A. Ponchielli e A.Carlos Gomes
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 161
Correspondência Euro-Brasileira©
A. Ponchielli e A.Carlos Gomes
ed. A.A.Bispo
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BRASIL-EUROPA 161
Correspondência Euro-Brasileira©
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N° 161/08 (2016:3)
Quell'uomo degno, quell'artista distintissimo...(G. Verdi)
Amilcare Ponchielli (1834 - 1886) e Antonio Carlos Gomes (1836-1896)
duas Villas, dois parques, dois músicos - relações paisagísticas e músico-culturais
sob o signo de I Promessi Sposi de Alessandro Manzoni (1785-1873)
Visita à Villa Gomes em Maggianico
e ao Civico Museo Manzoniano em Lecco
50 anos de homenagem a Carlos Gomes em São Paulo (1966)
40 anos do início do programa euro-brasileiro em Milão (1976)
30 anos do Ano Carlos Gomes (1986)
A Villa Gomes em Maggianico (Lecco), construída por Antonio Carlos Gomes, que nela viveu e compôs durante alguns anos da década de oitenta do século XIX, é o mais significativo monumento que lembra o compositor brasileiro na Europa, não havendo outra cidade ou região no Velho Mundo que seja mais marcada por um nome de personalidade brasileira do que essa cidade no Lago di Lecco, um braço do Lago di Como.
A Villa Gomes é hoje o maior monumento arquitetônico, cultural e paisagístico local. Abrigando na atualidade a escola de música municipal, embora reformada e modernizada para as suas atuais funções, mantém viva a memória do compositor brasileiro. (Veja)
A Villa Gomes é o marco referencial do bairro, encontrando-se continuamente presente na vida de seus moradores, de docentes e alunos da escola, assim como dos visitantes do seu parque. Em dizeres à sua entrada e em quadro informativo no seu parque, recorda-se o seu proprietário, a sua origem e a sua formação no Brasil, assim como o fato de ter sido ela o principal centro do grupo de intelectuais e artistas da Scapigliatura lombarda, movimento que marcou a história do pensamento, das artes e da música da Itália.
A Villa de Carlos Gomes na Via Armonia
Esta designação não poderia ser mais adequada para uma via onde se localizam um edifício e um parque tão marcados pela música no passado e no presente.
A casa de Carlos Gomes, porém, foi mais do que uma residência de músico; foi um centro de convívio humano, artístico e de convívio de personalidades confraternizadas por afinidades de pensamento, de visão do mundo, do homem de vida, assim como por princípios éticos. Referências às recepções que ali se realizaram falam de um espírito de harmonia, confraternidade, de cultivo de altos ideais, de auxílio mútuo e de de beneficiência.
O conceito de harmonia na via onde se situa a Villa Gomes não deve ser assim entendido superficialmente, mas como indicativo de uma visão do mundo e do homem e de uma ética voltada ao humano em geral. Relaciona-se, assim, com o conteúdo simbólico do brasão da Villa Gomes com a sua lira substituindo a esfera armilar da bandeira imperial brasileira e a grande águia de asas abertas com um G no seu peito que se encontra no painel pintao ao alto de suas escadarias. (Veja) A lira do brasão da Villa Gomes fala da harmonia de cordas de alma do homem que trabalha em si mesmo e que se transforma em instrumento, cuja música se encontra a serviço de altos ideais e da edificação do homem e da sociedade.
A Villa Ponchielli vizinha à Villa Gomes e o seu parque
Aqueles que procuram a Villa Gomes, vindos de Lecco, passam primeiramente por uma grande área protegida por altos muros e cujas centenárias árvores escondem uma grande mansão de janelas cerradas e deteriorada.
Trata-se da Villa Ponchielli, residência do compositor Amilcare Ponchielli. Foi construída pelo engenheiro Attilio Bolla, o mesmo arquiteto da Villa Gomes. Difere desta, porém, pelas suas menores dimensões e simplicidade do projeto, constituindo um volume quadrangular com duas faces principais com tímpanos criados através do realce em triângulo de linhas. Entre os poucos elementos decorativos, distinguem-se as molduras clássicas das janelas.
O seu grande parque era aberto à visitação por uma área lateral de estacionamento de veículos, sendo com ela vinculado através de uma ponte e caminho elevado para pedestres.
Esse parque da Villa Ponchielli defronta-se lateralmente com a entrada do parque que leva à Villa Gomes, apagando-se discretamente por detrás da vegetação que o encobre.
Os parques que rodeiam as mansões de A. Ponchielli e Carlos Gomes constituem, com o seu patrimônio vegetal, um grande complexo de considerável significado ambiental e que, no passado, foi ainda mais rico em diversidade e variedade de espécies. A Villa Gomes com as plantas trazidas do Brasil por Carlos Gomes, garantia a presença da natureza brasileira nesse todo que assume características florestais.
O silêncio da Villa Ponchielli à sombra da Villa Gomes
Enquanto que a Villa que traz o nome do compositor brasileiro apresenta-se hoje renovada e cheia de vida, desempenhando funções de escola de música, a Villa Ponchielli mostra-se como caída no esquecimento e no abandono. Tendo sido adquirida no passado por Gerosa Crotta, membro de uma família de Lecco, foi deixada ao Istituti Airoldi e Muzzi.
A participação da Villa Ponchielli na caracterização de Maggianico como localidade de cultura e artes e como marco referencial passa a segundo plano relativamente à Villa Gomes, é silenciada e parece que a memória de seu significado tende a desaparecer.
Esta situação atual não deve, porém, obscurecer prioridades e relações. Ponchielli foi o predecessor de Carlos Gomes em Maggianico e a sua Villa rodeada de árvores o modêlo impulsionador da muito mais representativa residência de Carlos Gomes.
A Villa Gomes superou-a não só em dimensões e qualidades estéticas construtivas e de paisagismo, como também no seu significado cultural, uma vez que tomou a si o papel de constituir centro da vida artística e intelectual. Da Villa do compositor brasileiro pode-se contemplar o arvoredo da Villa de Ponchielli.
O aspecto humano dessa superação manifestada de forma tão evidente não pode deixar de ser considerado, uma vez que abre perspectivas para análises psicológico-culturais e para tentativas de aproximação a visões do mundo e do homem da colonia de homens do pensamento de Maggianico.
O intento de construção de tal residência magnificente e do seu grandioso parque ao lado da Villa daquele do qual recebeu orientação e que o acolheu, sugere à primeira vista antes desagradavelmente ímpetos por parte do brasileiro em manifestar do sucesso alcançado, falando da auto-afirmação de um estrangeiro no país que o acolheu e de intentos de ultrapassar seus mentores.
Lembrando-se das origens modestas de Carlos Gomes e do fato de receber subsídios para o prosseguimento de seus estudos em Milão, a vista da grande casa construída em Maggianico sugere ao observador superficial um testemunho da ostentação de um novo-rico, de um artista que adquirira riqueza com execuções de suas obras no Brasil, um intento de demonstração e auto-afirmação que teve um fim humilhante: as dívidas não saldadas levaram o compositor à falência, obrigando-o a dela desfazer-se após alguns anos, mudando-se para modesto apartamento em Milão.
Além do mais, a Villa Ponchielli, na sua discreta reserva, apagada, surge à primeira vista, em confronto com a Villa Gomes, como expressão de uma distinção mais recatada, menos ostentatória, levando o observador a colocar-se empaticamente na situação de Ponchielli. Não teria este, ao ver erguer-se a seu lado a villa-palácio do sulamericano sentido-se ferido, com despeito, ciúmes ou inveja?
Essas impressões e suposições de observadores desavisados não são totalmente pertinentes, pois não fazem jus aos dados revelados em documentos da época. Ainda que Antonio Ghislanzoni (1824-1893) mencionasse que a residência de Carlos Gomes poderia - mais do que a Ponchielli - ser designada verdadeiramente como villa, e até mesmo palácio, salientando a quantidade de dólares que Carlos Gomes traria do Brasil ("...enorme massa di dollari e di trofei mietuti a Bahia e a Rio") (Veja) tem-se referências da intensa participação de Ponchielli nas reuniões da Villa Gomes, documentando a sua grandeza de espírito e da estreita amizade em comunhão de princípios e visões com o compositor brasileiro.
Assim considerando, ter-se-ia aqui um indício das qualidades humanas de Ponchielli, conhecidas da frase proferida por Giuseppe Verdi (1813-1901) ao tomar notícia de sua morte: Quell'uomo degno, quell'artista distintissimo... Mais relevante para os estudos de processos culturais, porém, é considerar esses elos de confraternidade entre Ponchielli e Carlos Gomes nas suas relações de afinidade de pensamento e de princípios éticos de comportamento e de ação edificante e edificadora.
É esse compartilhar em comum edifício de concepções, visões e princípios de auto-aperfeiçoamento e ação ao próximo que permite que se considere a Villa Gomes não como questionável expressão de sulamericano enriquecido mas como monumento de um círculo unido por elos de confraternização e mesmo ideais e deveres.
Ponchielli como exemplo de caráter no Brasil
Amilcare Ponchielli encontra-se vivo na vida musical do Brasil quase que exclusivamente através da sua ópera La Gioconda, em particular da popular "Dança das Horas". Entretanto, Ponchielli desempenhou um papel não sem significado no desenvolvimento das reflexões iniciadas em São Paulo, em meados da década de 60 do século passado.
Amilcare Ponchielli foi lembrado, no âmbito de homenagem a Carlos Gomes no Conservatório Musical Carlos Gomes de São Paulo, em 1966, como personalidade exemplar pelas qualidades humanas, pela sua dignidade pessoal e artística, pela sua benignidade e pelo seu altruísmo, como aquele que apoiava desinteressadamente os seus alunos e amigos. Segundo Armando Belardi, segundo a sua própria experiência de vida, isso o distinguia de muitos músicos e musicógrafos, que seriam pernósticos, movidos por ambições, pretensões, vaidades e ímpetos de auto-afirmação que se manifestavam em críticas desmerecedoras de outros e que evidenciariam deficiências quanto à educação e cultivo pessoal.
Essas qualidades de caráter de Ponchielli deveriam ser consideradas nos estudos de A. Carlos Gomes. Este, segundo aqueles que o conheceram em vida, teria sido sobretudo quando jovem impetuoso, enérgico, até mesmo agressivo, distinguindo-se, porém, por detrás desse comportamento, benignidade e mesmo docilidade. Na realidade, Carlos Gomes teria passado por um processo de auto-aperfeiçoamento, de ascensão auto-edificadora através de grande esforço pessoal e trabalho em si próprio até alcançar os pináculos dos quais poderia atuar na construção guiada por valores do homem e da sociedade.
Essas colocações de A. Belardi incitaram a reflexões, pois êle próprio e outros músicos ítalo-brasileiros eram vistos, em particular por aqueles marcados pela cultura francesa, como mais diretos ou francos no tratamento pessoal, menos refinados quanto à expressão e à distinção social.
Quais seriam os pressupostos culturais, de personalidade e de formação do músico paulista que possibilitaram a sua integração no meio italiano e como ter-se-iam transformado nas suas expressões, atitudes, modos de vida através dos seus esforços de auto-edificação nos seus elos com concepções do mundo e do homem de sua época e quais teriam sido as consequências desse cultivo pessoal para a sua obra?
Seria a caiporice que A. Carlos Gomes sempre acentuou como o "Tonico de Campinas" não tanto uma expressão de consciência pátria mas sim expressão de modéstia e simplicidade de um homem que passara por um processo de auto-cultivo através de muitos esforços?
Haveria dimensões mais profundas quanto a ideários de caráter e função das artes que poderiam abrir novas perspectivas na consideração de animosidades que no passado levaram a polêmicas no exemplo do conflito Mário de Andrade/Armando Belardi?
Essas e outras reflexões vinham de encontro às preocupações de renovação de áreas de estudos culturais através de uma orientação da atenção a processos, o que levou à fundação de uma organização correspondente de pesquisa e prática (Nova Difusão, 1968).
A atenção a Ponchielli nos estudos euro-brasileiros na Europa
Com o início do programa euro-brasileiro na Europa, em meados da década de 70, Amilcare Ponchielli voltou a ser considerado, inicialmente sob a perspectiva dos estudos de música sacra com acompanhamento orquestral em relações com o Brasil no intuito de reconsideração do século XIX na pequisa.
Em estudos desenvolvidos em instituições alemãs e em viagens a cidades do norte da Itália procurou-se estudar o papel desempenhado pelo compositor bávaro Johann Simon Mayr (1763-1845) na música sacra através da sua atuação em Bergamo e, em sequência, de G. Donizetti (1797-1848), o seu principal discípulo, cujas obras foram amplamente difundidas no Brasil. Revelaram-se em ambos os casos elos com a maçonaria, o que veio de encontro a constatações de que muitas personalidades da vida sacro-musical da época não sentiam contradições entre religião e o ideário e princípios maçônicos. Esses estudos trouxeram á consciência também o significado da maçonaria na vida cultural em geral e sobretudo musical na Itália, no caso, em particular, em Milão, cidade de formação e atuação de Carlos Gomes. Esses estudos fizeram com que a vida de A. Ponchielli surgisse sob nova luz. Em visitas a Cremona e Bergamo, procurou-se considerar in loco o contexto que explica a inserção do compositor em tradição musical que não conhecia discordância entre a prática da música sacra e os ideais maçônicos, apesar das admoestações eclesiásticas. Ponchielli foi organista e autor de obras memoriais a G. Donizetti, tendo escrito, no seu centenário, uma cantata para o traslado dos restos mortais do compositor a Bergamo, em 1874.
O caminho de vida de Ponchielli revela singulares parelelos com aquele de Carlos Gomes.
Foi um músico proveniente de contextos provincianos que, após os seus estudos no Conservatório de Milão, atuou profissionalmente como músico de igreja e regente de banda. Ainda que atuando como organista da igreja de Sant'Ilario em Cremona e mestre da Guarda Nacional em Piacenza, o seu alvo principal da carreira artística era a ópera. Também Carlos Gomes, nascido no interior de São Paulo, formado na prática musical de igrejas e de música de banda, saindo da província para estudar o principal conservatório do Brasil da época e a seguir na Itália, teve como ideal a ópera. Em ambos os casos pode-se reconhecer personalidades com ímpetos de ascensão, que para tal, com muitos esforços, enfrentaram e venceram obstáculos e experimentaram por um processo cultural transformador de passagem do ambiente provinciano ao cosmopolita de grandes cidades.
O significado de I Promessi Sposi de Ponchielli - Teresina Bambilla (1845-1921)
Muito jovem, Ponchielli distinguiu-se, em 1856, com a sua ópera I Promessi Sposi, realizada no Teatro Concordia, em Cremona.
Após La Savoiarda, em 1860, e Roderico, Re di Goti, em 1863, alcançou sucesso com uma nova versão de I Promessi Sposi, em 1872.
Com Le due gemelle, demonstrou a sua aptidão para a composição de ballets. 1876 foi o ano do seu grande sucesso, La Gioconda, com Libretto de Arrigo Boito (1842-1918).
No ano em que se construia a Villa Gomes em Maggianico, Ponchielli criava a ópera Il figliuol prodigo. Foi neste ano de 1880 que foi nomeado a Professor de Composição no Conservatório de Milão e foi nessa posição que participou das recepções da Villa Gomes.
Entre os seus alunos, distinguiram-se, entre outros, G. Puccini (1842-1918) e P. Mascagni (1863-1945). Em 1882, escreveu Sulla tomba di Garibaldi, demonstrando a sua admiração pelo herói da unificação italiana e que era também maçom.
O períódico dominical Gazzetta Musicale die Milano, sob a direção do editor Giulio Ricordi, de responsabilidade editorial de Salvatore Farina, dedicou textos elogiosos a Ponchielli nos anos de apogeu da Villa Gomes. Na sua edição de 27 de janeiro de 1883, comunicava o sucesso de La Gioconda no Teatro alla Scala de Milão, pela primeira vez com luz elétrica. Essa novidade técnica, que marcou o ano nos teatros italianos, foi relembrada em retrospectiva na edição o dia 1 de janeiro de 1884, assim como o sucesso do Il figliuiol prodigo em Turim e o sucesso de La Gioconda em Londres, oferecendo-se uma biografia pormenorizada do compositor.
Uma particular atenção merecem os elos de Ponchielli com a Rússia. Em 1884, foi convidado para ir a S. Petersburgo, onde teve entusiástica recepção. Em 1885, escreveu a sua última ópera, Marion Delorme.
Os elos de Ponchielli com o Brasil foram possibilitados pela amizade sua e de sua esposa, o soprano Teresina Brambilla, com Antonio Carlos Gomes e sua família, que tornou-se seu vizinho em Maggianico. Através de Teresina Brambilla, o compositor brasileiro relacionou-se com uma família de cantores que se distinguiram na história operística do século XIX. A tradição familiar de canto em que se formara Teresina Brambilla, incluia o soprano leggero Teresa Brambilla (1813-1895), de renome internacional, sua tia, assim como suas irmãs Marietta (1807-1875) e Giuseppina (1819-1903),
Teresina foi considerada como a ideal intérprete de obras de Ponchielli, com quem casou em 1874. Personificou Lucia em I promessi sposi na inauguração do Teatro Dal Verme em Milão, em 1872, Gioconda na sua obra de mesmo título, em 1876, e Lina em La Savoiarda, em 1877. Distinguiu-se em obras de Verdi (1813-1901) e na recepção de Richard Wagner 81813-1883) na Itália como Elsa em Lohengrin. Sobretudo o fato de ter interpretado Elena em Mefistofele de Arrigo Boito (1842-1918) salienta a sua proximidade a círculos de intelectuais e artistas nos quais se inseriu Carlos Gomes.
I Promessi Sposi de Alessandro Manzoni (1785-1873) e Maggianico
Na ocasião de sua pela primeira vinda a Lecco, Ponchielli encontrava-se envolto em aura de sucesso, com aura de personalidade marcada ao mesmo tempo por incoformismo relativamente a convenções e normas, benignidade, distinção e nobreza de caráter.
Ponchielli, que havia passado por más experiências e sido alvo de injustiças, sentiu-se transportado em Lecco para um mundo idílico, distante das intrigas e baixezas da sociedade de uma cidade agitada e em transformação como Milão.
A distância em meio à paisagem montanhosa parecia oferecer condições para fruir os sucessos obtidos sem deixar-se cair na vertigem da vaidade, preservando a modéstia e a serenidade interior. Surgia como um ambiente adequado para o artista refletir sobre o passado e sobre projetos ideais de obras para o futuro. Lecco surgiu para Ponchielli como um mundo no qual podia distanciar-se dos males por que havia passado e precaver-se dos perigos da falta de modéstia.
Também esses motivos podem ser aplicados a Carlos Gomes, uma vez que também passara por dificuldades humanas, sofrera com injustiças, e alcançara grandes sucessos que traziam em si riscos provindos da vaidade e de bajulações. Carlos Gomes foi marcado pela fascinação que levou a Ponchielli a Lecco, recapitulando o amor que este sentiu pela sua paisagem no cimo de seu sucesso. O significado do idílio paradisíaco da região correspondia a concepções mais profundas de paraíso terreno na tradição de Virgilio no contexto mais abrangente da Divina Commedia de Dante representado na Villa Gomes. (Veja)
O projeto de Ponchielli de construir de uma residência nessa região marcada pela arte, pela extraordinária natureza e pela simplicidade de seus habitantes, foi amadurecido durante a sua permanência em Lecco, onde dedicou-se a conceber e elaborar obras. Nessa época, viveu, no bairro do Caleotto de Lecco, na Villa em que residira em alguns períodos de sua vida Alessandro Manzoni, o principal escritor e poeta italiano, autor de I Promessi Sposi.
O Civico Museo Manzoniano, Lecco
Com o nome de Manzoni vincula-se a imagem de Lecco como uma das mais belas regiões do mundo e que pode explicar a intensidade do fascínio por ela exercido em Ponchielli e Carlos Gomes.
Para além de suas qualidades paisagísticas e climáticas, a extraordinária atração pela região por parte de literatos, artistas e músicos explica-se pelo fato de ser Lecco a cidade decantada por Manzoni. Este tinha ali passado momentos felizes de sua infância e juventude, de modo que a cidade e sua região surgia à luz dessas recordações iluminadas.
A casa em que vivera, habitada primeiramente por Giacomo Maria Manzoni, segundo documento do início do século XVII, permaneceu residência da família Manzoni, ali nascendo quase todos os antepassados do escritor. A casa foi por êle vendida em 1818 a Giuseppe Scola, mudando-se para Milão. Em Milão e numa villa em Brusuglio, passou a escrever o I Promessi Sposi, uma obra que remete à terra de Lecco onde vivera momentos inesquecíveis como criança e jovem.
Manzoni publicou o romance com o sub-título "Storia milanese del secolo XVII, scoperta e rifatta.." em primeira versão em 1827 e, em versão definitiva, em Milão, em 1840/42. Essa obra, celebrada como a primeira do moderno romance italiano e uma das mais, senão a mais importante da literatura italiana do século XIX, tornou-se amplamente conhecida, constituindo desde então objeto obrigatório da formação de gerações.
O I Promessi Sposi não foi apenas tratado musicalmente só por Ponchielli. Deve-se lembrar sobretudo de Errico Petrella (1813-1877) que, com libreto de Antonio Ghislanzoni (1824-1893), escreveu uma ópera I Promessi Sposi, cuja estréia deu-se no Teatro Sociale de Lecco em outubro de 1869. Petrella foi uma das personalidades que fizeram parte do círculo de pensadores e artistas de Maggianico.
O I Promessi Sposi, tão ligado à villa de Manzoni em Lecco, surge como importante fator que levou à construção da Villa por Ponchielli e, em sequência, à Villa Gomes.
Súmula do romance I Promessi Sposi - e suas lições
O romance passa em época da presença espanhola no Ducado de Milão entre 1628 e 1630 e trata do amor de dois jovens noivos, Renzo e Lucia, que viviam em Lecco e que pretendiam casar-se. Esse casamento era porém impedido por Don Rodrigo, representante do poder espanhol na região, interessado em Lucia. Devido a esses obstáculos, os enamorados fugiram de Lecco, refugiando-se Lucia em convento de freiras em Monza. Renzo dirigiu-se a Milão. Aqui, por encontrar-se em meio a uma sublevação popular, foi acusado de agitador, sendo preso. Pode, porém, fugir, refugiando-se junto a um familiar em Bergamo.
Nesse interim, Lucia é levada a um burgo sobre alto rochedo, dominado por um temido potentado. Este, impressionado pela pureza de Lucia e pela ação do arcebispo de Milão, converte-se e torna-se um soberano pacíico e magnânimo. Com a sua mediação, Lucia é confiada a uma família de bens de Milão. Procurada pelo seu noivo em época em que a cidade se encontrava assolada pela peste, é encontrada trabalhando como enfermeira em lazareto.
Como Don Rodrigo morrera com a peste, ambos puderam casar-se. Transferiram-se para uma localidade nas proximidades de Bergamo, onde Renzo montou uma tecelagem de seda.
O feliz casal tira do caminho de vida que tinham percorrido a lição de que infelicidades e necessidades, embora frequentes tanto por culpa de próprias ações como de circunstâncias ou do destino, podem ser mitigadas através da fé, sendo colocadas a serviço de uma vida melhor.
O romance, decorrendo em época da presença espanhola e tematizando a opressão sob o tirano estrangeiro e a libertação final do seu jugo, adquiriu uma particular atualidade no contexto do movimento de libertação e unificação italiana do século XIX.
A escolha de Lecco e a idealização da construção de uma residência na região por Ponchielli - e em sequência por Carlos Gomes - possuem dimensões políticas, culturais e humanas no contexto italiano. No caso de Carlos Gomes, relacionaram-se de forma complexa com o Brasil.
O romance de Manzoni fala de desejos de libertação de jugo despótico, ou seja de libertação e liberdade; de ações de benemerência e assistência, de fruição feliz em vida simples na serenidade de região idílica de uma vida afastada dos grandes centros. É essa vida que possibilita a meditação da história e dela tirar lições sobe os caminhos percorridos que, embora marcados por infelicidades, injustiças e percalços, levam através de todos os esforços guiados por um ideal a uma situação feliz.
Teria sido, neste sentido, a Villa Ponchielli e a Villa Gomes os locais correspondentes ao ideal da vida feliz alcançada por Renzo e Lucia, transportando para Maggianico o idílio das proximidades e Bergamo e onde se podia meditar e tirar lições dos caminhos percorridos.
Na consideração do papel exercido pelo romance de Manzoni em Ponchielli e Carlos Gomes não se pode esquecer afinidades quanto a visões do mundo e do homem, uma vez que também Manzoni foi um dos grandes nomes da maçonaria italiana. Exemplo significativo da admiração de Manzoni por intelectuais italianos maçons foi Giosuè Carducci (1835-1907).
De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo
Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Amilcare Ponchielli (1834 - 1886) e Antonio Carlos Gomes (1836-1896): duas Villas, dois parques, dois músicos - relações paisagísticas e músico-culturais sob o signo de I Promessi Sposi de Alessandro Manzoni (1785-1873)“.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 161/08 (2016:03). http://revista.brasil-europa.eu/161/Ponchielli_e_Carlos_Gomes.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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Fotos A.A.Bispo 2016©Arquivo A.B.E.