Colonialismo britânico e pós-colonialismo
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 155

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 155/15 (2015:3)



Colonialismo britânico e pós-colonialismo no Índico

Política anti-escravagista inglesa e mudanças culturais: a creolização de africanos
O bobre no Índico e o berimbau no Brasil


Estudos promovidos pela A.B.E. nas Seychelles e em Maurício
pelos 450 anos do Rio de Janeiro e 350 anos da chegada dos franceses nas Mascarenhas


Imigração, Estudos Coloniais e Colonialismo 2015



 
Seychelles. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Seychelles. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
Se a atenção dos estudos de processos coloniais e de imigração em relações globais concentra-se sobretudo na presença francesa na cultura do Índico, principalmente no corrente ano, marcado pelas comemorações, na França, dos 350 anos da chegada dos franceses na antiga Île de France, atual Maurício (Veja), não se pode deixar de considerar a influência britânica nessas ilhas.

A Inglaterra foi a potência européia que determinou a história colonial dos países hoje independentes das ilhas Maurício e Seychelles desde o início do século XIX e os traços de sua presença são visíveis nas suas capitais, no inglês como língua oficial, no culto anglicano, no mundo dos esportes, da cultura e das artes.

Devido às relativamente recentes emancipações políticas, os anelos pós-coloniais de valorizações de identidades e imagens próprias dos países agora independentes partem compreensivelmente de uma superação da situação colonial do passado mais recente, e esse foi o inglês. Nesse intento, recorre-se em geral às tradições, modos de vida e expressões remontantes a um passado anterior, francês, mantidas em meio popular, que é, sobretudo em Maurício, em geral francofone.

Seychelles. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
Esse fato se manifesta no empenho pela valorização do criolo como língua derivada do francês e nas expressões culturais associadas com o criolo, ou seja, remontante aos europeus dos primeiros tempos já nascidos nas colonias e seus descendentes, brancos ou resultados de miscigenações. (Veja)

Esse fato vem de encontro ao interesse da França, o que se evidencia no empenho que La Réunion como departamento francês do ultramar demonstra relativamente aos estudos criolos nas Seychelles.

Tem-se, assim, uma complexa situação nos estudos coloniais, uma vez que se trata não apenas de duas fases históricas determinadas pela mudança de metrópoles, mas sim também de continuidades de passado mais remoto que passa a ser revalorizado em decorrência de impulsos de emancipação.

A análise desse complexo interações culturais na secular concorrência de interesses comerciais e de poder colonial da França e da Grã-Bretanha nos casos exemplares da Ile de France/Maurício e das Seychelles pode servir para o esclarecimento de desenvolvimentos em dimensões globais, também daqueles nos quais o Brasil se inseriu.

Traços do passado britânico na fisionomia urbana das cidades do Índico

Seychelles. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
O passado colonial britânico manifesta-se da sua forma mais evidente na presença nos monumentos à rainha Vitória tanto em Port Louis, capital de Maurício, como - ainda que em posição obscurecida - na capital das Seychelles, que significativamente traz o nome da rainha inglesa e Imperatriz da Índia: Port Victoria.

O centro desta cidade, no cruzamento de suas principais artérias, é marcada por uma torre de relógio inaugurada em 1903 e que atualiza o Big Ben de Londres na distante ilha do Índico. Com os monumentos à rainha Vitória nas capitais de Maurício e das Seychelles, esses países inserem-se no rol das muitas cidades do mundo marcado pelos ingleses que possuem similares estátuas da Imperatriz, podendo-se salientar as australianas, como Sydney, ou do Canadá, como Vitoria, capital da Columbia Britânica.

O relógio em via pública ou em torres de estações, foi em muitas cidades do domínio britânico importante ponto de encontro e referencial, marcando fisionomias urbanas. Esse significado foi não apenas visual, mas também sonoro, estabelecendo-se com os seus toques elos de sintonia com o Big Ben da Casa do Parlamento em Londres. A atenção que os relógios e seus toques desperta fizeram com que alguns deles se tornassem centros de interesse para visitantes, como é o caso do relógio de Vancouver com os seus silvos a vapor.

Compreende-se que em país que tornou-se recentemente independente e mesmo se separou da Commonwealth, como as Seychelles, procure-se substituir a função tão marcante do Big Ben através da ereção de outros monumentos de função referencial e significado emblemático. Essas obras de arte, que marcam hoje a fisionomia moderna de Vitória, podem ser consideradas como novos sinais que estabelecem um diálogo com os antigos, no caso sobretudo com o Big Ben.

Seychelles. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Bens culturais do passado colonial britânico nos estudos de processos culturais

A consideração, nos estudos culturais, da presença britânica nas ilhas diferencia-se daquela dirigida antes à presença francesa. Se os estudos de tradições populares ou folclore defrontam-se com expressões que remontam ao período colonial mais remoto francês, se aqueles da literatura e das artes do século XIX voltam-se sobretudo a intelectuais e artistas francofones que continuaram a se orientar segundo Paris, os estudos índico-ingleses dirigem a atenção a outros aspectos, em particular à vida social de círculos da administração colonial, aos transportes e à técnica, à música nas igrejas e nas missões anglicanas em sociedade de formação católica, às bandas militares, ao ensino em língua inglesa. Outras são também as fontes de estudos, destacando-se aqui os relatos de visitantes ingleses e jornais.

A pesquisa da história cultural sob o domínio inglês vem sendo desenvolvida com base em fontes várias, jornais, fotografias e informações orais, destacando-se o livro de divulgação Réveil Seychellois/Life in Seychelles 1770-1903, de Denise Johnstone, publicado em 2009 (ISBN 978-99931-803-5-7).

Como lembrado nessa obra, uma das principais datas na história cultural das Seychelles sob o domínio britânico foi o jubileu de ouro da rainha Vitoria, em 1887, quando a capital foi iluminada com lanternas chinesas, ouvindo-se bandas de música e servindo-se café e doces a dignatários. O „God Save the Queen“ era considerado como hino nacional pelos criolos. Do ponto de vista dos esportes, difundiu-se o futebol e o cricket, também praticados nas escolas.

Como cidades portuárias, a visita de marinheiros ingleses foi importante fator para os hotéis e outros estabelecimentos, determinando tipos de consumo de bebidas e alimentos, jogos como o bilhar, recreações de dança e música em correspondência ás predileções inglesas. Os times de futebol local frequentemente jogavam com tripulantes de navios que ali aportavam. A vinda de navios também dava ensejo a convites para bailes na casa do govêrno colonial. Aliás, a sociedade vitoriana dessas ilhas caracterizava-se pela frequência de jantares e encontros dançantes.

Como muitas outros portos, cidades como Port Victoria experimentaram um incremento da prostituição e estabelecimentos de via mundana, causando tensões com uma sociedade que se orientava segundo a severidade de costumes vitorianos.

Consequências étnico-culturais do combate inglês ao tráfico de escravos africanos

A ação britânica de combate ao tráfico de escravos e à escravidão merece, pelas suas consequências étnicas e sociais a maior atenção nos estudos voltados a processos culturais nas ilhas do Índico. Esse empenho anti-escravagista trouxe profundas transformações na constituição populacional e na vida de sociedades remontantes a colonizações francesas.

Sobretudo no caso de Maurício, a necessidade de mão-de-obra criada pela abolição da escravidão levou à vinda de trabalhadores das possessões inglesas da Índia, dando início a uma „hinduização do Índico“ que se prolonga até o presente e mesmo se intensifica. (Veja)

A grande porcentagem de indianos e a existência de templos hindús em Maurício e também nas Seychelles são resultado dessa política anti-escravagista inglesa e determinadas pela configuração do Império Britânico. A rêde das possessões britânicas na Índia e no Extremo Oriente condicionou a origem dos imigrantes e as referências culturais. O estudo cultural dessas populações indianas, chinesas ou de outras regiões nas ilhas do Índico não pode ser desenvolvido apenas sob a perspectiva de extensões culturais, mas deve considerar as suas inserções em processos desencadeados pela política colonial e imperial britânica.

Na sua obra, Denise Johnstone considera o declínio da agricultura com a abolição da escravidão e consequente recessão econômica nas suas consequências na vida de Seychelles, obrigando os seus habitantes a procurar novos caminhos para o alcance da prosperidade. Foi justamente essa época crítica que foi marcada por uma intensificação religiosa e crescente atividade missionária em concorrência entre católicos e anglicanos.

A „New Population“ africana nas Seychelles e transformações culturais

A ação anti-escravagista inglesa teve também como consequência paradoxal a vinda de africanos resgatados de navios negreiros árabes para as ilhas. No caso de Seychelles, essa vinda de africanos representou uma „new population“, um desenvolvimento que marcou transformações na configuração populacional da colonia entre 1862 e 1879.

Esses africanos - em grande parte crianças e jovens levadas a mercados árabes entre outros por comerciantes de Zanzibar - passaram a ser empregados em propriedades agrícolas, ainda que livres e com direitos. Como Denise Johnstone menciona, esses recém-chegados não apenas causaram modificações na vida da colonia, que se viu confrontada com exigências de assistência, emprêgo e formação, como também trouxeram expressões culturais - danças, cantos e instrumentos até então desconhecidos. Tem-se um exemplo da introdução de danças com enrêdo encenado africanas pelos escravos libertos do viajante Arthur Gordon, que visitou em 1871 as plantações na Baie Lazare, onde grande número de ex-escravos foram empregados, como citado por Denise Johnstone:

„It was an opera rather than a dance, for the whole hunt was sung and acted as well as danced“ (...) „A fire was lighted in the middle of a shed in front of which the dancers were assembled. Three little boys crouched and squatted near the blaze, beating biscuit tins for tom-toms with short sticks; the women stood on one side, the men on the other. They sang incessantly, dancing slightly. Then one man danced out into the dark returning in great excitement to announce that he had seen the elephant‘s foot-marks. Then another went out alone and came back as if frightened; two then go out together, one alone again and finally two pairs, who return having slain the elephant, and there is much jubilation.“ (op.cit. 89)

Encenação de rapto de menino e dança representativa de combates

Uma outra dança então registrada pelo mesmo observador em 1872 foi por êle interpretada no sentido de uma encenação do ato de escravização dos africanos que ali trabalhavam. Tratar-se-ia, porém, antes de dança de sentidos simbólicos com o rapto de menino e representação de lutas como conhecida de vários outros contextos, como estudados em Nova Caledônia (Veja) e em Fidji (Veja) nos seus paralelos com expressões brasileiras de similar enrêdo.

They divided into two parties, one of which went out into the dark under the trees whilst the other remained sitting and singing round the fire in the camp“ (..) „Presently two ot the party who had gone out, stole round in the dark and suddenly appearing by the fire ran off with a boy as a prisoner. There was a great hubbub, and the camp party rushed out and there was all the appearance of a battle.“ (loc.cit.)

O „bobre“ nas Mascarenhas e o berimbau brasileiro

De particular interesse é o primeiro registro do berimbau que se conhece das Seychelles. Remonta a Nicolas Pike, consul dos Estados Unidos em Mauritius quando de sua visita a Port Victoria, em 1871. Ao visitar uma cabana de um pescador que havia servido num baleeiro americano, foi bem recebido e, para a sua recreação tocou-se o instrumento.

„The man showed me a musical instrument called, as well as I could make out, a ‚bobre‘ (...) „It is just the form of a bow and about its size. The string is played with the back of the fingers of the left hand and struck with the right by a little stick about a foot long, on which is tied at the end a bundle of small pebbles that rattle as ist touches the string. He played some merry tune on it and all the children danced to it, even the mother figuring in at times.“ (op.cit. 81)

O termo bobre aqui citado é ainda hoje empregado no Índico, sendo conhecido do Madagáscar, de Maurício e também de pesquisadores e músicos de La Réunion. Pode ser observado no instrumentário da sega.

O registro do século XIX das Seychelles adquire porém significado por indicar uma relação do emprêgo do instrumento para fins de recreação, do brincar, sobretudo de crianças, e o seu uso por gente do mar, marinheiros e pescadores.

Aspectos do processo de integração de africanos e de adoção de identidade criola

Os dados da literatura de viagem coletados por Denise Johnstone revelam diferentes reações por parte de africanos resgatados pelos ingleses e trazidos para as Seychelles. Há registros da saudade que muitos sentiam e do desejo de retornar a Zanzibar. Há casos de meninas que haviam sido preparadas em canto e dança para atuar como cortesãs em países árabes e se encontravam decepcionadas por levar uma vida simples de trabalho. Muitos não renovavam os seus contratos, preferindo viver como insulares, trabalhando para si próprios, levando ao reforçamento do Vagrant Act, que previa a prisão daqueles que não cultivavam a sua própria terra ou não possuiam emprego regular e que eram vistos como vagabundos. Na sua maioria, porém, deu-se a integração na sociedade local, sobretudo através das escolas missionárias, anglicanas e católicas.

As crianças assim formadas e os já nascidos na terra aprendiam rapidamente o creolo e assumiam uma identidade creola, vestindo-se de forma apurada à européia, da qual tinham grande orgulho, mas de modo estranho nos seus exageros de cor e combinações de formas aos olhos dos europeus. Eram assíduos frequentadores de igreja, tornando-se cristãos fervorosos, contribuindo para o brilho das procissões de Port Victoria, da qual a maior era a de Corpus Christi.

De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Colonialismo britânico e pós-colonialismo no Índico. Política anti-escravagista inglesa e mudanças culturais: a creolização de africanos. O bobre no Índico e o berimbau no Brasil“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 155/15 (2015:03). http://revista.brasil-europa.eu/155/Colonialismo_britanico_no_Indico.html


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