meio a vegetação tropical, sob folhas de bananeira e cipós.


O desamparo do homem na visão do mundo, mendicância e comoção


A ilustração da edição de Pensa permite que se reconheça os elos entre concepções do homem perdido ou desorientado na vida e a floresta que se manifestam no parque da Villa Gomes, então nos anos de maior intensidade como centro de confraternização cultural e que possuiam os seus fundamentos no edifício de visão do mundo e do homem transmitido na Divina Commedia. (Veja)


O sentido metafórico da necessidade, desamparo e desorientação do homem na floresta da vida terrena, de remotas origens, interagiu em complexas relações com a comiseração sentida pela realidade da pobreza grassante na Itália da época.


A empatia pela situação daqueles que se encontravam desamparados vinha de encontro ao pathos do drama lírico, cujos meios expressivos serviam ao despertar da comoção dos ouvintes. Exemplo significativo do tratamento da mendicância por Carlos Gomes é o Lamento para contralto La Piccola Mendicante, publicado no Album Vocale di A. Carlos Gomes pela Ricordi.


Os órfãos desamparados na ação beneficiente do círculo de Carlos Gomes


Foi sobretudo a assistência social infantil, em particular a de órfãos, que representou a principal preocupação do círculo de intelectuais e artistas ao redor de A. Ghislanzoni, A. Ponchielli e A. Carlos Gomes.


Como mencionado por Gaspare Nello Vetro na sua conferência para o ano Carlos Gomes em Lecco (Veja), uma das recepções da Villa Brasilia que entraram na história foi destinada a ação de beneficiência de órfãos. Se nos brindes durante o banquete que precedeu à sessão artística Carlos Gomes deu vivas à Itália como sendo a sua segunda pátria, foi A. Ponchielli aquele que lembrou das ações beneméritas de assistência aos órfãos.


O envolvimento de Carlos Gomes nas ações movidas pela comiseração aos órfãos teve a sua expressão musical na sua Preghiera dell'Orfano, composta sobre texto de Antonio Ghislanzoni e incluida em álbum de canções do compositor.


Nessa obra, o autor e o compositor colocam-se na posição do órfão: cantam a ida do órfão ao cemitério para encontrar a sua mãe, beijando o mármore negro que cobre o local onde dorme, e, com ela falando como no passado, com o seu nome doce, dele partiu uma prece. Da morte e da vida, meditando o grande mistério, a sua fé abalou-se, escurecendo o seu pensamento. Sendo órfão para sempre, sabia que tudo termina, por demais horrendo é o abandono, por demais amargo é o sobreviver.


O tratamento musical da Preghiera dell'Orfano oferece um exemplo de dramaticidade expressiva na co-participação emocional daquele que canta e se coloca na posição do órfão. O compositor inicia o canto, ao mesmo tempo meditação e prece, em pianissíssimo, pedindo que seja lento e interpretado muito languidamente. Também pianíssissimamente entra a declamação do órfão, a ser cantada com uma simplicidade infantil, cujo desalento é salientado pelas alterações cromáticas descendentes e respectivo tratamento harmônico.




Contrastante com o teor recitativo de trechos declamatórios do poema, a palavra dirigida à mãe morta é tratada por Carlos Gomes liricamente através de um amplo arco melódico em cantabile.



Explicitamente pede Carlos Gomes que a pergunta do órfão à mãe morta seja interpretada de forma declamada, quase falada, ainda que o arco melódico seja ascendente, marcado por expressivo salto intervalar de início. A elaboração cuidadosa do tratamento musical do texto pelo compositor manifesta-se na condução cromática do baixo.



A dramaticidade emocional - que hoje poderia ser sentida como excessiva - do tratamento musical da prece do órfão tem o seu ponto culminante no apelo final "o madre, madre!", entoado de modo dolcissimo, terminando a composição, como iniciou, em pianississimo.



Essa atenção de Carlos Gomes aos problemas da orfandade na Itália coloca em dimensões mais amplas o seu envolvimento em ação de beneficiência a órfãos de Belém quando da sua vinda de retorno ao Brasil pouco antes de sua morte.


Como revelado em texto publicado pela imprensa de Belém por motivo das rememorações do Ano Carlos Gomes de 1986, o compositor, em viagem, mandou que se fizesse uma doação a entidade de auxílio a órfãos da capital paraense, pedindo, ao mesmo tempo, que esse ato não fosse tornado público. (Veja)


De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.) “ O Brasil e pobreza na Itália no século XIX como fator de emigração. Arte e beneficiência de corações altos à época do Liberalismo na obra de A. Carlos Gomes (1836-1896)“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 161/11 (2016:03). http://revista.brasil-europa.eu/161/Brasil_e_a_pobreza_na_Italia.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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