Malaios e Botocudos
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Punta Arenas. Chile. Foto A.A.Bispo 2008. Copyright


Malaca. Fotos A.A.Bispo 2017.Puinta Arenas Chile 2008©Arquivo A.B.E.

 


A.A.Bispo
N° 167/7 (2017:3)


„...como os Botocudos e outros habitantes das florestas sulamericanas.“

Malaios e indígenas na literatura de viagens e etnográfica do século XIX
- George Finlayson (1790-1823) -
Relembrando indígena no monumento a Fernão de Magalhães em Punta Arenas, Chile

 
A visita à exposição no galeão „Flor do Mar“, reconstruído a serviço do Museu Marítimo de Malaca, encetou reflexões relativas a Henrique de Malaca, escravo de Fernão de Magalhães (I480-1521) e que, na primeira viagem de circum-navegação do globo, passou pelo Brasil.

Foi, assim, o primeiro malaio que esteve no país. O museu de Malaca trata sobretudo do papel desempenhado nas últimas décadas na literatura histórica romanceada da região nas suas relações com os fatos históricos a serviço da autovalorização patriótica de vários países da região. (Veja)

O fato, porém de tratar-se de um malaio proveniente de Sumatra que, na passagem de Fernão de Magalhães pelo Rio de Janeiro certamente também teve contato com indígenas, levanta questões relativas ao encontro de nativos dessas duas regiões tão distantes entre si, para o qual, porém não se possui informações nas fontes.

Um fato, porém, deve ser considerado: os navegadores levavam consigo na pessoa de Henrique um jovem nativo que, apesar de batizado e adaptado, deles se distinguia na aparência física, em costumes, comportamento e talvez mesmo disposição mental e psíquica, o que não poderia ter deixado de influenciar o seu encontro com os indígenas da América do Sul.

A exposição de Malaca apenas sugere aproximações etnológicas, apresentando pinturas romântico-sentimentais com retratos da vida e o quotidiano dos malaios da região.

Punta Arenas, Chile. Foto A.A.Bispo 2008

Indícios de diferenças culturais podem ser intuidas na menção da crônica da expedição e que descrevem Henrique como sendo ocioso, melindroso, astuto, rancoroso e vingativo, tendente a passar o dia na esteira quando não tivesse ou fosse obrigado a trabalhar. Essa menção marcou a imagem de Henrique na literatura romanceada da viagem de F. de Magalhães.

„Enrique, nuestro intérprete, el esclavo de Magallanes, resultó ligeramente herido en el combate, lo que le sirvió de pretexto para no bajar a tierra, donde se necessitaban sus servicios, y pasaba el dia entero ocioso, tumbado en su estera.“ (A. Pigafetta, Primer Viaje en torno del Globo, trad. F. R. Morcuende, Madrid: Espasa Calpe, 1999,116).

Malaios comparados com indígenas em George Finlayson

A comparação de malaios com indígenas sul-americanos não deixou de marcar a literatura de viagens e a história da Antropologia e Etnologia, influenciando teorias relativas a origens.

Essa comparação pode ser encontrada em uma obra de grande difusão no século XIX e cujos dados foram utilizados em outras publicações, de ilustração ou de ensino da juventude: o livro de George Finlayson, cirurgião militar e naturalista escocês sobre a missão ao Sião e Hue, a capital da Cochinchina, nos anos de 1821 e 1822, publicada em 1826 com um prefácio do seu editor, Thomas Stamford Raffles (1781-1826), o fundador de Singapura e o seu maior vulto histórico. (Veja) (The Mission to Siam and Hue, the capital of Cochin China, in the years 1821-2, from the Journal of the late George Finlayson, Esq.,Assistant Surgeon of His Majesty's 8th Light Dragoons, Surgeon anad Naturalist to the Mission,1826).

Finlyson, que entrou na história das ciências naturais pelos seus estudos de Botânica e Zoologia, deixou  registros sobre povos da Tailândia e da península malaia que forneceram bases para os estudos e para a literatura voltada a povos e países por várias décadas, também em países de língua alemã.

Baseando-se nos dados de Finlayson, o pedagogo e escritor August Wilhelm Grube (1816-1884) redigiu texto sobre os malaios na sua obra de retratos geografícos de caráter ou característicos de países que, considerando textos vistos como modelares da literatura, serviu para o ensino da Geografia no ensino secundário e para a leitura instrutiva de interessados ávidos de conhecimentos.

Com esse intuito, foi obra significativa na história da Geografia, na instituição da Geografia nas escolas alemãs e, na sua orientação segundo caracteres e imagens, de interesse para os estudos teórico-culturais atuais. (Geographische Charakterbilder in abgerundeten Gemälden aus er Länder- und Völkerkunde ... II, 17 Ed. rev. e aum., Leipzig: Friedrich Brandstetter, 1885,289-290)

O fato de Finlayson ter encontrado semelhança dos malaios com os Botocudos do Brasil permitem reconhecer a imagem negativa que possuía desses indígenas e que, com o seu texto, repassou à literatura que nele se baseava.

Expansão malaia em comparações com Fenícios e Gregos

Primeiramente, Finlayson oferece um panorama dos caminhos históricos dos malaios na sua expansão por grande parte do Sudeste asiático e mesmo do Pacífico, comparando-os nesse processo colonizador com os antigos Fenícios e Gregos.

„Já antes de se estabelecerem em Malaca, os malaios já tinham ocupado uma grande parte da ilha de Sumatra, depois estabelecendo-se nas outras ilhas Sunda, nas Filipinas, em vários grupos de ilhas austrálicas e nas mais distantes ilhas da Austrália encontram-se tribos malaias, que na sua formação física, religião e constituição política apresentam grande semelhança com os malaios de Malaca. Formaram há tempos uma grande nação, que desempenhou um brilhante papel na Ásia; faziam amplo comércio com numerosos navios próprios e enviavam, como no passado os Fenícios e Helenos, colonizadores às mais distantes regiões.“ (ibidem)

Finlayson via no sistema social e político dos malaios a principal razão de sua decadência como nação, tendo sido assim fatores internos malaios os responsáveis pela situação de fraqueza em que já se encontravam à época da chegada dos europeus.

„Muitos navios da China, Cochinchina, Sião e Hindustão movimentavam os portos dos malaios em Malaca. Como os povos germânicos na Europa, tinham um sistema de traços feudais, mas isso foi a razão de sua fraqueza e de sua decadência. Tanto mais aumentava o poder dos grandes vassalos, tanto mais aumentava as dissensõs internas e revoltas. A alta nobreza fêz a pequena nobreza de si dependente, mas ambos - o Oranglai - oprimiam o povo, que era constituído sobretudo por escravo. A força interna da nação malaia já esta esgotada quando os holandeses e os britânicos chegaram às águas índicas e acabaram por vez com a sua soberania.“ (ibidem)

Após descrevê-los quanto à aparência física, passa a considerá-los quanto às suas características de „selvageria“, estabelecendo uma distinção entre os da Ásia e os do Mar do Sul.

„Os malaios pertencem a uma raça humana singular. São fortes, de fibras, teem uma cor marrom escura, cabelo longo, negro, um nariz grande mas achatado e olhos grandes, fogosos e brilhantes. Com repentes que chegam à cólera, selvageria incontrolada, tara de roubo e assassínio os caracterizam na Ásia; as tribos nas ilhas do mar do sul são mais ternos, benevolentes, sociais, abertos e honestos e se distinguem pelas belas e regulares formas de seu corpo.“ (ibidem)

A visão negativa dos malaios devido ao Islão - „normandos“ da Ásia

O quadro negativo que oferece dos malaios asiáticos relaciona-se no seu texto com o fato de serem muçulmanos, na sua maioria. Na sua tendência ao comércio, à guerra e ao roubo poeriam ser comparados com os normandos da Idade Média européia, uma comparação compreensível pelo fato de ser o autor britânico.

„Os malaios asiáticos são na maioria maometanos, amam o comércio, a guerra, o roubo e a pilhagem. Foram designados como os normandos da Ásia, e com toda a razão.“

Finlayson salienta modos de vida e de comportamento de malaios que justificariam a sua comparação com indígenas da América do Sul.

„Ousados e empreendedores nas suas viagens marítimas, desprezam as artes da vida civilizada. Quase toda a vida passam na água, frequentemente em pequenas canoas, nas quais mal podem-se deitar para descansar, e apesar disso acha-se nesses Sampans frequentemente um homem, a sua mulher e algumas crianças, cuja sobrevivência apenas depende do sucesso de sua pesca. Têm completamente a falta de cuidados pelo futuro, como é próprio par a vida sem cultivo, crua. Tendo feito as suas refeições, deitam-se ao sol, e, se este é por demais quente, à sombra de uma mangueira, até que a fome os chama de novo à atividade. Raramente possuem alguns trapos para se proteger dos raios queimantes do sol de meio-dia ou da garoa perniciosa da noite; toda a suavidade, alegria e conforto da vida são desconhecidas. Na condução de barcos, as mulheres são tão hábeis como os homens, e não são as últimas quando se trata de algum empreendimento ousado.

Todos os utensílios desse povo constituem de duas panelas, uma vasilha de água de barro e uma esteira, que serve como teto contra a chuva e como cama em tempo bom. Nas numerosas bacias e estuários que circundam Malaca e Singapura, vive uma quantidade de famílias malais desse modo; mas não ficam muito tempo num só lugar. Transitam sem parar de um lugar para outro para exercer a pescaria; o que conseguem pescar ou tomar  além da sua necessidade de momento, trocam por arroz, sagú, em betel e tecidos.“

Características de vida de povos caçadores - malaios e Botocudos

Salta à vista a similaridade de uma vida desse tipo com a vida de povos que vivem apenas da caça, como os botocudos e outros moradores das florestas sul-americanas. Assim como estes, o malaio permanece fiel a seu modo de vida, à vida selvagem de pescaria; com o exemplo daqueles que o circundam não se sentem impulsionados a abandonar esse moo e vida. Tão resistente é o homem em estado selvagem, e tão lentos e imperceptíveis são os passos à sua elevação!

Desleixados, preguiçosos e sem cuidados nos momentos de tranquilidade, quase animais nessa modorra, os malaios mostram na hora do perigo e de empreendimento uma coragem desabrigada e sem medidas. Estão sempre armados, continuamente em guerra entre si, ou ocupados em pilhar os seus vizinhos. A cólera dos malaios obrigaram os europeus a instituir a lei que proibe a todo o capitão de navio de empregar um malaio como marujo, pois viu-se que alguns deles, ainda que o seu número seja pequeno, atacaram com os seus punhais a tripulação e, antes que pudessem ser segurados, já tinham muitos matado. Navios malaios com 25 homens atacam navios europeus com 40 canhões. Os malaios livres nunca são vistos sem punhais; os de Sumatra e Manila são muito hábeis na produção de armas. O frequente uso do ópio pode contribuir a esses repentes que chegam à cólera. Vê-se que se sentem mais preocupados na sua honra por leis sem sentido do que pela justiça e pela humanidade, por isso entre êles o mais fraco é sempre oprimido pelo mais forte. Neles continua a exister a era do direito do braço forte.“ (ibidem)

Uma diferença constata Finlayson entre os malaios de regiões internas do arquipélago e aqueles já em contato com a civilização das duas principais cidades portuárias, Malaca e Singapura.

Aqueles que moram nas circunvizinhanças de Malaca e Singapura já deram um passo à frente dessa situação crua; possuem moradias estáveis, usam roupas e cultivam pequenas parcelas de terra. Cercam as suas casas e cabanas com cercas de madeira como proteção de animais selvagens que frequentemente destroem os seus campos; cultivam arroz, inhame, betel, algum cereal e ervas. Possuem apenas alguns conhecimentos de artes mecânicas e das ciências. Os holandeses os empregam como madeireiros nas florestas e como plantadores nas suas propriedades; de resto, não se encontra entre êles um carpinteiro ou pedreiro, um ferreiro ou um costureiro ou sapateiro. No interrior da Sumatra encontram-se malaios num estado melhor; ali vivem da agricultura e do comércio.“ (ibidem)

Recapitulando reflexões em Punta Arenas, Argentina

Punta Arenas. Chile. Foto A.A.Bispo 2008, Copyright

Nas reflexões encetadas em Malaca, estabeleceu-se uma ponte com aquelas levadas a efeito em Punta Arenas, Chile, em 2008.

Ali, para além dos estudos possibilitados pelo museu regional, as atenções foram voltadas ao grande monumento a Fernão de Magalhães pelo feito da viagem através do Estreito que leva o seu nome no decorrer da viagem de circum-navegação. (Veja)

Esse memorial - o mais significado levantado em honra de Magalhães no mundo - foi possibilitado por José Maria Menéndez Menéndez (1846-1918) e executado em 1920 no âmbito dos preparativos da comemoração do IV Centenário do descobrimento o Estreito.

Nesse monumento, a figura de um indígena da Patagonia adquire uma relevância particular, uma vez que, trazendo à lembrança as consequências para os indígenas da chegada dos europeus, é marcado também pelo fato de ter-se tornado elemento de um folclore local: aquele que o toca volta a Punta Arenas.

Não se considerou, na época, que também um indígena de Sumatra, por muitos comparado com indígenas sul-americanos, viajava nas naves de Magalhães, tendo assim por ali passado.

De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“Malaios e indígenas na literatura de viagens e etnográfica do século XIX
- George Finlayson (1790-1823). Relembrando indígena no monumento a Fernão de Magalhães em Punta Arenas, Chile“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/7(2017:3). http://revista.brasil-europa.eu/167/Malaios_e_Botocudos.html


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