Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Basilica S.Pedro/Roma.Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.


Basilica S.Pedro/Roma.Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.


Basilica S.Pedro/Roma.Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.


Basilica S.Pedro/Roma.Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.


Basilica S.Pedro/Roma.Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.


Basilica S.Pedro/Roma.Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.

Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 150/1 (2014:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3113



Vaticano-Alemanha-Brasil
Religião/Ciência, Missão/Esclarecimento - nova luta cultural?

Paradoxais caminhos de processos anti-secularizadores na Europa e no Brasil

Nos 125 anos da proclamação da República no Brasil e 100 anos da eclosão da Primeira Guerra


 
Neste seu quarto número de 2014, a Revista Brasil-Europa/Correspondência Euro-Brasileira apresenta aspectos de temas considerados pela A.B.E. em Roma, em agosto do corrente ano. Essas reflexões tiveram prosseguimento em estadias de estudos nas cidades alemãs de Eichstätt e Werl.


A visita ao Vaticano decorreu aqui sob outro signo daquelas realizadas anteriormente, iniciadas no âmbito de programa de renovação dos estudos culturais dos anos 70 do século XX (Veja). Estes, desenvolvidos de forma mais intensa em estudos em bibliotecas e museus romanos, fundamentaram trabalhos posteriores referenciados segundo o Brasil,
Vaticano. Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.
Portugal e outros países de língua portuguesa em instituições universitárias e culturais pontifícias. (Veja)


As reflexões atuais foram precedidas e acompanhadas por trabalhos de reconsideração dessas atividades e do desenvolvimento do pensamento, de balanços e reajustes para um prosseguimento refletido dos debates que caracterizam as atividades da A.B.E. do corrente ano. (Veja)


Com esse procedimento, procura-se evitar repetições de argumentos, caminhos já percorridos e analisar criticamente possíveis desvios e instrumentalizações ocorridas no decorrer das décadas, corrigindo-os. .


Vaticano. Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.
Em Roma pôde-se constatar as dimensões internacionais do movimento de re-evangelização e do despertar de novo espírito missionário proclamado pelo pontfício emérito Bento XVI e acentuado pelo atual papa Francisco. Entre os muitos grupos de peregrinos e jovens entusiásticos de muitos países, registrou-se a presença de um grande número de brasileiros.


Aqui tornou-se claro a necessidade de tecer-se reflexões mais diferenciadas sobre os pronunciamentos e as iniciativas eclesiásticas concernentes a uma nova-evangelização da Europa e de um novo espírito missionário nos países extra-europeus.


Ambos têm como objetivo a  revitalização e propagação religiosa e dirigem-se de forma explícita ou implícita à superação de situações marcadas pela secularização.


Coloca-se, assim, a necessidade de retomada de análises de um antigo campo de tensões agora revivido com particular intensidade e que diz respeito às relações entre missão e esclarecimento, religião e ciência.



Vaticano. Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.

Eichstätt no „Ano Barroco 2014“ - Ouvindo vozes contrárias


As reflexões encetadas em Roma tiveram o seu prosseguimento em contextos particularmente marcados pelo Catolicismo da Alemanha, salientando-se aqui Eichstätt, um dos principais centros dos estudos universitários católicos na Baviera.


Eichstätt.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.

Eichstätt. Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.
Essa cidade adquire no corrente ano particular significado, tornando-se foco de interesses dos estudos culturais - também os euro-brasileiros - devido ao fato de ali celebrar-se o „Ano Barroco 2014“ pelos trezentos anos de falecimento de Jakob Engel (1632-1714), arquiteto que marcou a fisionomia de Eichstätt como uma das mais impressionantes e belas cidades barrocas da Europa.


Nesse contexto impregnado do esplendor do patrimônio católico barroco e do espírito contra-reformatório depara-se com uma „Galeria de Críticos da Igreja“. Nela co-atuam entidades que se preocupam com o novo ressurgimento religioso e mesmo fundamentalista nas suas diversas formas. Elas defendem uma sociedade secularizada e o Esclarecimento sob o signo do Humanismo - um Humanismo que considere os conhecimentos científicos - um „Humanismo evolucionista“ . 


Nesse sentido, dá-se continuidade ao intento que marca as edições da revista do corrente ano de reconsiderar e analisar desenvolvimentos das últimas décadas referentes ao Brasil à luz de tendências e exigências da atualidade, e aqui devem ser consideradas as tensões que podem ser observadas entre aqueles que se dedicam a uma revitalização religiosa através da ação missionaria e aqueles que se preocupam com esse ressurgir de intuitos anti-secularizadores.


Trata-se da sempre sentida necessidade de esclarecimento de complexos processos culturais do passado a serviço de uma maior claridade na consideração de preocupações do presente.


Werl. Forum dos Povos

Questionar acepções e abertura à modificação de enfoques como exigências cientificas


A visão do passado e do presente de desenvolvimentos pode ser turvada não apenas devido à própria complexidade das questões tratadas, mas também pelo condicionamento cultural daquele que reflete. Este, pela sua formação, sob a influência do contexto em que vive e atua, de meios de comunicação, de ações propagandísticas, assim como de tradições de pensamento de áreas de estudos tende a conotar de forma nem sempre refletida fatos e desenvolvimentos como positivos ou negativos.


Torna-se necessário, assim, para um procedimento científico de análise de processos culturais, que também apreciações e imagens de fatos e decorrências sentidas como óbvias sejam questionadas. Essa disposição em considerar à distância e relativar avaliações pouco refletidas favorece uma análise mais diferenciada de processos históricos.


Desenvolvimentos até então irrefletidamente conotados positivamente podem revelar-se como problemáticos e mesmo negativos, tendências consideradas como progressistas mostram-se por vezes como retrógradas, e, vice-versa, desenvolvimentos vistos sob signo negativo podem manifestar suas qualidades positivas, situações supostamente avançadas como resultantes de retrocessos.


Nova Evangelização e novo espírito missionário - ações apenas positivas?


Um exemplo da necessidade de diferenciação mais consciente quanto a apreciações oferece o atual intuito de uma Nova Evangelização e de um renovado espírito missionário, e que é acompanhado por imagens de um novo despertar, de um renascer ou de uma nova primavera.


Nessa euforia marcada por simplicidade e alegria granjeadora de simpatias, esse intuito é percebido positivamente e aceito sem questionamentos, não apenas por católicos, mas também por aqueles de outras confissões ou mesmo por não-religiosos ou livre-pensadores.


Uma atitude de distância relativamente aos próprios condicionamentos culturais traz à consciência porém a necessidade de uma apreciação mais atenta desses intuitos e dessa intensificação de atividades que procuram reverter processos e situações marcadas pela secularização.


Considerando-se os trágicos desenvolvimentos que a intensificação de religiões tem levado em várias partes do mundo, criando tensões, conflitos e guerras que enegrecem as primeiras décadas do corrente século e representam um perigo para o globo justamente em época  em que se rememora um século da eclosão da Primeira Guerra Mundial em agosto de 1914, toma-se consciência que as dúvidas, críticas, repulsas e indignações não podem valer apenas para a revitalização da força da religião em outros contextos culturais - por exemplo no mundo islâmico ou na esfera da ortodoxia do Leste - mas também para o próprio universo cristão ocidental.


Para aqueles que dedicam os seus trabalhos e as suas vidas à procura do alcance de conhecimentos com a preocupação de superação do abismo entre ciências naturais e ciências culturais ou do espírito, a revitalização da religião, se conduzida de forma que não auto-analise seus próprios edifícios de visões do mundo e do homem, apenas pode representar um retrocesso, um desenvolvimento altamente questionável criador de paradoxias e tensões, gerador de conflitos e de processos demolidores de valores conquistados com tantos esforços pelo homem no difícil caminho secular da procura de esclarecimento.


O combate explícito à secularização, um processo que se procura reverter, é não apenas expressão de esforços de recuperação de dimensões e sentidos mais profundos na compreensão do mundo e da vida que se encontrariam em risco, mas sim em muitos casos um combate explícito a um processo esclarecedor.


Necessária conscientização do patrimônio representado por processos esclarecedores


Na atmosfera criada pelas críticas à secularização por parte dos entusiásticos agentes da renovação religiosa, não só o Iluminismo como época, mas sim também o complexo processo de procura de conhecimentos e de esclarecimento do homem através dos séculos passa a ser visto indiferenciadamente com conotações negativas e essa negativização passa a ser assumida nem sempre se forma consciente por historiógrafos, intelectuais e cientistas.


Não há dúvida que o caminho do homem à procura do esclarecimento conheceu desvios e aberrações, que devem ser analisados nos seus contextos históricos e corrigidos nas suas implicações e consequências. Essa preocupação crítica diferenciadora não pode porém turvar a consciência de que aqui se trata um patrimônio cultural da Humanidade, ainda que complexo por encontrar-se em contínua dinâmica de esforços voltados ao progresso do saber, à clarificação de visões e à superação de trevas de preconceitos, intolerância e da escravização do homem a tradições mantidas cegamente, não refletidas e compreendidas.


É obrigação assim da Ciência - não só da parte dos cientistas naturais - conscientizar-se desse patrimônio, valorizá-lo nos seus aspectos positivos, superar desvios, dar prosseguimento aos caminhos em direção ao progresso dos conhecimentos e do esclarecimento, e defendê-lo contra iniciativas que os ignorem e que os combatem paradoxalmente em nome da luz, contribuindo na verdade ao obscurantismo.


Não apenas o atual movimento de reevangelização e missionário da Igreja deve ser aqui reconsiderado sob uma perspectiva não apenas irrefletidamente positiva - caso não seja acompanhado por uma estreita cooperação com cientistas culturais que se dedicam ao estudo de edifícios de concepções e imagens da compreensão do mundo e do homem.


Também e sobretudo a expansão de igrejas evangelicais de diferentes denominações no Brasil e em outros países e continentes devem despertar a preocupação e o espírito de defesa por parte de cientistas, intelectuais e por todos aqueles preocupados por valores do Esclarecimento. A propagação de concepções que se baseiam apenas no sentido literal das Escrituras, em leituras que não consideram sentidos mais profundos, não explícitos, - o que exige procedimentos hermenêuticos refletidos e conhecimentos da cultura da Antiguidade não-biblica - representam uma ameaça no caminho da procura de conhecimento, pois impededem o reconhecimento de estruturas internas e análises de um edifício de concepções e imagens que poderiam permitir a superação do abismo entre religião e ciência.


Em nome da liberdade religiosa corre-se aqui o risco de se por em perigo não só a liberdade de pensamento no seu sentido mais abrangente, como também os direitos humanos e os esforços de revisão de posições antropocêntricas nas relações do homem com outros seres viventes.


A análise dos múltiplos caminhos do obscurantismo surge aqui como uma exigência dos estudos culturais. O aumento das trevas de conhecimentos, de preconceitos e da intolerância que se constata em muitos países da atualidade como resultado da ação missionária de diferentes confissões deveria servir de advertência para o Brasil.


Uma nova „luta cultural“?


Compreende-se, que no confronto com a força do combate à secularização e aos resultados tenebrosos da intensificação das religiões no mundo da atualidade, surjam iniciativas que, no desespero de sua labilidade e na defesa de suas posições contrárias, manifestem preocupações e indignações empregando audaciosamente fortes meios de expressão, em combatividade à altura daquela da propaganda religiosa.


Ao observador, manifesta-se aqui uma „luta cultural“ de amplas dimensões, um termo que vem sendo usado em
analogia com a „luta cultural“ na Alemanha e em outros países no século XIX.


Esse fato pôde ser constatado em toda a sua força na „Galeria dos Críticos da Igreja“ (Galerie der Kirchenkritiker) em Eichstätt, cujas publicações e cartazes contrastam com a força de suas expressões com aquelas da celebração atual da cidade como centro do Catolicismo no „Ano Barroco 2014“.


Entre as instituições atuantes nessa Galeria destacam-se a Fundação Giordano Bruno e a Liga Internacional dos Sem-Confissão e Ateístas (Internationaler Bund der Konfessionslosen und Atheisten e.V. IBKA).


A Fundação Giordano Bruno compreende-se como uma fábrica do pensar a serviço do Humanismo e do Esclarecimento, congregando cientistas, filósofos e artistas. O seu objetivo é desenvolver uma alternativa secular às religiões existentes como resultado do reconhecimento que os grandes desafios do século XXI
não podem ser enfrentados com os meios de concepções religiosas do passado.


Segundo essa Fundação, há a necessidade de uma concepção do mundo que esteja em concordância com os resultados da pesquisa científica, assim como de uma ética que se oriente segundo os direitos de auto-determinação do indivíduo no sentido da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da racionalidade crítica, da liberdade e justiça social.


Diferentemente dos tradicionais humanistas, esses preconizadores de um novo humanismo não compreendem o homem como coroa da Criação, mas sim
como um produto da evolução natural. Lembrando aqui frase de Albert Schweizer (1875-1965) que diz que o homem „é vida que quer viver em meio à vida que quer viver“, a Fundação defende um procedimento mais responsável perante o mundo animal não-humano.


Já essa menção a Albert Schweizer indica uma proximidade à tradição de pensamento à qual se vincula os trabalhos euro-brasileiros como desenvolvidos pela A.B.E. e aos intuitos de superação de antropocentrismo nos estudos culturais (Veja).


A Fundação procura promover o Humanismo assim compreendido em lugar da religião, o saber em lugar da crença, a reflexão em lugar da repetição irrefletida, fomentando a ética e não a moral convencional a favor da liberdade em superação do mêdo, do esclarecimento que se opõe ao obscurecimento, apoiando o progresso  e não o retrocesso.


Também representada nessa Galeria dos Críticos da
Religião se encontra a Liga IBKA, uma sociedade que se empenha também pela liberdade quanto à concepção do mundo, à auto-determinação e ao esclarecimento. Parte-se aqui da constatação de que a ameaça aos direitos do Homem pela religião organizada representa um problema mundial. A instituição se empenha a que os esforços no sentido de valorização do secular sejam reconhecidos, tendo para isso criado o prêmio Sapio.


Nessa associação, congregam-se pessoas não-religiosas preocupadas com os Direitos Humanos em geral, em particular com a liberdade de visões do mundo. Essa Liga, que parte de uma absoluta separação do Estado e da Igreja, defende o direito de crítica à religião, frequentemente negado por seus representantes e adeptos em nome da proteção especial a sentimentos religiosos que não devem ser feridos. A entidade vê nessa exigência por parte de representantes religiosos apenas um desejo de censura. Repelem consequentemente tais tentativas, sejam islâmicas ou cristãs.


Para o IBKA,  a história da Humanidade é uma história da Desumanidade, e nisso as religiões organizadas teriam desempenhado importante papel. A entidade lembra que na atualidade não se descortina um fim da violência religiosa e da intolerância. Pelo contrário, diariamente constatam-se atos de violência por parte de adeptos militantes de religiões. Pessoas que delas se afastam são marginalizadas socialmente, difamadas e correm até mesmo risco de vida. Isso não diz respeito apenas a contextos islâmicos, ainda que neles sejam mais evidentes. Também no Cristianismo desenvolveram-se nas últimas décadas fortes tendências fundamentalistas com a ação de grupos que pretendem estender à toda a sociedade as suas concepções de valor baseadas em convicções religiosas. É contra esse desenvolvimento que o trabalho da sociedade principalmente se dirige.


Werl -„cidade de peregrinação“. Uma polêmica nas suas relações com Portugal e Brasil


Na sua circular de verão de 2014, o IBKA relata sobre uma iniciativa na cidade de Werl que indica os estreitos elos dessa nova „luta cultural“ na Alemanha com Portugal e o Brasil. Essa cidade da Renânia do Norte/Vestfália, no distrito de Soest, hoje sem maior projeção, mas de antiga tradição e passado florescimento econômico proporcionado sobretudo pela extração e comércio de sal, é conhecida sobretudo como centro de culto mariano, centralizado este em imagem muito venerada e que é procurada por peregrinos de diversas regiões da Alemanha (Ringpfostenstuhlmadonna).


A máxima expressão desse culto é grandiosa procissão que se realiza anualmente no mês de maio e à qual concorrem grupos de migrantes portugueses e seus descendentes de várias regiões da Alemanha, uma tradição que já conta com mais de 40 anos.


Trazendo imagens de Nossa Senhora de Fátima, esses portugueses estabelecem relações entre a imagem venerada de Werl e Fátima. Em 2014, as celebrações, as festas e a procissão de velas ao sábado à noite
incluiram concertos de música coral mariana na Basílica de romarias, contando com a presença do bispo D. Manuel da Silva Martins de Setúbal-Lisboa. Essa peregrinação de portugueses a Werl já passou a fazer parte do calendário local, sendo o idioma e expressões culturais portuguesas considerados em missas solenes e atos de devoção. Em situações nas quais se temia o enfraquecimento da tradição ou a não realização das festas, foram os portugueses que contribuiram para que elas se realizassem.


A polêmica referida pelo IBKA partiu de um projeto voltado a incluir ao nome da cidade a cognominação oficial de „cidade de peregrinação mariana“. Essa definição da cidade devia marcar a imagem da cidade, passando a ser mencionada em papéis timbrados oficiais e placas. Como o IBKA salienta, esse intento ficou sem sucesso em parte devido às ações que lembraram o negro passado de queima de pessoas acusadas de feitiçaria na cidade, crimes estreitamente relacionados com a força da religião na localidade e cuja maior expressão é o culto à imagem na capela das peregrinações. Nesses protestos e nas atividades de informação da população se destacou a iniciativa „Livre de Religião no Revier“ (RiR).


A imagem venerada, do século XII, tinha sido objeto de culto e peregrinação em Soest; com a Reformação, foi trazida para Werl, cuja população tinha a necessidade de procurar apoio religioso devido às muitas calamidades por que a cidade passara com epidemias e grande incêndio. Segundo os críticos, nessa implantação do culto em Werl estiveram envolvidos aqueles que mais se salientaram na perseguição a pessoas acusadas de feitiçaria, na tortura e na morte por decapitação ou fogueira de muitas dezenas de homens e mulheres, calculando-se em 70 o número de mulheres queimadas vivas. Esses mortos não teriam sido totalmente reabilitados e dois dos principais iniciadores dos assassinatos ainda continuavam presentes em denominações de ruas.  (Manfred Such, „Historische Tage on Werl - Religionsfrei im Revier in der Marienwallfahrtstadt Werl“, IBKA-Rundbrief Sommer 2014, 13-15).


Essa crítica estende-se também aos religiosos que atuaram na cidade, uma vez que a imagem foi confiada em 1661 aos Capuchinhos que para ali vieram em 1645 e que se empenharam na promoção do seu culto e da peregrinação.



No convento dos Capuchinhos, existente desde 1649, consagrou-se uma primeira igreja conventual e de peregrinação em 1669, capela que precisou ser ampliada na segunda metade do século XVIII (1786-89). No contexto da secularização, os Capuchinhos tiveram que abandonar a cidade, em 1836, passando a responsabilidade pela peregrinação aos Franciscanos, que a assumiram em 1848/49.


Se a fase anterior havia sido inserida no contexto da Contra-Reforma, esta segunda, a Franciscana, precedida pelo trauma da secularização, foi marcada pela „luta cultural“ que tanto influenciou a história político-cultural do Império Alemão fundado em 1871(Kulturkampf).


Nessa „luta“, os Franciscanos foram expulsos da cidade em 1875, retornando porém em 1887. Iniciou-se aqui um periodo de intensas atividades a serviço da restauração litúrgica e da vida religiosa sob o signo anti-modernista do Concílio Vaticano I. Esse entusiasmo restaurador foi acompanhado por atividades de construção, salientando-se aqui o projeto de uma grande igreja em estilo neo-românico que deveria substituir a antiga capela; um novo convento devia substituir o antigo dos Capuchinhos do século XVII.


Foi nessa época de florescimento da presença franciscana em Werl de fins da década de 80 e dos anos 90 do século XIX que se processou a ida de missionários alemães da Provincia da Saxônia da Ordem franciscana ao Brasil.


Atualidade do estudo da ação de Franciscanos alemães na anti-secularização do Brasil


O
interesse atual pelo Franciscanismo - motivado pelo Papa Francisco - merece e necessita por diversos motivos ser considerado nos estudos culturais. (Federbusch, Stefan OFM, „Sein Name ist Programm: Ein Jahr Papst Franziskus“, Franziskaner Mission 1, 2014, 6-7)


Essa exigência é particularmehte premente no caso do Brasil, uma vez que os Franciscanos desempenharam desde o Descobrimento um papel relevante na formação cultural do país.


Após um período de enfraquecimento no século XIX, um ressurgimento da presença franciscana deu-se a partir da revitalização dos conventos com a nova situação criada com a proclamação da República em 1889. Esse revitalização da vida franciscana no Brasil tornou-se possível com vinda de religiosos alemães.


Com isso, essa fase mais recente dos Franciscanos no Brasil diz respeito à história das relações entre a Alemanha e o Brasil. Ela diz respeito também à pesquisa da imigração e da colonização, uma vez que os primeiros Franciscanos alemães já por questão de idioma estabeleceram-se primeiramente em regiões de colonias de imigrantes e da abertura de novas terras coloniais nos Estados do sul do Brasil, dali partindo o processo revitalizador em outras regiões. Tratou-se, assim, de uma primeira grande irradiação cultural partida de novas regiões colonizadas por europeus do sul aos centros antigos de outros Estados.


No estudo de processos culturais, a formação gradativa de rêdes que a partir do sul passaram a abranger a nação merece particular atenção e análise. Através dela deu-se a difusão de correntes do pensamento, prática da vida religiosa e do ensino por religiosos de cultura e socialização alemã de sua época. Estes revitalizaram os conventos, substituiram o antigo franciscanismo remontante à colonização portuguesa do Brasil, assim como expressões e práticas religiosas populares dele decorrentes e mantidas pela tradição.


A ação de Franciscanos alemães no Brasil, particularmente ativos no ensino, na construção de igrejas, na publicação de literatura de cunho edificante e na música, marcou a vida cultural do país sob diversos aspectos segundo o espírito e formas de expressão do Catolicismo alemão de cunho restaurativo do século XIX.


As reformas desencadeadas pelo Concílio Vaticano II trouxeram profundas transformações e a necessidade de revisões de desenvolvimentos à procura de reorientações. Devido aos contextos internacionais, em particular teuto-brasileiros nos quais se inseriu o Franciscanismo na sua segunda fase no Brasil, essa necessidade disse respeito tanto ao Brasil como à Europa. Um marco nos esforços comuns em resituar desenvolvimentos na época pós-conciliar foi encontro internacional realizado em Petrópolis, em 1981. Esse evento seguiu-se ao Símpsio Internacional „Musica Sacra e Cultura Brasileira“, levado a efeito em São Paulo.


Relembrando encontro internacional em Petrópolis em 1981


Pressuposto para reflexões quanto a balanços da situação e a redirecionamentos foi o traçado do panorama histórico da vinda dos Franciscanos alemães e do desenvolvimento de suas atividades nas várias regiões do país. Esses estudos precedentes foram realizados em bibliotecas e centros de instituições missionárias da Europa na década de 70, considerando-se em particular desenvolvimentos fFranciscanosranciscanos.


Como ponto de partida das reflexões que marcaram o encontro internacional em Petrópolis em 1981 e que merecem ser recordadas serviu uma publicação comemorativa para o jubileu de prata da reedificação da Província da Imaculada Conceição do Sul do Brasil escrita por franciscano que tomou parte ativa nesse desenvolvimento e publicada em Werl: o Frei P. Cletus Espey O.F.M. (Festschrift zum Silberjubiläum der Wiedererrichtung der Provinz von der Unbefleckten Empfängnis im Süden Brasiliens 1901-1926, Werl i. Westf. 1929)


Esses estudos merecem ser recordados no ano presente, quando se rememora os 125 anos da proclamação da República e a passagem de um século da eclosão da Primeira Guerra Mundial. As décadas que precederam a Guerra foram marcadas por intensificação nas relações entre a Alemanha e o Brasil, e a vinda de religiosos alemães para a revitalização da vida conventual brasileira após a proclamação da República foi uma de suas expressões e um de seus principais motores.


A eclosão da Guerra - em particular a declaração de guerra do Brasil à Alemanha - representou uma cisão nesse desenvolvimento, o fim de uma fase marcada por intensidade de relações e extraordinária força da influência alemã no Brasil, levando a dificuldades em colonias alemãs no Brasil e na vida dos Franciscanos. Todos os frades e irmãos em idade militar apresentaram-se ao Consul alemão, sendo a sua ida para o combate apenas impedido pela presença de navios de guerra ingleses em mares brasileiros. Grande parte da população e da imprensa simpatizava com os aliados, o que dificultou as atividades dos religiosos alemães.


Os processos já desencadeados tiveram porém o seu prosseguimento. Ainda mais: as comunidades voltadas a si próprias e às próprias condições e forças desenvolveram empreendimentos que levaram a intensificar referenciais no próprio país a partir da criação de centros de formação de noviços com o sentido de fomentar o surgimento de uma nova geração de religiosos, filhos de colonos ou brasileiros.


Essa mais intensa orientação à realidade do país e às próprias forças, acompanhada pelo maior domínio do português dos Franciscanos já atuantes há décadas e as restrições quanto ao uso do alemão durante a Guerra contribuiram à integração dos religiosos no contexto cultural e educativo brasileiro e à efetividade de suas atividades por uma restauração da vida religiosa segundo os intentos que tinham trazido do Catolicismo europeu do século marcado pelo Historismo romântico, pelo Syllabus errorum e pelo Concílío Vaticano I.


O desenvolvimento assim esboçado indica o significado da história franciscana desse período sob a perspectiva dos estudos de processos culturais e a necessidade de sua pesquisa mais aprofundada sob enfoques outros daqueles dos próprios cronistas da Ordem.


Esse desenvolvimento quase que autônomo no país em tempos da Guerra explica também a dinâmica experimentada pelo Franciscanismo no Brasil após 1918. O período posterior à Guerra foi marcado por uma inversão de situações, e em contraste a uma Alemanha vencida e debilitada, as comunidades e os empreendimentos teuto-brasileiros ganharam em significado, também na própria Europa. (Veja)


Considerar esse complexo epocal marcado pelo apogeu de relações entre a Alemanha e o Brasil antecedente à Guerra, as dificuldades no seu decorrer e a dinâmica do teuto-brasileirismo após 1918 surge como necessário na diferenciação renovadora dos estudos Brasil-Alemanha.


Nesse intento, a história franciscana no Brasil desse periodo pode oferecer fundamentais subsídios aos estudos de relações entre o Brasil e a Alemanha. Com os seus empreendimentos e as suas atividades educativas e culturais os Franciscanos no Brasil possibilitaram a continuidade, de correntes de pensamento e de expressões remontantes ao período anterior à hecatombe bélica.


Parece poder perceber-se aqui uma defasagem de desenvolvimentos dos dois lados do oceano, surgindo nesse contexto o Brasil como um baluarte do conservadorismo e da reação, da permanência de intentos, concepções e práticas de um Catolicismo que, na Alemanha, tinha marcado a „luta cultural“.


Por detrás do progresso desenvolvimentista manifestado em igrejas, conventos, escolas, em órgãos de imprensa, nas artes e na música pode-se constatar a continuidade de concepções, intenções e formas de expressão de décadas passadas no período posterior à Guerra e que fizeram do Brasil - e de forma paradoxal justamente as novas regiões abertas à expansão colonial - um dos principais campos de ação de um movimento católico retroativo e mesmo reacionário, uma vez que procurava reagir em combate ao processo secularizador que viam como desencadeado à época do Esclarecimento.


Cumpre, assim, após 100 anos da eclosão da Primeira Guerra, recordar alguns dos aspectos desse Ciênciadesenvolvimento de rêdes a partir de regiões de colonização européia nos Estados do Sul do Brasil, trazendo à consciência os caminhos e as circunstâncias da fixação dos Franciscanos alemães e a auto-dinâmica de um processo conduzido no espírito de um Catolicismo restaurativo da Europa do século XIX.


Forum dos Povos em Werl - o exemplo modelar dos Franciscanos quanto a posições e modos de vida


O „Forum dos Povos“ dos Franciscanos em Werl (Forum der Völker), um dos mais modelares museus de natureza missiológica e etnológica da Alemanha, criado e conduzido com extraordinário empenho e competência,  dedicando ao Brasil um amplo espaço, demonstra a orientação exemplar atual dos Franciscanos na defesa dos indigenas, dos pobres em geral e do meio ambiente no Brasil.


Seria totalmente injusto e incorreto colocar esse admirável trabalho e os seus mártires em luz negativa. Não é esse em absoluto o intuito dessa edição. Procura-se apenas trazer à consciencia a necessidade de diferenciações na consideração de processos históricos que apresentam muitas vezes características paradoxais e exigem mudanças de perspectivas e apreciações.


À procura de Esclarecimento através da Ciência e de um Humanismo que considere os resultados dos conhecimentos alcançados pelo homem deveria ser dada posição de primazia numa „luta cultural“ que parece estar em vigência: mas uma Ciência guiada pelo coração e conduzida segundo virtudes vividas pelos Franciscanos. O que os Franciscanos hoje defendem e vivem quanto à justiça social e às relações do homem perante à natureza e à vida animal não deveria ser tarefa de missionários que agem em nome  da Religião, mas dos estudiosos e pesquisadores, do meio acadêmico que procede em nome da Ciência e do Esclarecimento.


Antonio Alexandre Bispo




Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências: Bispo, A.A.„Vaticano-Alemanha-Brasil:
Religião/Ciência, Missão/Esclarecimento - nova luta cultural? Paradoxais caminhos de processos anti-secularizadores na Europa e no Brasil“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 150/1 (2014:4). http://revista.brasil-europa.eu/150/Processos_anti-secularizadores.html