Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Luebeck. Foto A.A.Bispo 2008©

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Fotos A.A.Bispo. Lübeck (2008),

©Arquivo A.B.E

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 140/1 (2012:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°2939


A.B.E.


Liberdade!
O homem livre no desenvolvimento da personalidade,
nas Ciências e na Cultura em interações internacionais
Revisando relações entre Liberdade e Liberalismo econômico-político


Ciclos de estudos pela celebração de Lübeck como "Cidade da Ciência 2012 - Hansa encontra Humboldt" e pelos 775 anos de Berlim

 


A.A.Bispo
Este último número de 2012 da Revista Brasil-Europa/Correspondência Euro-Brasileira é dedicado ao conceito de liberdade sob a perspectiva dos Estudos Culturais, em particular daqueles referentes ao Brasil.


Dirigindo-se assim a atenção à liberdade, não se poderia deixar de lembrar de um nome da História da Música do Brasil que mais tematizou o conceito em suas obras: Leopoldo Miguéz (1850-1902), criador dos poemas sinfônicos Avè, Libertas! Op. 18 (1890) e Prometheus (1891), conhecido sobretudo pelo seu Hino à proclamação da República (1890).


Leopoldo Miguez
Avè, Libertas!, um poema sinfônico editado como muitas de suas obras em Leipzig, foi concebido como uma homenagem ao Marechal M. Deodoro da Fonseca (1827-1892) em comemoração ao primeiro aniversário da proclamação da República.


O conceito de liberdade surge em Leopoldo Miguéz significativamente relacionado com um ethos da classe comercial da qual provinha, com o Republicanismo e com o desenvolvimento da formação musical no Brasil. O seu nome ficou vinculado ao Instituto Nacional de Música como seu co-criador e primeiro diretor.


O livre comércio, o livre desenvolvimento de interesses econômicos revelam-se no exemplo de Leopoldo Miguez como relacionados com um Republicanismo que - ainda que então militarmente - teria a função de assegurar uma liberdade relacionada com liberalismo econômico e, concomitantemente, com determinadas concepções de desenvolvimento artístico-cultural, de aptidões individuais e de formação.


A discussão dessas relações surge como de relevância para a apreciação adequada de suas obras e daquelas de compositores que se inseriram em similares correntes de pensamento político-cultural.


Para além de trazer à consciência a necessidade de correções na compreensão de liberdade nas suas relações com concepções de Estado e nos seus elos com posições estéticas e educativas, a discussão contribui ao esclarecimento de convicções culturais e político-culturais que se mantém vigentes até o presente e que são marcadas por noções demasiadamente indiferenciadas de Republicanismo.


A edição oferece uma série de textos que refletem os respectivos estudos desenvolvidos em diferentes contextos no decorrer do corrente ano em cidades européias, salientando-se aqui Berlim, Lisboa, Amsterdam e Cambridge.


Atualidade do tema: a Cidade-Hansa Lübeck como Cidade da Ciência de 2012


A escolha da liberdade como motivo-condutor das reflexões foi motivada pela celebração de Lübeck como "Cidade da Ciência 2012". De Cidade da Ciência 2012 Lübeck deverá passar a ser permanentemente "Cidade-Ciência".


Luebeck. Foto A.A.Bispo 2008©
Lübeck, uma das cidades da antiga Hansa, possui um passado marcado pelas relações comerciais e que possibilitaram épocas de prosperidade e um florescimento cultural que se manifesta na sua arquitetura e na história da música e das artes.


A cidade foi durante séculos centro econômico, social e cultural da ampla rêde de contatos dos comerciantes hanseáticos e cujas principais rotas atingiam Londres, Colonia, Brügge a Ocidente, Hamburg, portos suecos e, sobretudo os centros do Leste, entre êles Visby, Riga e Nagorod, dominando o comércio báltico.


O conceito Hansa traz à consciência relações entre a liberdade do comércio e a segurança necessária para que essa liberdade na persecução de interesses econômicos seja garantida e direitos mantidos.


Para a sua segurança nos mares e para a representação dos seus interesses, também e
particularcularmente no Exterior, os comerciantes passaram essas tarefas de segurança e de defesa de direitos a associações, um sistema que passou a determinar também a vida de cidades. Houve, assim, um desenvolvimento em direção a uma Hansa de cidades: de instituição de comerciantes para a segurança do livre comércio a uma configuração de urbes.


O comércio da Hansa abrangeu também aquele de livros, tornando-se Lübeck importante centro da impressão no Norte da Alemanha.


A principal igreja das famílias mais influentes do comércio era a de Santa Maria, que, como igreja do Conselho, era estreitamente vinculada à política municipal e representava o poder e a prosperidade da elite econômica da cidade.



Essa igreja é conhecida internacionalmente sobretudo pelo seu significado para a História da Música, uma vez que ali atuou D. Buxtehude (ca. 1637-1707), onde foi procurado por J. S. Bach (1685-1750) em 1705 e também por outros grandes músicos, entre êles G. F. Haendel (1685-1759). A igreja é não apenas o mais importante monumento arquitetônico do gótico "vermelho" norte-europeu, como também histórico-musical, em particular da música para órgão. (http://www.revista.brasil-europa.eu/107/Luebeck-Buxtehude.htm)


Liberdade de comércio e cultura do saber. Relações entre Ciência e Economia


Uma cultura do saber que ali se desenvolveu em círculos burgueses prósperos marca hoje a consciência e a identidade da cidade.


Nessa cultura encontram-se os fundamentos do alto nível alcançado pelas instituições científicas da cidade, de renome internacional sobretudo nas Ciências Naturais, na Medicina, mas também na Musicologia.


A Ciência é vista assim como elemento integrante, elementar da tradição de Lübeck e como fator determinador do desenvolvimento urbano futuro. Para isso, criou-se o círculo "Cidade da Ciência" com o objetivo de realizar iniciativas que acentuem o perfil de Lübeck como cidade da Ciência e trazer à consciência da população os potenciais e o significado da Ciência para a cidade.


A Economia, a Política, a própria Ciência e os habitantes devem conscientizar-se do fato de ser a cidade um excelente local para estudos superiores, para a pesquisa e para o ensino. As vantagem práticas de uma cidade da Ciência residem também na criação de possibilidades de trabalho de alta categoria e melhoramento da infra-estrutura e da qualidade de trabalho.


Pela sua própria localização e história, a Ciência e a Cultura em Lübeck são estreitamente relacionadas com a Economia. Essa cooperação entre a Pesquisa e a Economia deverá ser acentuada e considerada no desenvolvimento urbano e na estrutura das escolas superiores e das empresas no campus da Ciência. Para isso, intensificam-se rêdes de campos de atividades (p.e. medRegio, Hansebelt, Biotechnikum, logRegio).


A igreja universitária St. Petri: Questionar, não respostas prontas!


Desde 2008 realiza-se o "Dia da Ciência" na igreja universitária St. Petri, um dos maiores monumentos arquitetônicos de Lübeck, edifício também de extraordinário significado para a História da Música. Esse "Dia da Ciência" tem como objetivo contribuir ao despertar de uma fascinação pela Ciência e, assim, o entusiasmo para os projetos.


A igreja St. Petri, um dos mais excepcionais exemplos do gótico em tijolos vermelhos, é hoje um local de experimentos no campo de tensões criado pela tradição determinada pelo espaço e as tendências atuais do pensamento, das artes plásticas, da literatura e da música.  É hoje uma igreja de toda a comunidade de cidadãos.


Em conjunto com instituições e grupos, ali se realizam encontros que tratam de questões políticas e éticas, procurando contribuir ao bem-estar da cidade.


Ela é uma igreja para pessoas que já não se identificam com comunidades de igrejas tradicionais. Ela se compreende como uma igreja que procura, onde questões são mais bem vistas do que respostas prontas. Com esse posicionamento, a comunidade revela uma compreensão de religião que se distingue de posições marcadas por doutrinarismo e que corresponde à tradição liberal da cidade hanseática.




O lema "Hansa encontra Humboldt"


A ano de Lübeck como Cidade da Ciência tem como lema "Hansa encontra Humboldt".


Essa proposição temática é compreendida como sendo a de um encontro entre a cidade e a Ciência. Um roteiro científico possibilita esse encontro na ilha da cidade velha, onde dez objetos estabelecem um elo entre o Museu da Natureza e do Meio Ambiente e o Museu da Hanse, ainda em fase de implantação. Cada objeto estabelece um vínculo entre a ilha e a cidade, envolvendo os habitantes em experiências. Todos os meses inaugura-se uma nova estação de experimentos, surgindo assim "meses da Ciência".




O nome de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) surge nos esclarecimentos do lema de Lübeck como personificação da Ciência. "Hansa encontra Humboldt" é assim entendido como encontro de um sistema de comércio e de defesa de seu direito de liberdade, assim como de uma rêde de cidades centralizada em Lübeck com a Ciência.


A presença do nome von Humboldt em Lübeck, que, pela sua vida antes relaciona-se com Berlim, indica o significado que a sua imagem possui na história do pensamento na Alemanha.


Esse renome fundamenta-se sobretudo no fato de ter desempenhado relevante papel na política cultural como ministro da antiga Prússia e ter sido fundador da Universidade de Berlim, que hoje leva o seu nome.


O sugimento do nome de W. von Humboldt ao lado daquele da Hansa traz à consciência, porém, que os princípios do seu pensamento estabelecem uma relação de coerência entre a procura de conhecimentos, a pesquisa, o desenvolvimento humano, a Economia e o papel a ser exercido pelo Estado através do conceito da liberdade.


Como grande "Teórico da Liberdade", W. von Humboldt não é apenas o vulto por excelência da liberdade no alcance de conhecimentos e na formação da personalidade, mas sim também do Liberalismo. É visto, assim, como um dos grandes pensadores que fundamentam teoricamente posições partidárias liberais.




Implicações político-econômicas e o Forum Humboldt de Berlim


À luz dessas considerações, as inicitiavas de Lübeck que salientam as relações entre a Ciência e a Economia assumem dimensões teórico-políticas e econômicas que se referenciam segundo o conceito de liberdade e que nem sempre são de consciência geral.


Essas implicações políticas do pensamento de W.v. Humboldt não são em geral suficientemente presentes àqueles que se defrontam com um dos maiores projetos culturais internacionais que se desenvolvem na Alemanha: o da reconstrução do palácio real da antiga Prússia no centro de Berlim, edifício que deverá abrigar o Forum Humboldt para o diálogo científico e cultural em contextos internacionais.


Se nome também é "omen", tornam-se aqui necessárias diferenciações, uma vez que empreendimento de tais dimensões e que procura o diálogo com as nações e culturas do globo não pode naturalmente realizar-se sob o signo de determinada orientação econômica, política ou partidária.


Em nova visita à exposição do projeto Forum Humboldt em Berlim (Veja http://revista.brasil-europa.eu/140/Forum-Humboldt.html), levantou-se a questão da possibilidade de um afastamento de implicações políticas, econômicas e mesmo partidárias do seu pensamento relativo à formação do Homem, à procura de Conhecimentos, às Ciências e da comunicação em sociedade e entre as diferentes culturas.


Reconheceu-se, porém, que a vida e a obra de W. von Humboldt caracteriza-se por extraordinária coerência entre o pensar e o agir, fundamentada em edifício de pensamento marcado por integridade, sendo impossível colocar entre parênteses as consequências que dele tira para as suas concepções relativas à função do Estado.


Wilhelm v. Humboldt surge como um teórico de posições políticas que defendem em extremo Liberalismo um Estado de funções ao mínimo reduzidas.


Não sendo possível afastar essas implicações e consequências, torna-se necessário analisar e relativar o edifício de suas idéias quanto a seus fundamentos e no contexto de sua época.


Significado atual do estudo do ideal formativo do homem de W. von Humboldt


Esses estudos partiram da sua concepção do ideal da formação do Homem (Bildungsideal) por ter marcado o ensino e a pesquisa na Alemanha, fundamentando um sistema universitário distinguido internacionalmente pela liberdade que o caracterizava.


O estudo do pensamento de W. v. Humboldt assume hoje especial atualidade devido às profundas transformações que se processam nas universidades alemãs com o "Processo de Bologna".


Procurando estabelecer condições de equivalência quanto à formação acadêmica e a qualificações nos diferentes países, contribuindo assim à integração européia, esse processo vem levando, na sua tendência sistematizante e escolarizadora, à perda de uma liberdade de ensino e de pesquisa que caracterizava as instituições superiores alemãs.


Nos trabalhos realizados em Berlim tornou-se evidente que os fundamentos do sistema de idéias de W. v. Humboldt inserem-se na sua recepção da cultura da Antiguidade. Partindo-se da sua concepção do ideal do processo formativo, considerou-se o significado dos conceitos de Forma e Matéria e consequentemente de materialização individualizadora da forma e de configuração da matéria, ambos compreendidos em processo dinâmico.


Esses conceitos básicos revelados na concepção de W. v. Humboldt podem ser remontados ao hilemorfismo da antiga Filosofia da Natureza e que se manteve vivo através dos séculos.


Essas concepções, complexas na sua compreensão devido sobretudo ao caráter dinâmico do processo formativo e configurativo, podem sobretudo ser expressas através da linguagem visual. Imagens assim de remotas proveniências podem ser registradas em concepções básicas de W. v. Humboldt relativas à Palavra e ao Canto, ou ao Homem "como animal que canta". (http://revista.brasil-europa.eu/140/Palavra-como-atividade.html)


Dessas concepções esclarecem-se aspectos fundamentais de suas argumentações relativas à palavra e às línguas, impossíveis de serem adequadamente compreendidas sem a consideração dos princípios de seu modo de pensar.


Wilhelm von Humboldt, que é celebrado como fundador da Linguística e do estudo comparado de línguas, demonstra nas suas opiniões a fundamentação teórico-cultural dessas disciplinas, no caso remontante a concepções da antiga Filosofia. 


Tanto as concepções de Forma e Matéria e do correspondente processo formativo/configurativo como as imagens que as elucidam indicam as bases filosofico-naturais e empíricas do edifício de pensamento recebido por W. v. Humboldt através de sua formação clássica.


Inserção na visão do mundo filosófico-natural geocêntrica e antropocentrismo


Essas bases empíricas da ordenação conceitual e imagológica da visão do mundo e do homem de remotas origens na Antiguidade resultam das condições de observação na existencialidade do homem. Elas resultam da observação do ciclo das estações do ano, do ciclo de vida do homem, da procura de fundamentos elementares do observado e da leitura de sinais na terra e nos céus, e são, portanto, geocêntricas.


Observadas a partir da perspectiva do homem nas suas condições da vida na terra, são também fundamentalmente antropocêntricas.


Esclarece-se, assim, o antropocentrismo que se manifesta no pensamento de W. v. Humboldt, uma vez que as suas explanações sugerem por vezes um extremo egocentrismo e mesmo egoísmo, o que se evidencia na sua compreensão de Estado.


A questão que se coloca, portanto, é a da releitura de todo o edifício de pensamento de W. v. Humboldt a partir de Estudos Culturais de condução científica, nos quais o observador procura assumir um ponto de observação externo ou distante daquele do objeto de estudos.


À medida que reconhece a inserção do sistema de pensamento de W. v. Humboldt na visão do mundo e do homem de remotas origens resultante da experiência do Homem na existência e, portanto, geocêntrica, o observador já assume uma posição externa, relativadora de todo o conjunto de idéias.


O conceito de liberdade toma aqui um outro significado, pois diz respeito à liberdade do observador relativamente ao edifício resultante da visão do mundo geocêntrica.


Sob esse aspecto, todas as idéias e as implicações do pensamento de W. v. Humboldt necessitam ser resignificadas.


Essa liberdade derivada da perspectiva científica tem implicações para a sua concepção do processo de formação do Homem, de desenvolvimento da personalidade individual e na da função do Estado. O Homem passa a ter liberdade de refletir sobre a liberdade que o antigo edifício possibilitava, passa a gozar a liberdade de superar egocentrismos, egoísmos, cinismos e a falta de solidariedade que podem ser lidos na concepção de Estado reduzido de W. v. Humboldt.


A reconsideração do sistema de pensamento de W. v. Humboldt sob uma perspectiva científica surge como pré-condição para o prentendido diálogo científico-cultural a ser desenvolvido no Forum Humboldt do palácio real prussiano em Berlim.



Significado crucial do conceito de liberdade nos Estudos Culturais lusófonos


O debate relacionado com o conceito de Liberdade é de particular relevância para os Estudos Culturais que se relacionam com o mundo de língua portuguesa.


A história da expansão portuguesa no mundo e o início do processo transformador de culturas em muitas regiões do mundo - e assim também no Brasil - decorreu à sombra de uma das mais sinistras instituições responsáveis por trágicas coibições da liberdade da história da Humanidade: a Inquisição.


A literatura portuguesa e brasileira, em geral encomiástica na celebração da epopéia dos Descobrimentos, não tem emprestado suficiente atenção a essa sombra e mancha que escurece e suja de forma irrevogável a história da Europa, de Portugal e, sobretudo da Igreja.


Manifestações de vergonha pelas injustiças e crimes cometidos, assim como de remorso e pesar não bastam. Tornam-se necessárias análises de fundamentos de edifícios de pensamento que possibilitaram tal aberração na história do Homem. Essas análises são necessárias também para a condução adequada de estudos históricos em contextos globais, pois a coibição da liberdade de pensamento e a perseguição de conversos tiveram amplas consequências, determinando desenvolvimentos futuros em contextos transcontinentais.


Fugidos da Península Ibérica à procura de liberdade e mesmo de vida, os "cristãos novos" encontraram abrigo sobretudo nos Países Baixos. Amsterdam sobretudo transformou-se em cidade da liberdade, não apenas de liberdade de livre comércio, mas sim também e sobretudo da liberdade da re-conversão, do resgate de uma cultura sumersa e de construção de uma comunidade de identidade judaica de língua portuguesa.


O estudo da formação dessa comunidade e do processo de reconstrução cultural surge como de transcendente significado para análises de processos culturais em contextos globais.


A reconstrução cultural, estreitamente relacionada com estudos e o ensino, baseou-se não apenas em textos mas também em imagens, e aqui o Templo de Salomão desempenhou importante papel. Foi um rabino português que, em diálogo com teólogos protestantes holandeses e considerando resultados da pesquisa em países cristãos da época criou um modêlo do Templo que serviu como representação ideal para ensino e para a arquitetura. (http://revista.brasil-europa.eu/140/Sinagoga-de-Amsterdam.html)


Amsterdam possui dessa época um dos maiores monumentos arquitetônicos e histórico-culturais do mundo lusófono, o da sinagoga da comunidade portuguesa.


Esse edifício tornou-se modêlo de outras sinagogas sefarditas na Europa e fora dela, em particular no continente americano para os judeus que tiveram de fugir do Brasil com o retorno dos portugueses ao Nordeste ex-holandês.


Para o prosseguimento e a atualização de estudos já em desenvolvimento, agora sob o signo do conceito de liberdade, revisitou-se o museu judaico e a sinagoga portuguesa de Amsterdam. Já agora podendo-se contar com as observações feitas na sinagoga de Curaçao (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/94/Judeus-Curacao.htm) e de Cochim (http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Cochim-Judeus_do_Malabar.html), a consideração da sinagoga decorreu agora sob a perspectiva de ter sido modêlo e centro religioso-cultural de uma vasta rêde transoceânica e interamericana de contatos e intercâmbios.


"O fim do Estado é a liberdade". Baruch/Bento de Espinosa (1632-1677)


Esses estudos em Amsterdam concentraram-se também em aspectos paradoxos de processos culturais. A liberdade religiosa e de condução de vida procurada e o livre comércio foram acompanhados por desenvolvimentos marcados pela coibição de liberdade através da rigidez doutrinária da comunidade portuguesa no exílio.


O grande vulto a ser considerado neste contexto é o do filósofo Baruch Spinoza, com o seu nome português Bento de Espinosa (1632-1677 ). Êle próprio vítima da falta de liberdade de pensamento na comunidade judaico-portuguesa, da qual foi excluido já nos seus anos de juventude, é celebrado hoje como um pensador da liberdade. (http://revista.brasil-europa.eu/140/Bento-de-Espinosa.html)


Significativamente, no antigo bairro judaico de Amsterdam, levantou-se a êle um monumento com os dizeres "o escopo do Estado é a liberdade". Esses dizeres, que tão bem correspondem à auto-consciência e à imagem de Amsterdam, necessitam ser entendidos segundo o pensamento de Espinosa.


A liberdade assim compreendida é inicialmente aquela derivada do mundo natural, da existência marcada pela lei do mais forte, e da liberdade do Homem de agir segundo o seu direito de sobreviver. Nesse sentido, o Estado tem a função de garantir o exercício dessa liberdade.


Após ter-se discutido os fundamentos do edifício de pensamento de W. v. Humboldt, posterior a Espinosa mas que se revelam como remontantes a antigas concepções filosófico-naturais, a similaridade quanto a concepções de liberdade nas suas relações com o Estado do filósofo lusófono judeu-holandês dirigiu a atenção também aqui à inserção de Espinosa num sistema de idéias derivado da visão geocêntrica do mundo. Também aqui constata-se, e de forma ainda mais intensa, um antropocentrismo extremo e que se manifesta da forma mais evidente numa arrogância auto-justiceira, fria e sem compaixão.


O pensamento de Espinosa relativo à função do Estado em garantir a liberdade, porém, não se esgota com a consideração do seu ponto de partida no estado natural. No seu livro de Ética, as suas concepções adquirem muito maior diferenciação e profundidade, oferecendo perspectivas interpretativas de grande atualidade. A sua atenção é dirigida aqui à falta de liberdade resultante de um deficiente controle de afetos, e, consequentemente, à liberdade resultante de uma cultura de afetos, pensamentos que leva o filósofo a apresentar perspectivas de uma boa condução de vida e de uma arte de viver na qual a alegria desempenha um papel central. A expressão de que o objetivo do Estado é a liberdade adquire aqui um significado muito mais amplo. ( http://revista.brasil-europa.eu/140/Afetos-e-liberdade.html)


Os estudos do pensamento de Espinosa traz mais uma vez à consciência a necessidade de uma observação à distância, de uma análise do edifício filosófico como expressão cultural.


A perspectiva científica, excelência e liberdade. Lembrando Bertrand Russel (1872-1970)


A exigência sempre salientada de uma perspectiva científica na condução de Estudos Culturais nos ciclos de 2012 trouxe à consciência a oportunidade de reconsiderar-se Bertrand Russel, autor de obra especificamente dedicada ao tema e que marcou, há 45 anos, as discussões sobre a necessária renovação teórica dos estudos culturais no Brasil.


O nome de Russel é estreitamente vinculado com a universidade em que se formou e na qual lecionou, a de Cambridge. Essa tradicional universidade, centro internacional reconhecido pela sua excelência, caracteriza-se por uma cultura universitária com características próprias, marcadas ao mesmo tempo por excelência e liberdade.


A internacionalidade de Cambridge se manifesta sobretudo nos cursos internacionais de verão, quando a universidade oferece a oportunidade a estudantes de todas as partes do mundo que a conheçam.


O grande número de estudantes estrangeiros leva também à presença de numerosos círculos culturais e religiosos, constatando-se também ali uma tendência ao revigoramento de tradições religiosas de estudantes no Exterior.


Esse singular recrudescimento da religiosidade no meio acadêmico de Cambridge, marcado por igrejas de diferentes confissões, de grupos ecumênicos, interreligiosos e esotéricos, representa um fenômeno que, se em parte reflete a liberdade religiosa que ali predomina, por outro lado representa uma delimitação voluntária de liberdade dos estudantes em ambiente estranho àquele de seus respectivos contextos culturais de origem. (http://revista.brasil-europa.eu/140/Ciencia-e-religiao.html)


Atualidade de Russel no presente marcado pelo recrudescimento do fanatismo religioso


Como poucos outros pensadores do século XX, Bertrand Russel causou impacto internacional e sofreu perseguições por ter tomado a liberdade de afirmar que a religião consistui o maior obstáculo ao progresso da Humanidade e mesmo ao desenvolvimento moral do Homem.


Ainda que necessitando ser relido de forma crítica e contextualizada, o seu "Por que não sou cristão" adquire atualidade em época marcada pela intensificação de tendências obscurantistas de fundamentação religiosa em várias partes do globo.


Essa reconsideração da crítica de Russel inseriu-se no programa temático de ciclos de estudos euro-brasileiros desenvolvidos no corrente ano na área do Mediterrâneo/Atlântico e no Norte da Europa. Estes, por sua vez, foram motivados pela atenção voltada ao esclarecimento em ano comemorativo de vultos da história do Iluminismo, em particular dos 300 anos de Friedrich "O Grande" (1712-1786). (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html)


Nesses ciclos, salientou-se que o reconscientizar-se do patrimônio representado para a Humanidade pelos esforços esclarecedores intentados no decorrer dos séculos, marcados por obstáculos e retrocessos, impõe-se na atualidade marcada por preocupantes tendências e movimentos obscurantistas.


Esse desenvolvimento manifesta-se tanto na esfera religiosa através de estreiteza fundamentalista e doutrinária na compreensão de textos e tradições, como na secular, através da revivescência de correntes políticas e político-culturais radicais e extremistas. (http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Luzes-nordicas.html)


Como fenômenos do presente, causando ou justificando tensões, conflitos, guerras, massacres e atos que desmerecem a Humanidade, essas tendências e movimentos exigem a atenção da pesquisa voltada a processos culturais.


Pondo em risco conquistas obtidas com tanto sacrifício pelo Homem, o tratamento desses problemas do presente exige análises de suas razões, pressupostos, contextos e processos em que se inserem. Somente uma pesquisa que, em auto-crítica, se conscientize de seus próprios condicionamentos culturais e que se esforce em  observar os desenvolvimentos à distância pode observar os acontecimentos sob uma perspectiva ampla e com a objetividade necessária para análises esclarecedoras.


A perspectiva científica nos Estudos Culturais relaciona-se aqui com a função esclarecedora que devem cumprir e com os esforços de libertação do próprio pesquisador dos condicionamentos que o prendem em situações delimitadoras.


A liberdade surge aqui em múltiplas acepções: ela diz respeito ao próprio pensador, que deve preocupar-se com as suas próprias inserções em contextos e processos culturais e que reduzem o seu ângulo de visão, prejudicam e pre-judiciam as suas análises, e, ao mesmo tempo, à liberdade que o resultado de seus esforços analíticos pode levar na compreensão do mundo e do homem, contribuindo à libertação de mentes.


Aqui se manifesta, mais uma vez, a necessidade de condução inter-relacionada de estudos culturais com aqueles da própria ciência (science studies).


Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "Liberdade! O homem livre no desenvolvimento da personalidade, nas Ciências e na Cultura em interações internacionais.Revisando relações Liberdade/Liberalismo". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 140/1 (2012:6). http://revista.brasil-europa.eu/140/Liberdade-em-debate.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.