Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Kommern.Foto A.A.Bispo 1976 ©Arquivo A.B.E..


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Kommern. Fotos A.A.Bispo 1976 ©Arquivo A.B.E..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 152/3 (2014:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N°3141




A pesquisa e o ensino de orientação científica na Escola de Folclore
do Museu de Artes e Técnicas Populares de São Paulo
em interações com o debate científico-cultural e educativo na Alemanha

Museu ao Ar Livre de Kommern (1976)

 

As reflexões e as atividades internacionais concernentes à Educação e os Estudos Culturais dos últimos 40 anos no âmbito das relações euro-brasileiras, em particular entre o Brasil e a Alemanha, decorreram em estreitas interações com pesquisadores e instituições brasileiras.


Entre estas destacou-se a Associação Brasileira de Folclore, com o seu Museu de Artes e Técnicas Populares e a Escola de Folclore. O seu presidente, Rossini Tavares de Lima, pesquisador e professor de Folclore e História da Música e personalidade condutora da pesquisa e do ensino da matéria na tradição paulista na área, acompanhou desde os primeiros anos o movimento de renovação dos estudos e da prática cultural que se desenvolveu em São Paulo a partir de meados dos anos sessenta do século XX.


Essa aproximação foi favorecida pelo fato de Rossini Tavares de Lima ter sido fiscal do Serviço de Fiscalização Artística do Estado de São Paulo do conservatório onde se encontrava sediada a Sociedade Nova Difusão, entidade dedicada à renovação dos estudos e da prática através de um direcionamento da atenção a processos. (Veja)


Nessa função, Rossini Tavares de Lima participou estreitamente das preocupações e das iniciativas que relacionavam os anelos de renovação de enfoques nos estudos com o ensino musical. Foi êle que possibilitou o reconhecimento oficial de cursos que passaram a ser introduzidos, como o de história da música brasileira e de música contemporânea, orientados segundo enfoques dirigidos a processualidades.


Esses elos entre ciência e a educação manter-se-iam nas nos anos que se seguiram, também à época da introdução da Etnomusicologia em cursos de Licenciatura em Educação Musical e Artística do Instituto Musical de São Paulo e que vinha complementar ou mesmo substituir a disciplina Folclore da antiga tradição do Canto Orfeônico.


©Arquivo A.B.E..
O reconhecimento da necessidade de renovação de perspectivas e da prática de pesquisa, de ações culturais e de ensino vinha de encontro à necessidade que se sentia no meio das instituições presididas por Rossini Tavares de Lima de renovação conceitual dos estudos do Folclore e a sua valorização como Ciência.


Apesar dessas preocupações comuns de cunho renovador, diferenciavam-se entre si as posições dos pesquisadores vinculados às instituicões por êle conduzidas e o movimento que preconizava um direcionamento da atenção a processos e não a esferas categorizadas da cultura.


A preocupação dos folcloristas por êle liderados continuou a ser a de repensar critérios de definição do fato folclórico e, por consequência da área de estudos. Essas diferenças teóricas e metodológicas não impediram, porém, que se mantivesse através de anos estreitas relações humanas e intelectuais e a intercâmbios de idéias e informações que marcaram desenvolvimentos e cooperações entre pesquisadores e instituições da Europa e do Brasil.


Surge como oportuno recordar alguns dos temas considerados na correspondência entre Rossini Tavares de Lima e o editor nos anos setenta do século findo, uma vez que oferecem um quadro de fatos e de preocupações da época, assim como das notícias que, chegando do Brasil, foram discutidas na Alemanha, marcando a imagem do país e dos trabalhos dos pesquisadores culturais brasileiros.


Essa informações elucidam também pressupostos que levaram à realização do primeiro encontro internacional de folcloristas e etnomusicólogos europeus em São Paulo, em 1981, assim como eventos na Alemanha, entre êles a Semana da Escola de Música e Forum de Leichlingen, em 1982.


J. Kuckertz, A.A.Bispo 1981.©Arquivo A.B.E..
Painel de Valdomiro de Deus e valores humanos nas relações intelectuais e artísticas


A primeira notícia que chegou à Alemanha em fins de 1974, disse respeito aos valores humanos nas relações entre pesquisadores, artistas e todos aqueles que se interessavam por estudos culturais.


Com essa menção, Rossini Tavares de Lima trazia à lembrança uma situação que seria sempre recordada e experimentada no decorrer das décadas de trabalhos euro-brasileiros: o da ambição e auto-consciência excessiva de protagonistas na área de estudos e das atividades culturais, de desejos de superação e competição, de falta de gratidão de ex-alunos e daqueles que receberam apoios e impulsos em geral.


A sua menção colocava assim no início dos esforços de realização do programa de interações desenvolvido no Brasil um problema que dizia respeito não somente às naturais mudanças de gerações, mas também a mentalidades, a questões de caráter e personalidade. Trazia assim à pauta das discussões uma problemática sócio-cultural no Brasil - e no meio acadêmico e artístico em geral - que prejudica as relações humanas e o trabalho cooperativo em detrimento do progresso dos conhecimentos.


Essa situação lembrada por Rossini Tavares de Lima - e constantemente salientada nos anos seguintes - trazia a consciência a necessidade de contínuas reflexões auto-críticas por parte de pesquisadores e artistas quanto à própria conduta, vaidades e desejos de poder.


Ela sugeria também necessidade de análises de processos históricos sociais e culturais que poderiam elucidar essas deficiências nas relações humanas que prejudicam o desenvolvimento científico.


Ao mesmo tempo, as suas menções sugeriam a diferença existente ou que deveria existir entre pesquisadores e artistas, uma vez que nestes últimos projeções de personalidade, de afirmação em público e desejos de aplausos se tornam mais compreensíveis, enquanto que na ciência, antes a modéstia que se impõe pela consciência do que pouco se sabe e pela reserva necessária a trabalho disciplinado na procura de conhecimentos.


Essa problemática de diferenças de atitudes e procedimentos entre cientistas e artistas sentia-se em particular em áreas marcadas por interações de limites entre a procura de conhecimentos, a pesquisa e a criação artística, como era o caso do Folclore, dos estudos culturais em geral em meios musicais e artísticos, assim como da formação de professores de Educação Musical e Artística.


Explicava-se, assim, não só o empenho dos folcloristas em ver a área considerada como Ciência, mas também os intuitos, na pesquisa musical, que pudesse haver, no Brasil, uma Musicologia integrada na área das Ciências Humanas, não em escolas superiores de música ou departamentos de artes e comunicações de universidades. (Veja)


Essa problemática, segundo Rossini Tavares de Lima, era porém mais ampla, pois dizia respeito a caráter, o que deveria valer também para aqueles que atuavam nas artes, no ensino ou em posições de relêvo. Significativamente, mencionou, já em fins de 1974, como exemplo de procedimento marcado por gratidão e reconhecimento um artista: Valdomiro de Deus.


„Por aqui, vai tudo bem e, neste final de ano, tive duas grandes alegrias. A primeira foi a doação de um painel do Valdomiro de Deus, de 3 metros de comprimento por quase do

is de altura. Trata-se de um óleo lindíssimo, revelando diferentes aspectos do folclore do sertão baiano, de onde procede o Valdomiro. A doação veio com uma dedicatória, que me deixou muito comovido, por recordar que fui eu que lhe deu a mão, há onze anos, quando chegava a São Paulo, pobrezinho como ele só. Diz que o painel deve ficar na ‚casa de meu pai‘, que é a ‚minha casa‘, e você pode imaginar como isso me comoveu, por se tratar de atitude muito rara nos dias de sempre. Especialmente se tratando de artista, que hoje tem renome internacional.“


Na mesma carta, Rossini Tavares de Lima transmitia outros exemplos de situações marcadas por ambições, vaidades e falta de gratidão que, na sua opinião, chegavam a prejudicar julgamentos em questões que deveriam ser tratadas exclusivamente com objetividade científica.


„O Concurso Mário de Andrade deu-nos uma menção honrosa, com trabalho de Maria Hermínia Pellichero sobre „Benzimentos em São Paulo Hoje“, resultado de pesquisa realizada no bairro de Santana. Na minha opinião trata-se de trabalho pioneiro, se bem que o juri não o tenha considerado assim. Observe bem: esse juri tinha dois ex-alunos (....) que hoje, não sei porque, combatem o professor de longe. (....) sumiu daqui e não acredito que, agora, volte a aparecer, porque está se julgando grande demais, como se alguem pudesse se julgar grande neste mundo de ignorância de folclore brasileiro. A briga de (...) é velha e uma razão incrível: a realização de exposições-feiras de folclore pela Comissão de Folclore, do Conselho Estaual de Cultura, quando eu era presidente da Comissão. Antes, a família (...) organizava essas feiras e, não sei não, deveria ganhar algum dineiro. Tanto assim que ele não aceitou o meu convite de participar da exposição-feira, (...) Estou lhe contando todas essas coisas, para você ver o que é o mundo. Enfim, deixe prá lá.“


Cooperações interamericanas - doação de arte e artesanato do México


Nessa mesma carta, Rossini Tavares de Lima mencionava um ato de instituições oficiais do México que indicavam não apenas intenções de representação cultural do país, mas sim também de boa vontade e mesmo desejos de cooperações mais estreitas entre pesquisadores e instituições.


Os objetos de uma exposição que o México realizara em São Paulo em cooperação com instituições de relêvo do Estado, haviam sido doados ao Museu de Folclore, o que demonstrava que o grau de reconhecimento da instituição como centro especializado em estudos culturais. A exposição, ainda não correspondendo à orientação e às concepções do Museu, contribuía assim a seu reconhecimento, mas também à sua internacionalização no contexto latinoamericano, uma vez que passava a possuir significativa coleção de materiais do México, possibilitando comparações e a consideração de diferenças quanto a aproximações e realizações no continente.


„A segunda alegria veio através do México, sim, do México. O Govêrno mexicano trouxe uma exposição de arte e artesanato para o Brasil e, depois de apresentá-la ao público de Brasília e de São Paulo (na Pinacoteca do Estado), teve interesse que ela permanecesse por aqui. Não encontrando nenhuma organização governamental, que pudesse recebê-la, resolveu doá-la ao nosso Museu que, embora não se tratasse de exposição dentro de nosso conceito de folclore, a receberá dentro de alguns dias. Enfim, é uma prova do prestígio que, felizmente, já temos no Brasil, apesar dos pesares. Pesares de malentendidos e de frustrações, que por vezes chegam a nos encher.“


Criação com base em resultados de pesquisas - concurso nacional de composições


A problemática das relações entre ciência e artes foi tematizada em 1974 também quanto à consideração de resultados de pesquisas na criação artística, em particular no âmbito do movimento coral no Brasil. Principal motivo dessas considerações foi a realização de um concurso nacional de composições corais sobre temas folclóricos promovido pelo Madrigal Renascentista de Belo Horizonte.


Na Alemanha, essas informações vindas do principal centro de estudos da área no Brasil adquiriram particular relevância, uma vez que diziam respeito a preocupações centrais do programa de interações que se iniciava, tanto no concernente a concepções teóricas, como das funções do canto coral. Esse empreendimento, que sugeria vínculos entre interesse pela música antiga - como o próprio nome do madrigal demonstrava - e a  música coral de características nacionais através do emprêgo de elementos do folclore surgia como estranho no contexto da Alemanha, onde tal intento seria considerado como antiquado ou mesmo relito de nacionalismo do passado.


A carta de Rossini Tavares de Lima transmitia informações a respeito desse concurso, assim como de nomes de compositores que nele participaram e que se encontravam, assim, próximos às concepções que fundamentavam o projeto.


„Acabo de receber o resultado de um Concurso Nacional de Composições e Arranjos Corais sobre temas folclóricos brasileiros, realizado pelo Madrigal Renascentista de Belo Horizonte. Houve cento e quarenta e seis inscritos e quem ganhou foi Mario Ficarelli, de Piedade, SP, que eu não conheço. O segundo lugar foi de Lindembergue Cardoso, de Salvador, o terceiro do Silvio Luciano de Campos Filho, SP, o quarto de Antonio Garboggini, SP, o quinto de Ernst Widmer, de Salvador. Entre os meus conhecidos, que se inscreveram, lembro a Cinira Novaes Braga, Paulo Jatobá, Sergio Vasconcelos Corrêa, Eduardo Escalante. No juri estava o Guerra Peixe, Camargo Guarnieri e mais gente de Minas Gerais.


Relações científicas com a Alemanha e a visão dos estudos de folclore como ciência


Já em carta de 29 de abril de 1975, Rossini Tavares de Lima expressava a sua esperança de que o programa de interações em desenvolvimento da Alemanha pudesse contribuir ao levantamento dos estudos de folclore a disciplina científica ou à intensificação da natureza científica dos respectivos estudos.


Para isso, o conhecimento do idioma alemão surgia como imprescindível para a consideração da literatura especializada e para o intercâmbio de idéias e experiências entre pesquisadores de ambos os países. O desconhecimento do idioma impedia já há muito a continuidade da consideração dos trabalhos em alemão que tinha sido possível no passado, à época de Mário de Andrade, mentor de Rossini Tavares de Lima.


„Eu sempre desejei aprender alemão, para poder estudar na biblioteca de Mário de Andrade. Mas apesar do estímulo do mestre, acabei não estudando ou, melhor dizendo, não aprendendo e não estudando.“


As informações transmitidas à Alemanha, nessa carta, apresentavam um retrato de progresso quanto aos esforços de condução científica da respectiva área de estudos culturais, marcada por interdisciplinaridade, e do reconhecimento da Escola de Folclore, ainda que livre, nos meios universitários e de escolas superiores de música, aqui em particular em cursos de Licenciatura em Educação Musical e Artística.


Ao mesmo tempo Rossini Tavares de Lima salientava o problema da falta de conhecimentos específicos de professores de música do ensino secundário, fato explicável sobretudo pelos problemas colocados por concepções de polivalência na formação de professores e na prática de ensino.


„Por aqui, as coisas vão mais esperançosas este ano. Nossa Escola está com pouco mais de 100 alunos e entre estes um professor de Comunicação da USP e um professor da Faculdade Paulista de Medicina. Poucos músicos, no geral educadores musicais que não sabem quase nada de música, e muitos professores das mais diferentes matérias.“


Para o desenvolvimento da área de estudos como ciência e para o reconhecimento maior do Museu e de sua Escola como instituições científicas de abrangência nacional, tornava-se necessário desenvolver pesquisas de campo em regiões até então pouco consideradas no Brasil, levantando dados como documentação de estudos e constatando tendências e transformações.


Nesse sentido, destacava-se sobretudo Julieta de Andrade, que então se empenhava junto a instituições governamentais para a obtenção de recursos que possibilitassem viagens de estudos e pesquisas. Ao mesmo tempo, os trabalhos de pesquisas desenvolvidos no âmbito da instituição deveriam ser publicados, dando-se assim início a esforços que se intensificariam nos anos seguintes e que levaram à publicação de série de relatos de pesquisas.


„Também há esperança no atual governo de São Paulo, com o qual já tivemos entendimento através da professora Julieta. Entre outras coisas, estamos interessados em verbas para pesquisa em Mato Grosso, sertão da Bahia, Marajó e norte de Goiás. Parece ou tudo indica que as verbas sairão. Também queremos publicar, na forma de pequenos estudos, sínteses das pesquisas de nossos ex-alunos. Essa publicação já iniciamos, mimeografando sínteses do trabalho da Julieta em Cuiabania, Haydée Nascimento em Apiaí (cerâmica) e, agora, a do trabalho do Marcel Thieblot em Rondônia.“


Superação da concepção de estudos regionais, internacionalização e sociologia


O empenho em desenvolver a instituição como centro de pesquisas científicas manifestava-se na abertura a transformações conceituais e correspondentes mudanças na apresentação dos bens do Museu, o que implicava em novas formas de pedagogia museológica. Essas informações foram consideradas na Alemanha, onde, paradoxalmente, mantinha-se e até mesmo constatava-se uma intensificação de significado dos assim-chamados estudos regionais, com as consequências questionáveis que já se reconheciam no Brasil.


„Na sua carta, você faz perguntas sobre o Museu e vão aqui as respostas: por enquanto, não foi pintado, mas há boas perspectivas de tudo melhorar com o novo Govêrno paulista: pretendo, agora, executar o nosso plano relativo a acabar, definitivamente, com as exposições regionais do Museu; vamos apresentá-lo, ao público, na classificação dos fenômenos folclóricos; desejamos também, em função da doação da exposição de arte e artesanato (mais de aproveitamento de folclore do que de folclore) do México, que acabamos de receber, dar-lhe uma amplitude internacional. Aqui, em cima, na entrada da biblioteca, já está tudo transformado, vendo-se apenas peças estrangeiras.“


Tanto relativamente ao desenvolvimento científico da instituição e da área, como a dos anelos de internacionalização da pesquisa, havia a necessidade de uma ampliação da biblioteca e sua organização segundo métodos adequados. Também nesse sentido mostrava-se promissora a interação com a Alemanha, país que se distinguia pela qualidade de suas bibliotecas, procurando-se aqui o intercâmbio não apenas de publicações, mas também de concepções e métodos.


A carta de Rossini Tavares de Lima surpreendia, porém, como testemunho de uma aproximação da área de estudos àquela da Sociologia, em superação de tensões que haviam predominado no passado, ainda que se mantivessem fundamentais diferenças quanto a enfoques e concepções.


„Por falar em biblioteca, é bom que você saiba que ela se aprimora cada dia. Na direção da professora Magaly França Villaça, nossa ex-aluna, a biblioteca vai se estruturando na melhor técnica da biblioteconomia moderna. Quanto à internacionalização da Escola, é bom lembrar que este ano temos duas professoras norteamericanas, que estão aproveitando muito. (...) Mas estamos é estabelecendo um intercâmbio com o Curso de Posgraduação da Escola de Sociologia e Política, onde a Julieta está fazendo o mestrado e derrubando todo mundo com seu enfoque de folclore, aprendido aqui. Não pensamos, porém, em oficialização; nós continuaremos como escola livre, em nível de especialização, que ganha prestígio cada dia que passa. (...) O seu filho, Luís Fernando, é nosso atual secretário da Escola, além de meu secretário particular. Um grande menino nos seus dezesseis anos. (...)“


Simpósio de Pesquisa de Folclore e criticas quanto a concepções e práticas


O grande empreendimento de 1976 no âmbito desses esforços de intensificação do caráter científico da pesquisa cultural da Associação Brasileira de Folclore e de afirmação da Escola Livre como principal centro de estudos na área no Brasil foi o Simpósio de Pesquisa de Folclore, sobre o qual Rossini Tavares de Lima transmitiu à Alemanha pormenorizadas informações em carta de 15 de outubro.


Esse evento foi possibilitado pelo fato de atuarem na Comissão de Folclore do Govêrno do Estado de São Paulo pesquisadores da instituição. Nesse evento, foram apresentados, entre outros, resultados de trabalhos que haviam sido desenvolvidos por Julieta de Andrade no Mato Grosso.


„Demorei-me um pouco para lhe escrever, porque desejava lhe dar notícia de nosso Simpósio Pesquisa de Folclore. Não sei se havia lhe contado, mas a nova Comissão de Folclore do Govêrno tem entre seus membros a nossa Julieta, o Wilson e o Rabaçal e ele houve por bem patrocinar um simpósio para este mês. Encerrou-se o mesmo na última semana e penso que foi muito proveitoso para nós, porque se conclui, em definitivo, que só se estuda e pesquisa folclore, presentemente, em nosso país, na Escola de Folclore. A professora Julieta de Andrade fez um relatório de suas pesquisas em Mato Grosso, que foi o ponto mais alto do Simpósio.“


O simpósio ofereceu também uma plataforma para a manifestação da exigência de que os estudos na área tivessem uma orientação científica, superando-se instrumentalizações de fenômenos e expressões culturais que deveriam ser antes de mais nada alvo de análises.


Para tais estudos, a existência de fontes e dados colhidos em pesquisas de campo era fundamental pressuposto. Ao mesmo tempo, porém, mantinha-se a concepção de uma esfera própria da cultura a ser estudada - o que não correspondia às diretrizes do programa de interação em desenvolvimento e que dirigia a atenção a processos - salientando Rossini Tavares de Lima que não concordava com um tratamento indiferenciado do folclore e de seu estudo sob os termos de cultura popular.


Do meu lado, fiz as críticas costumeiras, mostrando que as nossas universidades não estão fazendo nada em folclore. O Brasil vive ainda em função do folclore-espetáculo, folclore-aproveitamento, folclore-turismo, folclore-exposição, folclore-festival, isto é, de modo geral, folclore para se ver e ouvir. Combati o uso das expressões cultura popular, música popular e arte popular, que encobrem todas as picaretagens existentes, em detrimento do estudo e da pesquisa de folclore.“


„Na base de nossa ocumentação, estamos defendendo uma unidade cultural espontânea em muitos aspectos de nosso folclore. Já não acreditamos em regiões geográficas e muito menos em áreas culturais. Veja só a área da roupa de couro: Norte de Minas ao Piauí. Enfim, estas coisas todas nós dissemos no Simpósio, mostrando inclusive que se pode fazer um trabalho serie em uma Escola Livre. É claro, dentro de uma orientação científica, sem se preocupar com os esquemas teóricos pré-estabelecidos. (...)


Pesquisas em andamento e revisões de interpretações em interações internacionais


Nesse evento, pôde-se demonstrar o valioso patrimônio documental já criado e conservado na instituição e o dinamismo e a intensidade de trabalhos de pesquisas que então se desenvolviam. Essa documentação permitia comparações com expressões de outros países e continentes, levando mesmo a revisões de interpretações de fatos e fenômenos, em particular de suas origens. Rossini Tavares de Lima mencionava aqui - como em outras cartas - a visita de Gerhard Kubik ao Brasil e à instituição, pesquisador de renome nos meios etnomusicológicos voltados à África na Europa, em particular nos meios de língua alemã.


Rossini Tavares de Lima salientou aqui o problema representado à pesquisa pela capoeira, que exigia de muitos lados fundamentais reflexões quanto a perspectivas e convicções aceitas sem a necessária crítica diferenciadora, um problema que levou a constantes reanálises no decorrer das interações entre o Brasil e a Alemanha.


A crítica que de forma indireta já aqui se percebia a Gerhard Kubik quanto a suas convicções relativamente a expressões tradicionais do Brasil teriam a sua validade confirmada em interpretações desse etnomusicólogo de Congos e Congadas no Brasil e que seriam um dos principais focos de atenção do Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ realizado em São Paulo, em 1981. A consideração crítica de posições de Gerhard Kubik chamavam a atenção para problemas mais abrangentes na Etnomusicologia e na sua prática em rêdes acadêmicas, derivados em parte da própria concepção da disciplina no contexto da Musicologia e da formação de etnomusicólogos.


„Dei alguns exemplos de pesquisas recentes da Escola, no domínio da Recomenda de Almas e de uma linda cantoria religiosa, chamada Martírio, que existe em Ilhabela, e da qual temos informações de sua existência, sempre com outra estrutura e expressão musical, na Beira Baixa, em Portugal. Lembrei a estranheza de Gerhard Kubik - etnomusicologista da Universidade de Viena, que pesquisa Angola e Congo - quando lhe informaram que nossa capoeira era de Angola, simplesmente porque lá não existe capoeira e nunca existiu. É claro, trata-se de um jogo de aculturação bantu, revelada no berimbau. A Escola também acaba de receber informações muito boas de nosso berimbau de arco, sem cabaça; a caixa de ressonância é a boca do instrumentista. Aliás, o próprio berimbau já está incluído no acervo do Museu, Lembra-se da marimba do litoral norte? Pois já temos também a marimba.“


„Gostei de saber que está em contato com a Inga (Weidemann -Veja), que é realmente uma criatura maravilhosa. Conte-lhe, quando a encontrar, que este ano o aluno estrangeiro de maior destaque foi um filho de Jerusalem. Aliás, ele está um bólido e tenho a impressão que levará para Israel um pouco da Escola de Folclore. (...)“


Estudos da recepção musical em diferentes níveis - de objetos de estudo e de concepções


Uma intensificação desse intercâmbio de notícias entre a Europa e o Brasil deu-se no âmbito do projeto dirigido a estudos da recepção cultural, em particular musical, e que passou a estar no centro das atenções nos estudos de processos culturais em geral, na musicologia em particular e na Educação Musical em fins da década de 70. A atualidade de questões relativas à história da recepção vinha de encontro ao direcionamento a processos preconizado pelo programa de interações remontante ao Brasil, exigia, porém, diferenciações quanto a compreensões que se constatavam no âmbito da pesquisa e do ensino na Alemanha.


Para trazer a questão à pauta do debate em relações internacionais com o Brasil, planejou-se a publicação de uma coletânea de autores brasileiros que deveria servir de base de discussões do Simpósio Internacional que se realizaria em São Paulo, em 1981. (Veja)


Para essa obra coletiva, foram convidados os pesquisadores do Museu e a Escola de Folclore da Associação Brasileira de Folclore para que expussessem, em estudos de caso, as posições quanto a conceitos e orientações da instituição para que fossem discutidas em encontro internacional a ser realizado na sua própria sede por ocasião do evento.


Após longa troca de correspondência, Rossini Tavares de Lima mencionou, em carta de 23 de fevereiro de 1980, a pesquisadores que sugeria fossem também convidados para a participação no projeto e no planejado simpósio, garantindo a sua participação e a de Julieta de Andrade.


„Não sei mais o que fazer. Recebi sua carta de outubro e lhe remiti os livros „A Ciência o Folclore“, „Escola de Folclore, Brasil“ (este da Julieta e meu), além de uma longa carta, em que relacionei endereços de etnomusicologistas latino-americanos e norte-americanos e do nosso Guerra Peixe. (...)  que é o único brasileiro que, em termos musicais, pode dizer alguma coisa certa sobre o nosso assunto. Os músicos brasileiros continuam a ignorar o folclore. Aqui na Escola é muito dificil aparecer um músico sério, se bem que nossa documentação de música folclórica aumente ano a ano. Possuimos lindíssimas rezas, ladainhas, folias de diversos santos, encomendação de almas etc.etc., nos termos de música religiosa. Por isso, eu e Julieta aceitamos o seu convite para escrever os artigos.“


Formação de pesquisadores em São Paulo no início da década de 80


Nesses anos de cooperações, de projetos e eventos internacionais no âmbito dos estudos culturais, tornou-se necessário comparar estruturas e conteúdos de cursos de formação de pesquisadores tanto na Europa e no Brasil, o que levou à visita de institutos de Etnografia, Folclore e Etnologia em vários países - de Volkskunde e Völkerkunde na esfera da língua alemã e à consideração do tratamento de questões relativas a essas áreas na Musicologia.


Nos diálogos com pesquisadores dessas instituições, consideravam-se currículos e conteúdos de cursos realizados no Brasil.


Como exemplo das informações que se recebiam do Brasil pode-se citar carta de Rossini Tavares de Lima do início de 1980, onde apresentava-se o programa seguido pela Escola de Folclore daque ano. Toda a programação partia do conceito de „cultura espontânea“ como objeto o folclore, passando-se à metodologia (questionário, entrevista, formulário).  Seguiam-se, em alternância de aulas e comunicação de pesquisas


Março: Folclore do dia-a-dia no relatório de alunos da instituição. Comunicação de pesquisas em relatórios da Escola; Cultura e aculturação na formação do folclore;


Abril: Complexos culturais espontâneos estudados pela Escola (relatora Julieta de Andrade); Linguagem, formas; linguagem de gestos; Comunicação - Comunicação de pesquisa - crítica a txtos escritos e falados que se referem a folclore (relatora Maria do Rosário de Souza Tavares de Lima);


Maio: Usos e costumes, com destaque para ritos de passagem; Superstições e crendices, características de todos os homens; Medicina do homem e dos animais; Comunicação de pesquisa (a Cavalhada na forma de cortejo, de jogo de argolinhas e de luta de mouros e cristãos - relatora Niomar de Souza Pereira);

Junho: Literatura - as formas de prosa folclória; Literatura - as formas de poesia folclórica; A casa: técnica de construção, acessórios e utensílios; Comunicação de pesquisa (Os carvoeiros e o carvão de lenha - relator Jules Thièblot);


Agosto: Indumentária: as vestes de trabalho, de religião e do teatro; Comidas e bebidas do dia-a-dia e de festas; O trabalho, com menção especial à coleta e ativiades extrativas; Comunicação de pesquisa (Aproveitamento ou projeção de folclore - relator Clovis Garcia);


Setembro: Caça e Pesca, com atenção para armadilhas; Agricultura de jardim, de roça e de pomar; Pecuária (boi, cavalo, jumento, bode, ovelha, porco, búfalo) e avicultura (galinhas, patos, marrecos, gansos, galinhas d‘Angola, passarinhos); Comunicação de pesquisa (Conclusão de pesquisa em Porto Alegre, município de Luciara, Mato Grosso do Norte - relatora Fernanda Macruz; Transporte terrestre, fluvial e marítimo;


Outubro: Religião - o folclore nas religiões (catolicismo folclórico) e religiões folclóricas de conteúdo mediúnico; Festas cíclicas e as festas religiosas fixas e móveis; Comunicação de pesquisa (A indumentária nas Congaas do Estado de São Paulo - relatora Suely Cabrerizo Diem; As manifestações do teatro folclórico no Brasil;


Novembro: As danças folclóricas brasileiras; Arte, artesanato, máquinas e ferramentas; Comunicação de pesquisa (conclusão da pesquisa em Santa Isabel, SP - relatora Zuleika de Paula; Música e instrumentos musicais.


Encontro de pesquisadores brasileiros e alemães - Folclore e Etnomusicologia


Com base nessas informações, discutidas na Alemanha, preparou-se a realização de encontro internacional de pesquisadores culturais de orientação empírica no Museu de Folclore de São Paulo, em 1981.


Uma das principais questões tratadas disse respeito a diferenças quanto a concepções, a procedimentos de pesquisas e focos de atenção na Europa e no Brasil. Tratou-se, em particular de questões relativas à pesquisa musical, devido aos graves problemas que se constatavam na Alemanha relativamente à área de Etnomusicologia referente à América Latina, em particular ao Brasil.


Os debates, levados a efeito na sala de conferências ao lado da biblioteca do Museu de Folclore, incluiram conferências de Rossini Tavares de Lima e do Prof. Dr. Josef Kuckertz, diretor do Instituto de Musicologia Comparada da Universidade Livre de Berlim.


O conceito de „cultura espontânea“ dos folcloristas brasileiros e mesmo o de Folclore foram discutidos, salientando o editor os problemas que via nessa conceituação e a necessidade a orientação a processos - não a esferas categorizadas da cultura - que vinha sendo defendida no âmbito do programa de interações para a renovação de enfoques disciplinares.


Devido ao complexo temático tratado no Simpósio Internacional em cujo âmbito procedia-se ao encontro - assim como à fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia - deu-se particular atenção no encontro à consideração crítica do conceito de „inculturação“.


Não apenas tratou-se da distinção desse termo por teólogos relativamente a conceitos de acomodação, adaptação e outros, mas também da inconsistência teórica desse conceito, muitas vezes confundido com expressões aparentemente afins de aculturação e enculturação.


Lembrou-se que o conceito de aculturação, utilizado já em fins da década de sessenta em meios relacionados com a música sacra no Brasil, era empregado de forma singular em publicações e aulas da Escola de Folclore, não correspondente àquela da pesquisa européia, como tinha sido já considerado em colóquios e seminários universitários na Alemanha dirigidos pelo Prof. Dr. Robert Günther.


A discussão crítica do conceito de „inculturação“ nesse encontro trouxe à consciência as dimensões mais amplas da problemática. Essas residiam na própria concepção de cultura como „terra“ ou humus no qual se deveria implantar a fé - entendendo-se aqui que alguns teólogos empregassem o termo incarnação - o que correspondia a imagens e conceituação já há muito questionadas e que experimentavam agora uma revitalização devido a seu uso inadequado na literatura religiosa.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A..„ A pesquisa e o ensino de orientação científica na Escola de Folclore do Museu de Artes e Técnicas Populares de São Paulo em interações com o debate científico-cultural e educativo na Alemanha“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 152/ (2014:6). http://revista.brasil-europa.eu/152/Folclore-Alemanha-Brasil.html