Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Grafite em Berlin-Friedenau. Foto A.A.Bispo

Grafite em Berlin-Friedenau. Foto A.A.Bispo

Fotos A.A.Bispo. Berlin-Friedenau.
No texto:
imagens de "O Brasil e a Allemanha" (1923).
©Arquivo A.B.E



 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 141/3 (2013:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath e Comissão especializada

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
e institutos integrados


© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2955




"O Brasil e a Allemanha" (1923) como marco de uma nova era das relações
Gaelzer Netto (1874-1954), propaganda do Brasil na Europa sob Epitacio Pessoa (1865-1942)
e a auto-consciência teuto-brasileira como expressão de processos culturais

Alemanha-Brasil
Diálogos de Berlin-Charlottenburg pelos 30 anos do simpósio euro-brasileiro de renovação dos estudos da emigração alemã ás Américas
no ano da Cumbre Unión Europea-CELAC 2013
Trabalhos em Berlim-Friedenau, local de atividades da Editora Internacional

 

No ano de 2013 completam-se três décadas do primeiro simpósio internacional dedicado à emigração alemã às Américas sob as novas condições criadas pelo processo de integração européia. Esse evento, de iniciativa euro-brasileira, realizado na Alemanha, teve como objetivo lançar as bases de uma renovação dos estudos transatlânticos e interamericanos.

Esse fato justifica uma atenção especial às relações entre a Alemanha e o Brasil no corrente ano, retomando e aprofundando estudos desde então desenvolvidos à luz dos debates teórico-culturais mais recentes. (http://revista.brasil-europa.eu/141/Brasil-Alemanha-2013.html)

Berlin-Friedenau. Foto A.A.Bispo

Com o intuito de alcance de uma perspectiva mais ampla capaz de superar delimitações de enfoques bi-nacionais na pesquisa da emigração/imigração, da colonização européia do século XIX e XX e das relações internacionais, considerou-se no evento de 1983 a necessidade de uma atenção maior à inserção desses desenvolvimentos e elos em processos continentais e intercontinentais.

Salientou-se que o tratamento adequado de questões voltadas aos vínculos e relações entre a Alemanha e o Brasil não pode basear-se em projeções de situações posteriores a anteriores, do presente ao passado, de uma Alemanha e de um Brasil da atualidade àqueles do passado, uma vez que houve no decorrer de mais de um século consideráveis modificações não só de delimitações geográficas de territórios, de formas políticas e configurações populacionais, mas sim também de compreensões da própria cultura.

Partir inconscientemente de uma concepção da Alemanha - então apenas a Alemanha Ocidental com a capital em Bonn - na consideração da história emigratória e das relações Alemanha-Brasil da época do Império alemão, no seu período mais tardio com colonias e abrangendo territórios a Leste europeu seria indisculpável anacronismo, assim como seria inadequado projetar uma imagem atual do Brasil e de suas expressões culturais do presente à época do Império brasileiro, quando foram lançados os fundamentos do desenvolvimento colonial centro-europeu no país.

Uma visão dirigida a processos nos estudos culturais em relações internacionais não pode deixar também observar complexos desenvolvimentos político-culturais de formação nacional, de consciência histórica e de identidades, de integrações e diferenciações de ambos os lados e atentar às suas também complexas interações.

A Alemanha experimentou um difícil movimento em direção à união nacional na diversidade de seus principados, ducados e cidades-estados, sendo marcada na segunda metade do século XIX pela fundação do Império após a Guerra Franco-Prussiana de 1870/71 e extraordinário desenvolvimento como potência européia. Uma explícita política colonial de aquisição de possessões em outros continentes no exemplo de outras nações européias, que estabeleceu-se em fins do século, teve ressonância a posteriori em regiões de imigração já estabelecidas no Brasil.

Esses imigrantes, por sua vez, inseriam-se não apenas nesses desenvolvimentos nacionais do Império alemão de multifacetadas tendências, mas também passaram a vivenciar processos de adaptação e, com as novas gerações já nascidas no Brasil, de transformações quanto à identidade e à auto-consciência, em muitos casos ambivalentes e marcadas por afirmações de pertencimento à nova terra e ao mesmo tempo de diferenciação cultural com os exagêros próprios de situações de labilidade.

Os alemães nas grandes cidades participavam tanto dos processos nacionais alemães quanto daqueles de um Brasil que havia feito a sua independência apenas há algumas décadas e que procurava tanto uma individualidade cultural própria como a afirmação como país culto segundo critérios internacionais entre as nações.

A cesura da Primeira Guerra na historiografia de relações

Uma atenção especial foi dado no simpósio de 1983 à grande cesura marca as relações entre a Alemanha e o Brasil: a Primeira Guerra Mundial. Com ela terminou a antiga Alemanha, ou, mais precisamente, um período iniciado com a vitória na Guerra Franco-Prussiana.

Essa interrupção de continuidade e complexa situação pela Guerra de 1914-18, primeira designada como de mundial, assim criada tem grandes consequências para os estudos de relações entre a Alemanha e o Brasil, estabeleceu novos fatos, pressupostos para desenvolvimentos posteriores, referenciais e critérios que não podem deixar de ser considerados nos estudos de releções.

A história da emigração e o desenvolvimento de elos entre a Alemanha e o Brasil até 1914 não pode ser considerado a partir de visões determinadas por situações dos anos posteriores à derrota alemã e fim da monarquia, assim como o posterior não pode ser analisado como se não tivesse havida esse grave corte de continuidade com o passado, apesar da existência de pontes.

Tem-se aqui uma questão historiográfica de fundamental importância tanto para os estudos históricos como para os culturais em geral e que não pode deixar de ser continuamente levantada e tratada sob diferentes aspectos devido à sua complexidade tanto na Europa como no Brasil.

Se a Guerra trouxe sérias repercussões para as comunidades alemãs e de seus descendentes no Brasil - sempre relembradas pelas suas implicações culturais e no uso do idioma - levanta, sob a perspectiva brasileira e teuto-brasileiras, outras questões do que aquelas que se colocam sob uma perspectiva alemã-européia. Basta lembrar que justamente dificuldades e restrições nas trocas comerciais forçaram e favoreceram desenvolvimentos de empresas alemãs e de seus descendentes no Brasil que contribuiram a expansões e modificaram as bases econômicas e mesmo de auto-consciência teuto-brasileira e brasileira em geral para relações posteriores com uma abalada Alemanha.

Implicações de processos culturais e identificatórios de teuto-brasileiros

Sob o ponto de vista de análises culturais, deve-se considerar que as novas gerações de descendentes de alemães, já nascidas no Brasil, por mais forte que fosse o conservadorismo cultural de círculos em que viviam, inseriam-se em complexos processos de integração e transformação de identidade, marcados em geral por cambiáveis ou geracionalmente alternados elos emocionais e de consciência histórica com a terra de seus pais e avós.

Ainda mais do que em outros casos que vem sendo estudados de mudanças de identidade, a Guerra parece ter acentuado - em visões gerais - ímpetos e anelos registráveis em situações de instabilidade, levando de forma particularmente intensa a afirmações de amor à terra natal e ao mesmo tempo de diferenciação com base nas origens, de orgulho pela ousadia à procura da liberdade de ação de seus antepassados, pelo empreendedorismo derivado da força de trabalho na persecução de interesses em mundo natural e na sua defesa. (http://revista.brasil-europa.eu/141/Ufanismo-de-teuto-brasileiros.html)

Considerado em visão retrospectiva, em consciência da generalidade das observações, poder-se-ia constatar indícios de uma quase que síndrome de livre desenvolvimento de forças e de seu sucesso, de um credo que teve consequências tanto para uma auto-consciência teuto-brasileira perante os "luso-brasileiros" como perante os alemães na Europa, apresentando-se como distantes parentes prósperos que venceram ao longe e que sob certos aspectos consideravam-se como mais alemães do que aqueles do Velho Mundo.

Diferentemente dessa excessiva e complexa auto-consciência de teuto-brasileiros, os alemães do país conturbado dos anos que se seguiram à Guerra eram marcados por contraditórios sentimentos e impulsos explicáveis pela derrota, pêsos de reparações, ressentimentos e perda de uma situação que, poucos anos antes, havia sido a de uma extraordinária potência econômica, política, científica e cultural.

A análise dessa situação dos anos de reconstrução das relações entre a Alemanha e o Brasil após a Segunda Guerra Mundial consiste assim tarefa de fundamental significado para os estudos de relações entre a Alemanha e o Brasil.

No simpósio de 1983 dirigiu-se neste sentido a atenção a uma publicação que surge como um significativo marco dessa nova fase da história das relações, o que se revela já na sua denominação e no seu escopo: A Allemanha e o Brasil 1822-1922 (Berlim: Editora Internacional 1923), "um livro dedicado às boas relações entre os dois paízes, com collaborações brasileiras e allemães". (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM15-01.htm)

Já o fato de ter sido impressa em português na capital da Alemanha surge quase como um símbolo do novo papel representado pelo Brasil, ou melhor pelos teuto-brasileiros nos anos de reconstrução de relações, o que se manifesta nas próprias características do uso do idioma.

Ao lado dos principais protagonistas por parte dos brasileiros, em particular dos brasileiros de ascendência alemã, salientou-se que se deve considerar os alemães preocupados com o restabelecimento de pontes de ligação através de laços de amizade e de paz entre a Alemanha e a América Latina e, em especial, com o Brasil.

Gaelzer Netto (1874-1954), propaganda e expansão do Brasil na Europa sob Epitacio Pessoa (1865-1942)

Uma atenção particular nos debates de 1983 foi dada ao papel desempenhado pelo Coronel Guilherme Gaelzer Netto na história das relações entre a Alemanha e o Brasil dos anos 20.

Singular e mesmo questionável sob diversos aspectos, a atuação de Gaelzer Netto exige para ser estudada não apenas a consideração do contexto histórico alemão, mas sim também, como salientado em sessão de estudos levada a efeito em São Leopoldo, em 2002, os processos culturais teuto-brasileiros em que se integrou e que possibilitam o esclarecimento de traços de sua personalidade e maneiras de comunicar-se e agir.

Já de uma outra geração do que os pioneiros e seus filhos, Gaelzer Netto representa uma tomada de consciência de descendentes de alemães que passaram a revalorizar o país dos antepassados sem perder o orgulho de terem nascido no Brasil. Significativamente, Gaelzer Netto viveu durante muitas décadas em Berlim, onde veio a falecer.

Foi diretor, de 1921 a 1941, da Propaganda do Brasil para a Europa do Norte do Ministério de Trabalho, Indústria e Comércio. De 1940-41, dirigiu o noticiário desse órgão (Nachrichtendienst Amtliche Brasil-Propaganda)

Nascido em São Leopoldo em 1874, tendo estudado em Porto Alegre, fazendeiro e político, foi intendente de São Leopoldo por largo espaço de tempo e que incluiu os dois primeiros anos da Guerra (1902-1916). Nessa função, entrou na história regional pelo seu empreendendorismo desenvolvimentista, em particular no calçamento de vias públicas e estradas, iluminação, telefone, abastecimento de águas e saneamento. Com a sua experiência de grande fazendeiro e com o seu conhecimento de alemão, pôde atuar como promotor de produtos brasileiros na Alemanha, tornando-se um ativo e declarado propagandista do Brasil, realizando viagens de conferências e de visitas a firmas para o estabelecimento de contatos e promoção comercial.

Em artigo de título "A Expansão economica do Brasil na Europa Central", escrito para o livro O Brasil e a Allemanha às vésperas do Centenário da Independência do Brasil, Gaelzer Netto salienta o seu significado como marco de um maior contato político, comercial e intelectual entre o Brasil e a Alemanha. (op.cit. pág. 37 ss.)

Em primeiro lugar, salienta que era do conhecimento geral que "entre os allemães sempre houve uma tocante sympathia pelo nosso Brasil", embora não existisse na grande maioria do povo alemão um conhecimento exato do país e do povo. O mesmo aconteceria no Brasil relativamente à Alemanha. Esse desconhecimento recíproco dos dois povos tinha como consequência prejuízos materiais para ambas as nações. Era de grande interesse para os brasileiros investigar as necessidades da Alemanha atual quanto ao fornecimento de víveres e matérias primas para a sua indústria.

A Alemanha antiga, quando possuidora de colonias de além-mar, procurava no Brasil somente aquilo que o próprio solo não lhe fornecia suficientemente. A Alemanha de após-Guerra, sem as suas colonias e possessões, com os seus novos limites, via-se obrigada a procurar a substituição dessas fontes. Essa situação oferecia ao Brasil uma oportunidade para o desenvolvimento de sua exportação.

Para isso, para Gaelzer Netto urgia dar prosseguimento a uma propaganda hábil e conscienciosa. Não seria necessário muito dinheiro, mas sim pessoas competentes que, dominando o alemão, conhecedores dos costumes e do caráter do povo, soubessem conseguir com um labor constante o fim almejado que era a expansão econômica do Brasil.

Seria necessário que a propaganda brasileira na Alemanha tivesse um caráter oficial, pelo fato dos alemães, por natureza, serem desconfiados com a propaganda particular, que supunham visar quase sempre o interesse pessoal. Seria necessário modificar os métodos antigos à vista da completa transformação da vida econômica da Europa.

Generosidade como estrategia de alcance de interesses de expansão

Um dos métodos utilizados por Gaelzer Netto para conquistar a simpatia dos alemães foi o da distribuição de víveres aos pobres na Alemanha e na Áustria (Liebesgaben) no âmbito de um "Comitê de Socorro à Europa faminta". Para êle, cada pacote de café, feijão, arroz, carne em conserva, banha, herva mate, farinha de mandioca, lentilhas e açúcar representava um agente da propaganda dos produtos brasileiros e, ao mesmo tempo, uma prova caritativa do povo brasileiro na sua grande generosidade. Cada faminto contemplado, saboreando o produto nacional, tornava-se um co-propagandista da expansão econômica brasileira.

A propaganda brasileira foi organizada por Gaelzer Netto sistematicamente segundo determinados critérios e formas de procedimento: ela incluia 19 conferências públicas com diapositivos, publicações na imprensa através de um Press-Bureau) que divulgavam imediatamente todos os atos do Govêrno e notícias relativas a assuntos comerciais, econômicos, financeiros, industriais, agrícolas, científicas e traduções de recortes de jornais, folhetos e discursos de interesse. Incluia também um serviço verbal, telegráfico, telefônico e epistolar de informações sobre o Brasil.

Segundo êle, as conferências públicas despertavam no auditório e na imprensa interesse pelo país em geral pouco conhecido. Os resultados não eram somente teóricos e científicos, mas práticos. Tratava-se de um novo desenvolvimento, pois, de acordo com as suas próprias palavras, antes da sua chegada não havia ainda uma propaganda brasileira na Alemanha, onde perduravam ressentimentos da Guerra e da posição que nela tomara o Brasil.

Em todas as suas conferências sempre teve a presença de representantes do Govêrno da Alemanha e da Áustria, da ciência, do capital, da indústria e do comércio. Se a emigração era a primeira consequência dessa propaganda, a expansão econômica seria a segunda.

Gaelzer Netto salienta que a preparação das conferências não eram fáceis, pois nos auditórios encontravam-se com frequência e de forma surpreendente muitos conhecedores e interessados cientifica- e economicamente no Brasil. Além do mais, o alemão ilustrado tinha uma tendência para a crítica, acompanhando atentamente as informações e a argumentação do conferencista.

Nas suas conferências, Gaelzer Netto mandava distribuir pacotes contendo erva-mate, folhetos sobre a Exposição do Centenário, fascículos em alemão de título "Porque me ufano de minha Pátria?", um guia culinário para os colonos no Brasil e outro de horticultura.

Nesse seu procedimento, que consistia assim expressamente na prática interessada de atos de caridade como expressão da generosidade brasileira, Gaelzer Netto podia contar com o apoio de seus conterrâneos do Rio Grande do Sul. Assim, o Coronel Pedro Ozório, de Pelotas, ofertou duzentos sacos de arroz para  a distribuição entre os famintos da Alemanha e da Áustria, o que serviu eficazmente como propaganda para o produto. Gaelzer Netto lembra, aqui, que o consumo do arroz na Alemanha, anteriormente insignificante, já aumentara consideravelmente.


Viagens de propaganda de produtos brasileiros e reciprocidade de efeitos

Uma das principais atenções no trabalho propagandístico de Gaelzer Netto era voltada ao cacau. Para êle, se superadas certas insuficiências do produto apontadas pelos europeus e resultantes de processos de colheita, a Alemanha poderia tornar-se excelente mercado. O povo alemão tornara-se até mesmo "guloso" após os anos de Guerra, quando esteve privado de apreciar chocolate.A grande procura fizera com que surgissem muitas fábricas de chocolate, e no futuro seria consumido não somente em barras, mas também como bebida nutritiva. O Brasil possuia condições naturais apropriadas para melhorar qualitativamente o produto e, assim, vir de encontro a essa necessidade.

Semelhante situação dizia respeito ao fumo. Com o término dos monopólios de importadores da guerra, havia uma grande procura do fumo em folha e que se explicava pela modificação de costumes, sendo raro não se encontrar mulheres que não fumavam. O produto brasileiro era prejudicado por um falso uso do termo "Brasil", uma vez que segundo o costume, todo o charuto escuro era assim denominado. Tornava-se, assim necessário modificar a imagem do tabaco designado pelo nome do país. Assim, os produtores brasileiros deviam dar mais atenção à produção de fumo claro, mais a gosto dos fumantes alemães. Seria também necessário haver na Alemanha depósitos suficientes do produto, e para isso deviam-se criar depósitos nos portos de Bremen e Hamburgo.

Para Gaelzer Netto, em futuro não distante também o algodão podia tornar-se importante produto de importação alemã, uma vez que o país, após a guerra, precisava de roupas. Sabia-se na Alemanha do empenho do Govêrno do Brasil em melhorar a produção alogodoeira, proibindo a venda de sementes nas fábricas de descaroçamento e distribuindo sementes selecionadas. Nenhum país teria, como o paraíso terrestre que seria o Brasil condições melhores de suprir o mercado alemão. Para isso, seria necessário haver depósitos algodoeiros em Bremen, empório do algodão na Europa.

Para Gaelzer Netto, seria um engano afirmar que o feijão preto não tinha entrada na Alemanha. Havia, de fato, reticências quanto ao feijão devido à sua cor, mas este logo seria apreciado, e a sua introdução no país seria apenas uma questão de propaganda e preço.

Gaelzer Netto tinha a esperança também de introduzir o consumo da farinha de mandioca na Alemanha, aproveitando-se da situação do país, obrigado que estava a importar alimentos devido à perda de territórios e escassez de cereais. Para êle, também a farinha de mandioca apenas não tinha sido ainda introduzida por falta de propaganda adequada. Assem, o Comissariado, sob a sua direção, solicitara do Governo brasileiro sacos de farinha especial, pretendendo fazer experiências no fabrico do pão do trigo e de centeios, que deveriam ser distribuidos gratuitamente aos pobres em Berlim.

Um dos assuntos tratados nas suas conferências era o da riqueza do Brasil relativamente a madeiras de lei, procurando desenvolver a exportação de madeira para a Alemanha. Nesse sentido, porém, os seus esforços propagandísticos sofreram um abalo ao descobrir que havia um método inventado pelos alemães de transformar madeiras leves em pesadas e duras através de procedimentos químicos e de pressão.

Negativa era também a situação da borracha, devido à concorrência africana e asiática, regiões onde a mão de obra era mais barata. Gaelzer Netto procurava visitar fábricas que usavam borracha para estudar as condições e ver as possibilidades de recuperar a perda sofrida pela exportação brasileira.

Negativa era também a questão da exportação de açúcar, pois o açúcar de beterraba na Alemanha era mais barato do que o brasileiro.

Quanto à exportação de couros, o Comissário conseguiu lançar as bases de alguns negócios, constatou, porém, que os couros do Brasil gozavam de má fama na Europa devido às marcas causadas por bernes, o que exigia uma maior seleção por parte do Brasil na exportação.

Nas suas conferências, Galezer Netto procurou demonstrar as grandes riquezas do subsolo no Brasil e a sua importância em época que se faziam necessárias para a indústria da Alemanha. Esta, com a perda da Alsácia e Lorena, da Alta Silésia, de onde o Império recebera no passado grande parte de ferro, sentia agora a necessidade de minérios. Encontrara aqui interesse por parte dos industriais e apenas o baixo valor da moeda alemã impedia até então o prosseguimento de negócios.

Desenvolvimento de contatos e lobbyismo em atitude de singular auto-consciência

O Comissariado do Brasil procurou aproveitar a situação da perda das colonias alemãs da África e da Oceania para influenciar as companhias coloniais que nelas investiam em plantações para aplicarem os seus capitais e as suas experiências nos trópicos em regiões para tal adequadas no Brasil.

Durante as suas atividades intensas de propagandista, surgiu o projeto de uma nova lei alfandegária alemã, e Gaelzer Netto passou a defender os produtos brasileiros com os intuitos de auxiliar a representação diplomática em Berlim. Procurou auxílio entre os alemães amigos do Brasil e os mentores da imprensa. Dirigiu-se aos principais importadores das cidades portuárias e às bolsas de café. Ao mesmo tempo, procurou o auxílio de parlamentares, "com elles entretendo pequenas confabulações para o desenvolvimento de amizades utilissimas e sympathicas a nossa causa." Escreveu como Comissário do Brasil um Memorial ao Presidente a aos 469 membros do Reichstag, ao Presidente da República e a vários ministros.


Germano Kirchhoff e a Editora Internacional: levar a cultura alemã a além mar

A leitura de O Brasil e a Allemanha como livro-marco de situações e desenvolvimentos de pós-Guerra exige que se considere uma iniciativa merecedora de maior atenção na história das relações entre a Alemanha e o Brasil: a criação da Editora Internacional. Essa empresa, dirigida pelo Dr. Germano Kirchhoff, apesar de todas as dificuldades da época na Alemanha, tinha como objetivo levar "a além mar a cultura e o espírito allemão afim de fazel-lo conhecido pela literatura e ajudar a grande obra de Paz no mundo." (op.cit. 14)

Tratava-se, assim, de um empreendimento editorial não apenas dirigido ao Brasil, mas à América Latina em geral, e dedicado não apenas à difusão da cultura e do pensamento alemães, mas sim também explicitamente a um ideal mais amplo, de dimensões globais, o de contribuir à paz no mundo.

Foi a necessidade sentida e mesmo o empenho de brasileiros de ascendência alemã ou próximos á cultura alemã no Brasil que teriam motivado o empreendimento de Germano Kirchhoff em Berlim. Para coordená-lo, convidou-se um intelectual que possuia experiência no Brasil, conhecido como escritor e conhecedor de assuntos relacionados com a imigração e a colonização: o Dr. Alfred Funke.

Nessa obra, A. Funke contou com a colaboração de um brasileiro de ascendência alemã então em Berlim, Walter Emerich Hehl, nome que mereceria atenção maior nos estudos euro-brasileiros. Foi êle não apenas o tradutor de todos os textos em alemão para o português da publicação, como também autor de uma contribuição na qual enaltece a sua cidade, o Rio de Janeiro ("Rio de Janeiro de hoje", op.cit. 157-160). (http://revista.brasil-europa.eu/141/Ufanismo-de-teuto-brasileiros.html)

A realização dessa publicação não poderia ter sido realizada sem o apoio do representante do Brasil, o Coronel Galzer-Netto, que não apenas prestou a sua colaboração com artigos referentes à economia e à imigração, como também aconselhou o editor quanto à escolha de temas e de colaboradores.

Os grandes custos acarretados pela publicação da obra em época de dificuldades econômicas da Alemanha apenas puderam ser enfrentados com o auxílio de empresas com representações e interesses comerciais no Brasil, representadas no livro através reclames e artigos de propaganda subliminar. A obra serviu assim também à propaganda comercial de firmas e produtos e representa hoje uma fonte significativa para a constatação de empresas relacionadas com o Brasil no período de reconstrução de laços posterior à Guerra.


A "civilização brasileira" e o elemento alemão no Brasil segundo Alfred Funke

O organizador responsável por O Brasil e a Allemanha, Dr. Alfred Funke,  encontra-se representado no livro com um trabalho sobre o tema "A civilização brasileira e o elemento allemão no Brasil", um dos artigos de maiores dimensões da coletânea. (op.cit. 121).

Esse trabalho desempenha no conjunto da obra o papel de texto de natureza fundamental por apresentar um panorama histórico amplo do processo colonizador e do desenvolvimento econômico, comercial e cultural do país. Esses resultados de estudos da literatura são focalizados por A. Funke a partir de experiência ganha em regiões de imigração do Rio Grande do Sul. Assim, o texto combina trechos derivados de estudos de fontes secundárias e de observações empíricas por parte de Funke, influenciando estas a interpretação do desenvolvimento histórico e, vice-versa, oferecendo conhecimentos obtidos da literatura à interpretação de fatos e tendências constatáveis no presente.

Esse procedimento do autor e o fato de ter sido segundo as suas próprias palavras premido pela falta de tempo e pela pressa na execução do empreendimento editorial, faz com que esse complexo e heterogêneo texto-base de O Brasil e a Allemanha exija hoje particular atenção de discernimento na sua leitura, transformando-o antes de fonte de informações em objeto de estudos culturais.

De maior interesse sob este aspecto surgem as considerações finais de A. Funke relativas a processos culturais e educativos nas regiões da imigração alemã no Brasil e, sobretudo, àqueles de alemães nas grandes cidades.

"O typo do allemão na cidade brasileira é muito differente do colono. O contacto com a gente brasileira é mais forte. O negociante, o medico, o empregado publico, o artifice e o operario da origem allemã - todos são forçados e precisados de usar o idioma portuguez nos seus officios, e os descendentes delles, educados nas escolas das cidades dão valor a provar o seu conhecimento da lingua e dos costumes brasileiros.

Mas este contacto entre a gente teutobrasileira e lusobrasileira divulgou tambem o apreço da arte e da sciencia allemã nas familias brasileiras. Hoje não ha gente ilustrada no Brasil que não conheça os heróes da literatura e da arte allemã. Os nomes de Goethe, Schiller, Wagner, Beethoven têm na vida intellectual do Brasil o mesmo valor como antes os nomes celebres da França e de Portugal. Principalmente os medicos nacionaes no Brasil apreciam os progressos da sciencia allemã, e nas universidades e clinicas de Allemanha já acham-se medicos formados nas faculdades do Brasil que entraram no corpo academico da universidade allemã em Berlim ou em outra cidade para assistir ao trabalho dos celeberrimos professores allemães e transplantar os sublimes successos da medicina a sua patria brasileira. Elles accusarão no Brasil o acolhimento hospitaleiro do lado dos seus collegas e das autoridades allemães.

Resumindo em poucas palavras o effeito do contacto da gente allemã com a população brasileira temos de accusar o apreço do trabalho agronomo e technico allemão no Brasil, apreço que se augmentará em tempos futuros nos quais desenvolver-se-ha a grande industria mineira e a fabricação do aço no solo brasileiro. A experiencia technica allemã terá neste desenvolvimento seu papel digno e valoroso. À gente brasileira já conhece as preferencias da educação segundo o methodo allemão e frequentará de anno em anno mais as academias e universidades da Allemanha transplantando assim a sciencia allemã para o Brasil. Este contacto scientifico terá o effeito que ambos os povos se conhecerão mais bem, e os esforços de uma propaganda germanophoba no Brasil neste periodo futuro mais e mais serão infructiferos e esteris. O commercio allemão sempre manterá a sua posição importante, e as relações commerciaes augementar-se-hão nos lustros futuros.

A Allemanha sempre apreciará o Brasil como seu amigo, e esta amisade tornará se mais forte no seculo futuro no qual a industria da Allemanha precisara ainda mais do que hoje das materias primas do Brasil, offerecendo aos mercados brasileiros os productos perfeitos da technica allemã. A emigração allemã sempre achará no Brasil a nova terra para o seu trabalho sincero e fructifero recordando-se da coincidencia da Independencia do povo brasileiro e da primeira immigração allemã no anno propicio de 1822!" (op.cit. 140-141)

O Centenário da Independência do Brasil e a Exposição Internacional

A oportunidade e mesmo a premência da realização dessa publicação foram resultados da Exposição Internacional realizada em 1922 no Rio de Janeiro por motivo do Centenário da Independência do Brasil, a primeiro grande evento que reuniu as nações do mundo após a Guerra e que assumiu um extraordinário sentido simbólico na promoção da paz e do entendimento internacional.

"O Brasil para festejar esta data de sua independencia (...) não o poderia fazer melhor do que com a Exposição Internacional que abre nesta data no Rio de Janeiro, sua Capital Federal, dando ao mundo desta arte a primeira oppurtunidade depois dos sangrentos annos de guerra, para conhecer dos progressos e victoria pacificas da arte, do trabalho e da sciencia. Ali todas as nações com seus pavilhões emoldurados pela faustosa natureza da Capital da grande republica sul-americana, procurarão conduzir simultaneamente, depois de se terem degladiado nos campos de batalha, o mundo aos braços da Paz e da Concordia.

O Brasil, cuja Constituição não permitte qualquer guerra que não seja unicamente defensiva da sua honra e das suas fronteiras, mostra pela abertura da sua grande Exposição Internacional, ao mundo, qual a estrada para o bom entendimento entre os povos do globo e procurará assim evitar novas e terríveis desventuras e desgraças, conduzindo destarte todos para a estrada do entendimento social da humanidade.

O Brasil, o verdadeiro amigo da Paz, sabe, que não é a espada mas sim a palma da Paz o symbolo do futuro quando os povos do mundo não quizerem desapparecer como anonymos dentro das labaredas do Inferno. A sua Exposição Internacional será o seu grande salão, onde receberá seus hospedes." (op.cit. prefácio)

Esse reconhecimento do significado que de muito ultrapassava as fronteiras brasileiras da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, registrado em agosto de 1922, um mês antes de sua realização, foi já obscurecido pela constatação de que a Alemanha não se podia nele condignamente representar na Exposição devido às dificuldades por que passava.

"Os verdadeiros amigos de boas relações entre as duas nações com um passado cheio de valor atravessarão certamente cheios de dor a Avenida das Nações, vendo que a Republica Allemã, uma das nações mais industriaes do mundo, cujo genio technico faz milagres, cujo tino commercial sempre consegue mais se desenvolver, cuja sciencia sempre solve novos problemas e que se faz credora do reconhecimento mundial, cuja industria e commercio propriamente dito é sempre intelligente e emprehendedor, não esteja representado por um pavilhão digno no qual elle possa se representar com o mesmo explendor como em St. Luis, Paris etc. Mas a Republica Allemã, depois de terminada a guerra, bem como o povo allemão ficaram sobre o jugo do tratado de Versailles e empobrecidos e com a sua fraquissima moeda e sua vontade honra de cumprir com o que lhe é determinado até o maximo extremo, não podia nestas condicções pensar na construcção de um pavilhão que teria que se esconder na sombra da sumptuosidade dos demais paízes representados.
Mas, mesmo que falte o pavilhão da Allemanha na Avenida das Nações, isto comprovará que o espírito allemão procurava conquistar com a palma da Paz a posição que lhe cabe no coro geral das nações, ao qual já o Brasil pertence ha cem annos."

Como essas palavras sugerem, a publicação O Brasil e a Allemanha surge como uma substituição do pavilhão alemão que faltou na Avenida das Nações, representando ela própria um pavilhão no sentido figurado, marcando a presença da Alemanha a posteriori através de uma obra de cooperação intelectual.

Ao mesmo tempo, a menção aos verdadeiros amigos das boas relações entre as duas nações que, percorrendo a Avenida das Nações, sentiam a dor da ausência da Alemanha, dirige a atenção ao papel representado pelos alemães que viviam ou tinham vivido no Brasil e pelos brasileiros de ascendência alemã na consecução do projeto O Brasil e a Allemanha.

A obra sugere aqui que não deve ser vista como empreendimento de propaganda nacional alemã, mas sim como um projeto alemão-brasileiro em múltiplos sentidos, adquirindo assim significado como antecedente dos estudos específicos de época mais recente e testemunho da inserção desses estudos em contextos político-econômicos. Nele atuaram intelectuais com experiência de vida nas regiões de imigração e em círculos alemães e alemães-brasileiros do comércio e da cultura das grandes cidades, assim como de brasileiros residentes na Alemanha.

Cíclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O Brasil e a Allemanha" (1923) como marco de uma nova era das relações
Gaelzer Netto (1874-1954), propaganda do Brasil na Europa sob Epitacio Pessoa (1865-1942)
e a auto-consciência teuto-brasileira como expressão de processos culturais". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 141/3 (2013:1).
http://revista.brasil-europa.eu/141/Brasil-Alemanha-1923.html