As Saudades da Terra em Ribeira Grande
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 175

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 175/3 (2018:5)



Aproximações interdisciplinares nos estudos Açores-Brasil:
fontes históricas e estudos culturais empíricos
Relendo as
Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (ca. 1522 - 1591) em Ribeira Grande

In memoriam Profa. Dr.Dr. Julieta de Andrade (†2018)
Igreja Matriz Nossa Senhora da Estrêla, Ribeira Grande

Julieta de Andrade 2004. Arquivo A.B.E.

 
Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

No programa euro-brasileiro desenvolvido nos Açores, em 2018, retomou-se, em diferentes contextos e sob diversos aspectos um questionamento teórico que tem estado há décadas no centro das atenções dos estudos de processos culturais em contextos globais: o das relações entre procedimentos empíricos, históricos e sistemáticos na pesquisa, nas interpretações, reflexões, na acepção de áreas disciplinares, no ensino e na prática cultural.

Essa preocupação, que levou à fundação em São Paulo, em 1968, de organização voltada à renovação dos estudos culturais a partir de um direcionamento da atenção a processos (Nova Difusão) veio ao encontro, entre outros aspectos, da necessidade de renovação teórica e metodológica da área de Folclore. Essa necessidade era constatada e refletida por vários pesquisadores, em particular daqueles atuantes no então Museu de Artes e Técnicas Populares de São Paulo (Museu de Folclore) da Associação Brasileira de Folclore

Entre esses estudiosos, destacou-se Julieta de Andrade, uma pesquisadora que, pela sua formação em diferentes áreas e vasta erudição, defendeu como poucos outros uma compreensão científica da pesquisa em contínua ampliação de seus objetos de estudos e em esforços de revisão crítica de conceitos e métodos.

Desde a década de 1970, Julieta de Andrada participou intensamente dos estudos em contextos globais desenvolvidos entre outros pelo departamento de Etnomusicologia do Institut für hymnologische und musikethnologische Studien da organização pontifícia de música sacra, desempenhando significativo papel na discussão teórica levada a efeito por ocasião do primeiro Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“, realizado em São Paulo, em 1981. (Veja)

Com a fundação, em 1985, do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, passou a tomar parte ativa no desenvolvimento dos estudos de processos culturais na esfera de língua portuguesa, assim como na realização de eventos, entre êles o do colóquio voltado a questões culturais de círculos de imigrantes de língua portuguesa na Europa Central, levado a efeito em Colonia, em 1989.

Nsse evento, presidido pelo musicólogo açoriano Dr. Armindo Borges, os Açores e o papel da colonização e imigração açoriana no Brasil foram focalizados em diálogos à luz das preocupações teóricas formuladas por Julieta de Andrade. Esses diálogos tiveram continuidade com a ida ao Brasil de Armindo  Borges parao congresso internacional realizado no Rio de Janeiro nos 500 anos do descobrimento das América, em 1992. Nessa ocasião, no âmbito do tema „Fundamentos da Cultura Musical“, considerou as dimensões teológicas e culturais da tradição do culto ao Espírito Santo nos Açores.

Em vários eventos promovidos pela Academia Brasil-Europa que se seguiram no Brasil e na Europa, entre êles no simpósio „Cultura Musical e Espírito“ em Lagos e Guimarães e no colóquio antropológico-cultural em São Paulo pelo Ano Vasco da Gama, em 1998, no congresso internacional „Música e Visões“ de abertura do triênio dos 500 anos do Brasil, em 1999, assim como no colóquio de estudos interculturais em São Paulo, em 2004, Julieta de Andrade proferiu comunicações e apresentou resultados de pesquisas orientados segundo as visões amplas e os procedimentos interdisciplinares que caracterizaram o seu pensamento e suas atividades.

O falecimento de Julieta de Andrade, em 2018, representa uma grande perda para os estudos euro--brasileiros. Nos últimos anos de sua vida, dedicava-se à complementação de uma obra de alentadas dimensões que preparava, e na qual de modo inovativo e em amplas e ousadas visões procurava superar campos disciplinares, relacionando entre si conhecimentos ganhos da pesquisa empírico com aqueles de estudos históricos e linguísticos, assim como arqueológico-culturais e da Antiguidade.

Releitura das Saudades da Terra sob perspectivas interdisciplinares

Justifica-se assim que, relembrando a atitude, o pensamento e as grandes contribuições de Julieta de Andrade, a A.B.E. tenha escolhido como objeto de reflexões uma obra de extraordinário significado para os estudos de processos culturais na esfera da língua portuguesa, em particular daquela do universo insular atlântico: as Saudades da Terra, do açoriano Gaspar Frutuoso (ca. 1522-1591).

Essa obra oferece-se como exemplar para o reconhecimento do significado de um tratamento das historiografia do Atlântico em contextos e sob perspectivas interdisciplinares, abrindo perspectivas para uma melhor compreensão de processos culturais nos quais o Brasil se inscreve.

Nascido em Ponta Delgada e falecido em Ribeira Grande, principais cidades da ilha de São Miguel, Gaspar Frutuoso, deixou, com a sua grande obra, a mais importante fonte para estudos não só da história dos Açores como também de outras ilhas atlânticas. Em seis volumes, trata respectivamente do Cabo Verde e das Ilhas Canárias, da Madeira, de Santa Maria (Açores), São Miguel (Açores) e, após um poema, das ilhas de Terceira, Faial, Pico, Flores, Graciosa e São Jorge (Açores).

O quinto volume, com o seu poema, mereceria uma atenção especial, pois abre perspectivas para análises mais aprofundadas de sentidos e que surgem como de particular interessse à luz de preocupações atuais. Nele, trata-se da história de dois amigos que são obrigados a se separar e viver em locais distantes da terra natal, um conteúdo que tem sido interpretado como referência de cunho auto-biográfico à amizade de Gaspar Frutuoso com o seu amigo da época de estudos universitários, o médico conterrâneo Gaspar Gonçalves.

Tendo sido o tomo relativo à Madeira já considerado com mais atenção por ocasião de viagem de estudos e contatos realizada àquela ilha em 1987/8, os textos referentes aos Açores foram aqueles que constituiram o foco dos interesses, sendo considerados na própria cidade onde Gaspar Frutuoso passou grande parte de sua vida e onde elaborou a sua obra: Ribeira Grande.

Ribeira Grande. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Gaspar Frutuoso no contexto de sua época - universidade e reforma católica

Gaspar Frutuoso surge como o maior erudito açoriano do século XVI, assim como um dos mais relevantes nomes para os estudos de processos culturais na esfera do atlântico.

Tendo tido formação teológica e sendo sacerdote, deve ser considerado no contexto histórico-eclesiástico de sua época, marcado que foi pelo movimento de reforma interna católica que teve o Concílio de Trento como principal marco.

Nascido na ilha de São Miguel em família abastada pelas suas atividades agrícolas e comerciais, Gaspar Frutuoso estudou na Universidade de Salamanca a partir de 1548. Em estadia em São Miguel, ali foi ordenado sacerdote em 1554.

Em Salamanca, esteve sob a  orientação de um dos mais renomados e influentes teólogos espanhóis: Domingo de Soto OP (1494-1560), confessor de Carlos I/Carlos V (1500-1558). Este seu mentor foi representante da Ordem Dominicana no Concílio de Trento, no qual também Frutuoso esteve presente.

Essa formação marcada pela tradição e pelo pensamento da Ordem dos Pregadores, de tão grande significado para a história universitária, pode explicar a sua dedicação aos estudos e aos conhecimentos. Essa formação dominicana foi impregnada pelo espírito de militância missionária jesuítica através de sua amizada com o Pe. Miguel Torres em Salamanca, associando assim a atenção devotada pelos Dominicanos aos pobres - e também aos indígenas - com aquela dos padres da Companhia de Jesus aos grupos menos privilegiados às margens da sociedade dominante.

Essas duas vertentes, associadas, vinham ao encontro da sua formação cultural açoriana, sempre estreitamente marcada pelo culto ao Espírito Santo e assim ao amor e à caridade. Explicar-se-ia assim o significado do empenho caritativo nas atividades de Frutuoso como sacerdote nos Açores.


Ao retornar temporariamente do continente, entre 1558 e 1560, Frutuoso já estava em condições como nenhum outro em aplicar correntes do pensamento na prática dos estudos e da ação religiosa como sacerdote em Santa Cruz, no conselho de Lagoa.

Na sua sede de saber, retornou em 1560 a Salamanca para aprofundar os seus estudos teológicos e alcançar o doutorado. Até 1563 atuou junto ao bispo Dom Julião de Alva (1500-1570), em Bragança. Este, natural da Espanha, tinha vindo para Portugal como capelão e confessor à época de Dom João III (1502-1557). Foi mestre de escola da Sé de Évora e, em 1549, nomeado a primeiro Bispo da Diocese de Portalegre, onde a sua ação revela uma dedicação ao ensino, à formação sacerdotal, à criação de um colégio pelos jesuítas e à caridade entre os pobres. Essa orientação de Dom Julião de Alva teria vindo ao encontro daquela de Frutuoso, intensificando-a.

Os vínculos de Frutuoso com a Companhia de Jesus são salientados pelo fato do seu nome surgir após 1569 em registros da Universidade de Évora.

Reflexões na Igreja de Nossa Senhora da Estrela em Ribeira Grande


Na visita à igreja matriz de Ribeira Grande, salientou-se a necessidade de considerá-la sob a perspectiva do significado nos estudos culturais da concepção, do culto e da festa da Purificação de Maria.

Essas reflexões deram continuidade áquelas encetadas no ciclo de estudos que abriu o ano de 2018 em Cartagena de Indias e que foi dedicada à Nossa Senhora da Luz ou da Candelária, cuja festá é celebrada no dia 2 de Fevereiro. (Veja)


Já em fins do século XV existia na pequena povoação uma ermida de Nossa Senhora da Purificação, substituida em 1507 pela igreja que devia ser matriz da vila então criada, agora sob a denominação de Nossa Senhora da Estrela.

O significado dessa veneração mariana em Ribeira Grande como cidade marcada por águas, da ribeira e do mar é compreensível, e essa relação com o meio natural corresponde áquela de outras localidades marcadas pelo culto. Ela fundamenta-se em referências nas Escrituras com a igreja construída em local elevado, alcançado por escadarias, tal como Maria subiu ao templo para a Apresentação e da qual a seguir desceu para o júbilo do povo, como festejado em muitas regiões. (Veja)

Também a designação de Nossa Senhora da Estrela é compreensível numa localidade de pescadores, veneradores de Maria como maris stella. Por outro lado, a imagem da Estrela pode relacionar-se com a veneração dos Três Reis Magos na localidade, da qual é indício por um quadro que teria sido doado por particulares ao redor de 1582.

Correspondendo aos estreitos elos dos Açores com o Norte da África, a igreja foi consagrada pelo bispo de Tanger. A igreja tornou-se também centro da veneração de Nossa Senhora de Loreto, chegando a receber relíquias de sua casa.

A configuração atual da igreja pouco tem a ver com a antiga matriz na qual atuou Frutuoso, época na qual escreveu as Saudades da Terra. Abalado por vários terremotos, a sua torre sossobrou ao redor de 1680. Cem anos mais tarde, foi demolida, sendo edificada a atual igreja. Em 1834, ruiu o seu telhado, sendo a seguir reconstruído; em 1862, as talhas foram restauradas.

Frutuoso foi nomeado a vigário e orador na igreja matriz de Ribeira Grande em 1565. Ali dedicou-se aos estudos e a seus escritos, de modo que Saudades da Terra e Saudades do Céu merecem ser considerados sob o pano de fundo do contexto local.

A sua visão e os seus procedimentos despertam atenção sob a perspectiva voltada a processos culturais, uma vez que foram fundamentalmente marcadas pela preocupação genealógica do traçamento de rêdes pessoais e sociais na esfera insular atlãntica. Essa visão ultrapassadora de fronteiras manifestou-se já em 1566, quando realizou coletas para a ajuda dos colonos da Madeira quando esta foi assaltada por ataque de franceses.


Significado para os estudos culturais - lembrando a referência ao Tangedor

A obra de Frutuoso, como principal fonte para a história dos Açores, em particular da ilha de São Miguel, tem sido considerada sobretudo sob a perspectiva histórica pelos dados que oferece sobre o povoamento e o desenvolvimento de diferentes regiões e cidades.

Pelo fato de grande parte da obra ter natureza genealógica, oferece dados para estudos do povoamento e do desenvolvimento do processo colonizador.

Sob a perspectiva dos estudos culturais referentes à música e a festas, a obra adquire um significado que ultrapassa a esfera da ilha e mesmo aquela do arquipélago

Entre os pontos considerados, considerou-se a referência de Frutuoso relativa a João  Gonçalves, natural da Biscaia e que, vindo para São Miguel, passou a ser conhecido pelo apelido de Tangedor, por ser grande músico e exímio tocador de viola. Sob essa alcunha, diferenciava-sse dos muitos outros de sobrenome Gonçalves da ilha.

Esssa menção é de significado para a história da música nos Açores e, em particular da viola em geral. De interesse neste sentido é a referência de que o Tangedor provinha da Biscaia, lembrando-se que elos dos Açores com a Biscaia também podem ser constatados em outros casos.

Os dados de Frutuoso documentam também um contexto no qual o Tangedor tinha atuado e que não tem sido suficientemente considerado nos estudos específicos. Ele tinha sido criado do marquês de Vila Real e o acompanhara durante muitos anos na África. Esses empreendimentos realizara às próprias custas, com armas, cavalo e criados mandados pelo seu pai da Biscaia. Destacando-se pelas suas ações como bom cavaleiro, foi enviado pelo marquês à ilha de São Miguel, trazendo a sua família, escravos e criados, onde tornou-se o primeiro vereador de Ponta Delgada. O Tangedor serviu sempre em cargos de govêrno da cidade: um dos influentes membros do govêrno do início da história de Ponta Delgada foi assim um renomado „violeiro“. (op.cit. 86)


Signiificado das „Saudades da Terra“ para o Brasil - alguns aspectos das reflexões

Nas reflexões encetadas em Ribeira Grande, salientou-se que uma leitura atenta da obra de Frutuoso traz dados que são de especial interesse para estudos relacionados com o Brasil. Este é o caso de referência sobre a realização de grande cavalhada, oferecendo pormenores que correspondem àqueles das respectivas tradições brasileiras.

Entre os aspectos considerados, salientou-se o significado da obra para estudos da história da emigração açoriana.

Tratando nas suas genealogias de Gonçalo Vaz, Frutuoso lembra que a sua terceira filha, Isabel Cabeceiras, casara-se com Bartolomeu Roiz, procedente de Viseu. Esse imigrante português vivera durante muitos anos na serra, sendo por isso chamado da Serra, possuindo grandes bens.

Os dados transmitidos por Frutuoso revelam o nível privilegiado das relações de parentesco, havendo vários cavaleiros do hábito de Santiago. Entre as suas filhas, a terceira, Maria Roiz, casou com Manuel Vaz, da Ribeirinha, homem honrado e rico, com o qual teve cinco filhos e três filhas. Essa família porém caiu em extrema pobreza devido ao fato de Manuel Vaz ter dado fianças e por essa razão decidiram procurar sorte no Brasil. Segundo se tinha notícia, todos porém faleceram, antes que chegassem ao Brasil. (Livro quarto, CCI, 92)



De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Aproximações interdisciplinares nos estudos Açores-Brasil: fontes históricas e estudos culturais empíricos..Relendo as Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (ca. 1522 - 1591) em Ribeira Grande“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 175/3 (2018:5).http://revista.brasil-europa.eu/175/Saudades_da_Terra.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne









 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________