Maud Allan: dança, natureza e o ser como se é
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 156

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 156/8 (2015:4)




A dança e a natureza do Rio

Percepção do belo e a expressão do ser como se é na libertação do corpo
Lembrando Maud Allan (1873-1956) na
Church Village de Toronto


Em continuidade a seminários de Gender e Queer-Studies
realizados na Universidade de Bonn em cooperação com a A.B.E. e o I.S.M.P.S. e.V.
ciclos de estudos em Toronto - Barbara Hall Park, Church Village



 
Maud Allan
Análises de processos culturais referentes ao Rio de Janeiro motivadas pela passagem dos 450 anos não podem deixar de considerar perspectivas dos estudos de gênero e dos queer-studies.

Resgatar do esquecimento fatos e desenvolvimentos que permitam contribuir para a reconstrução da história de minorias que tanto marcam hoje a vida, as manifestações culturais, artísticas e a imagem da cidade é uma exigência de estudos culturais orientados segundo o presente.

A metamorfose urbana do Rio de Janeiro no início do século XX e que determinou a sua vida social, cultural e a sua imagem, procedeu-se em época na qual em vários países da Europa - sobretudo na França, na Inglaterra e na Alemanha - intelectuais, políticos, músicos e artistas com sentimentos, orientações, modos de ser e de vida não condizentes com convenções e normas de moral justificadas pela religião desempenharam papel relevante na vida cultural, influenciando e mesmo determinando desenvolvimentos. (Veja)

Essa situação marcada por diversidade e relativa liberdade da Belle Époche foi abalada por escândalos públicos causados por denunciações, processos e perseguições que enegreceram a vida de várias personalidades, intelectuais e artistas de renome, com consequências para a vida cultural e artística.

Esses acontecimentos, intensificados à época da Primeira Guerra Mundial, tiveram dimensões e implicações políticas.

Em nações como a Grã Bretanha, em grandes campanhas feitas em nome a segurança e da moralidade, os incriminados passaram a ser suspeitos de espionagem e e atividades anti-patrióticas para o inimigo estrangeiro.

Esses fatos explicam desenvolvimentos político-culturais e sociais marcados por uma atmosfera mais restritiva no período posterior relativamente ao anterior à Guerra, o que contradiz em muitos casos
Maud Allan
a imagem por demais uniforme que se tem dos dourados anos 20.

Esses anos foram dourados devido à vitalidade artístico-cultural em metrópoles dos países impregnados pelo entusiasmo da vitória, o que porém não pode obscurecer a intensificação de correntes triunfantes conservadoras, de patriotismo exacerbado, nacionalismo, de política radical de direita, de militância em defesa da religião, da moral consuetudinária, da família, de tradições e da propriedade em combatividade anti-comunista.

Considerar esse desenvolvimento que marcou sob muitos aspectos a vida cultural e artística do ano 20 surge como necessário para análises mais diferenciadas dessa época que foi de alto significado para as artes e a música no Brasil.

Há um risco de visões não adequadas de tendências e posições intelectuais e artísticas dessa época, de obras de compositores e desenvolvimentos estilísticos nas suas inserções político-culturais, supondo-se uma orientação progressista que não pode ser generalizada e que ficou, quanto à liberalidade e tolerância em meios artístico-culturais, em muitos casos aquém daquela de grandes metrópoles do período anterior à Guerra.

Há um nome de artista que pode servir para exemplificar esses desenvolvimentos que exigem análíse cuidadosa e a diferença entre situções anteriores e posteriores à Primeira Guerra: o da dançarina Maud Allan.

Por ter-se apresentado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro nos últimos momentos da era que seria encerrada pela Primeira Guerra Mundial,Maud Allan  merece ser especialmente relembrada.

Essa consideração é de significado não apenas para a história da dança e da estética, como também para a compreensão de uma visão do mundo e do homem dirigida à natureza e ao natural, no sentido da expressão do homem como é, libertando o seu corpo, entrando em sintonia com o movimento da natureza.

Toronto, São Francisco e Berlim na trajetória de Maud Allan

Church Village, Toronto. Foto A.A.Bispo 2015
Nascida em Toronto, a lembrança de seu nome adquire relevância e atualidade para essa cidade que tem a diversidade como princípio, que possui uma comunidade particularmente ativa e internacionalmente constituída, e para a qual a memória e a reconstrução histórica adquirem especial relevância.
Em parque memorial erigido num dos principais centros dessa comunidade - a Church Street -, encontram-se nomes que indicam possível origem brasileira, mas o nome que deve ser ali rememorado ao considerar-se as relações de Toronto com o Rio de Janeiro é sobretudo o de Maud Allan.
A história de vida e formação de Maud Allan - Beulah Maud Durrant - surge como de significado sob a perspectiva dos Cultural Studies pelo fato ter
provindo de meio social modesto - o seu pai era sapateiro itinerante - e ter nascido em cidade então marcada pela imigração e pela vida de trabalho nas suas indústrias.

Toronto era já na segunda metade do século XIX um centro multiétnico e multicultural, impulsionado por anelos de ascensão econômica e social que se refletiram na cultura e nas artes. Essas características do ambiente e das circunstâncias de nascimento e dos primeiros anos da infância de Maud Allan em Toronto corresponderam àquelas de San Francisco, para onde os seus pais se transferiram, também marcado por internacionalidade decorrente de seus imigrantes de diferentes origens e pela liberdade de costumes de cidade portuária.

Correspondendo ao ímpeto de ascensão social e cultural de sua família e de sua formação, Maud Allan destacou-se desde cedo na prática instrumental da música, a ponto de desejar alcançar virtuosidade e seguir a carreira pianística.

Também de São Francisco era A. Isadora Duncan (1877-1927) a grande inovadora da dança e que seria o modêlo de Maud Allan.

Como outros jovens de talento americanos, Maud Allan transferiu-se para Berlim, onde passou a estudar na Escola Superior Acadêmica Real de Música a partir de 1895.

Maud Allan estudou na capital alemã assim à época em que esta também era procurada por músicos brasileiros.

Para financiar a sua estadia e seus estudos, Maud Allan passou a exercer diferentes trabalhos, atuando como modêlo para produtos cosméticos ou como costureira.

Vitalidade e liberdade da vida artístico-cultural de Berlim

De forma contrastante à imagem que se possui do período guilhermino, a metrópole alemã possuiu influentes personalidades e círculos que defendiam concepções de vida reformadoras e inovativas, também vivendo de forma não convencional.

É sob o pano de fundo dessa atmosfera que deve ser dada particular à influência que teria exercido sobre Maud Allan o crítico musical belga Marcel Remy, correspondente do Courrier musical de Bruxelas em Berlim.

Através desse intelectual e autor, cuja personalidade e obra deveria ser alvo de estudos mais detalhados, a jovem canadense/americana tomou contato com a cultura francesa a partir de sua recepção em Bruxelas, então cidade cosmopolita de extraordinário dinamismo e principal centro de interações culturais francesas-alemães da época (Veja).

Salomé como imagem de múltiplos sentidos

Foi através de Marcel Remy ou no círculo a seu redor que Maud Allan passou a relacionar-se ou talvez mesmo identificar-se com a imagem que marcou a sua vida artística e pessoal: Salomé.

Essa personagem da história bíblica tornara-se um ícone de círculos que viam quase como emblemático o ato de uma mulher sensual que pediu a decapitação de S. João Batista. A figura e Salomé estava presente nas artes visuais em artistas franceses, adquirindo a sua maior expressão na tragédia de um só ato do irlandês Oscar Wilde (1854-1900), publicada em francês, em 1893, tratada  visualmente por Aubrey Beardsley (1872-1898).

Nascido na Inglaterra (Brighton) e falecido na França (Menton), Beardsley surge ao lado de Wilde também como representante de interações anglo-francesas em círculos sociais e de criação literária que procuravam uma superação das estreitezas impostas pelas convenções através da valorização da estética e da percepção sensorial. A obra foi traduzida para o alemão em 1900 por Hedwig Lachmann (1865-1918), sendo esta adaptada para Salome de Richard Strauss (1864-1949), de 1905.

Visto como sintomas de Décadence segundo pensadores conservadores, esse desenvolvimento da passagem do século exige hoje ser reconsiderado.

Assim como a tragédia de Oscar Wilde, a imagem de Salomé, por ser bíblica, surgia como provocativa sob o ponto de vista religioso, levando a censuras e proibições. O tratamento literário e artístico do desejo sexual feminino na figura de Salomé contrariava preceitos sociais relativos à mulher, vindo dessa forma de encontro a anelos do movimento feminino que se desenvolveu na época em capitais européias.

A figura de Salomé adquiriu particular significado nas reflexões relativas à dança, uma vez que dizia respeito à dançarina que se apresentou em festa de Herodes e que, sob instigação de Herodias, pediu a cabeça do Preceptor (Mateus 14,3-12; Marcos 6,17-29). Trata-se teologicamente da morte do maior homem da antiga Humanidade carnal que, ao contrário dos impulsos terrenos, vivia em abstinência e pregava a conversão. Com a sua decapitação, o seu canto foi silenciado por ato conduzido pelos desejos da mulher através de uma dançarina.

As dificuldades na interpretação dessa figura deve ser vista no complexo mais amplo da problemática hermenêutica na leitura dos textos bíblicos. Uma visão superficial, derivada apenas da leitura literal do texto difere daquela que vê na figura, como representante da humanidade carnal, apenas um tipo, á qual contrasta um anti-tipo. Este indicaria dimensões mais profundas e amplas de sentidos dos anseios femininos.

The Vision of Salome

O significado de Salomé no círculo frequentado por Maud Allan ao redor de Marcel Remy em Berlim manifestou-se no fato de ter este crítico para ela ter escrito a música daquela que seria a sua principal obra: The Vision of Salome.

Contatos com círculos austríacos de teatro e música de Maud Allan estreitaram-se com a sua apresentação no Conservatório de Viena a 24 de dezembro de 1903. Uma das principais personalidades que tiveram influência na sua carreira foi Max Reinhard (Maximilian Goldmann) (1873-1943) com a sua encenação de Salome de Oscar Wilde, em 1904. Max Reinhartdt fundara em 1901 o teatro Kleine Theater Unter den Linden, que dirigiu de 1902 a 1905 ao lado do Neues Theater e, a partir de 1905, o Deutsches Theater em Berlim.

Max Reinhard, teria após a Guerra, com a encenação de Jedermann em Salzburg (1920) relevante influência no círculo de artistas do Mozarteum e da academia de renovação artística da qual tomou parte Martin Braunwieser (1901-1991) e cujo emblema musical foi „Saudades do Brasil“ de Darius Milhaud (1892-1974). Trata-se aqui, assim de um complexo temático estreitamente relacionado com a academia de renovação cultural da Europa então fundada e que tem continuidade hoje na A.B.E..(Veja)

Os seus elos com Marcel Remy facilitaram a sua atuação em cidades belgas (Bruxelas 1904, Liège 1905), culminando com sucessos em Berlim, em 1905/06. A interpretação de Salomé por Maud Allan marcou nesses anos de forma tão profunda a sua personalidade que a levou a abandonar a carreira musical, passando a dedicar-se integralmente à dança.

O grande vulto que influenciou as suas concepções e técnicas foi aqui Isadora Duncan.

A liberdade na expressão do ser aquilo que era, sentida como sensualidade por externos que não sabiam ler os sentidos mais profundos da dança de Maud Allan como Salomé marcaram a sua imagem como dançarina de alto erotismo nos seus gestos, poses, vestimentas e atitudes.

Assim, uma apresentação em Munique, em 1905, apenas pôde ser realizada para um público fechado. Em 1907, apresentou-se no Théâtre des Variétés em Paris, significativamente à véspera da première de Salome de Richard Strauss no Théâtre du Châtelet. O próprio Claude Debussy (1862-1918) compôs música para uma de suas produções orientalizantes.

Ícone da era de Eduardo VII (1941-1910)

Maud Allan tornou-se sobretudo ícone da era de Eduardo VII da Inglaterra. Após tê-la admirado em apresentação no balneário de Marienbad, o rei inglês recomendou-a ao Palace Theatre de Londres, onde apresentou-se entre 1908 e 1909.  Eduardo VII entrou na história cultural pelo seu estilo de vida liberal, pelas suas atitudes de Dandy e pelo seu convívio com artistas.

Os estreitos elos da dança com a sua própria vida foram tratados pela própria dançarina no seu livro My Life and Dancing. O seu prestígio em meios musicais e artísticos adquiriu dimensões internacionais através das viagens artísticas que passou a empreender, pela Rússia e pela América, em 1910, a seguir pela África do Sul, em 1911 e, entre 1913 e 1915, pela Índia, Austrália e Ásia. Foi nessa época que se apresentou também no Rio de Janeiro.

Maud Allan no Rio de Janeiro e o escândalo em Londres

Essa sua apresentação no Brasil, ocorrida no auge de seu prestígio como dançarina e de imagem da mulher que liberta-se de convenções disciplinadores do seu corpo precedeu o grande escândalo que se seguiu a seu retornou a Londres, em 1916.

Esse escândalo foi causado por artigo no jornal Vigilante, dirigido e escrito por Noel Pemberton-Billing (1881-1948), autor e político de orientação de direita radical que via uma infiltração da sociedade inglesa por homosexuais com relações com a espionagem alemã.

No seu jornal, primeiramente denominado Imperialist, divulgou um artigo que afirmava que os alemães conduziam uma correspondência com 47000 prominentes homosexuais britânicos a serviço da propagação da homosexualidade masculina, que diminuiria a virilidade e portanto a força militar inglesa, assim como fomentavam o lesbianismo.

Agentes do imperador alemão estariam até mesmo presentes em locais frequentados por homosexuais de Londres, tais como o Hyde Park e o Marble Arch. Esses nomes estariam registrados num Berlin Black Book do rei da Albania (Mbret of Albania).

Segundo esses construtos difamatórios de conspirações, os segredos de Estado seriam ventilados em círculos de lésbicas. Como vigilante moral empenhado na denunciação e perseguição de homosexuais, Pemberton-Billing concentrou o seu ódio a Maud Allan, difamando-a em artigo denominado de „The Cult of the Clitoris“. Esse ódio acentuou-se pelo fato de Maud Allan representar Salome em encenação dirigida por Robert (Robbie) B. Ross (1869-1918), íntimo amigo de Oscar Wilde.

A artista - acusada de estar em posse do Black Book e, portanto, ser agente do Império alemão - foi assim importante figura num dos principais processos de natureza homofóbica e anti-semita da história britânica no contexto da Primeira Guerra, um episódio negro da democracia britânica e no qual venceu Pemberton-Billing.

Apresentações de Maud Allan como Salomé foram proibidas e a artista, com a sua carreira abalada e a sua imagem manchada publicamente, retornou aos Estados Unidos, estabelecendo-se em Los Angeles. Ali continuou a sua vida artística com a participação no filme The Rugmaker‘s Daughter. Tornou-se conhecida sobretudo pela sua produção Noir the Slave, com música de Ernest Bloch (1880-1959).

Recepção de Isadora Duncan no Rio de Janeiro: dança e natureza

A apresentação de Maud Allan no Rio de Janeiro deu ensejo à publicação de extenso artigo em a Illustração Brazileira. Esse texto surge como significativo para a história da dança nas suas relações com processos culturais no Brasil. (Souvaroff, „Dansa“, Illustração Brazileira, Rio de Janeiro 1914).

Embora incluindo uma fotografia em grande formato, o texto não entra em detalhes a respeito da artista e da sua apresentação, expondo, porém, idéias que indicam claramente a recepção de posições e da arte de Isadora Duncan. 

Como o término do artigo demonstra, motivo condutor das argumentaçõesé as relações entre a dança e a natureza.

Numa paisagem privilegiada como a do Brasil, as atitudes de Isadora Duncan deviam ser lembradas. Como expressas em The Dancer and Nature, devia-se ver em todo o meio envolvente movimentos e impulsos à dança. Os verdadeiros movimentos de dança possíveis para o corpo humano correspondiam fundamentalmente àqueles da natureza.

O modêlo de concepções dessa percepção da natureza, da movimentação do mundo, do princípio movimentado e movimentador, assim como do movimentador por excelência encontrava-se não na tradição teológico-filosófica cristã, mas sim na Antiguidade. Devia-se, assim, procurar impulsos nas representações de movimentos e danças da arte helênica.

„Sob este céo brazileiro, com esta luz e com esta paizagem, o que merece ser evocado são as attitudes que Isadora Duncan foi copiar aos vasos gregos, para revivel-as nos grandes scenarios da natureza.“

A dança resultante desse direcionamento da atenção ao natural nos movimentos opunha-se ao ballett tradicional, à artificilidade controlada e exercitada.

A superação de um controle disciplinador do corpo e dos movimentos segundo critérios normativos criados por convenções no ballett surgia nas suas dimensões mais amplas como uma crítica à estreiteza e regidez nos costumes, nas vestimentas, nas atitudes, na vida social e pessoal de uma sociedade marcada ainda pela severidade da era vitoriana, o que também tinha o seu correspondente no Império alemão.

A dança de Maud Allan correspondia ao expressar em movimentos o homem que se encontra em sintonia consigo próprio e, assim, com o natural, movimentando-se no sentido de expressar o ser que de fato é.

Dimensões da dança - e a musa da dança no Rio de Janeiro

O artigo da Illustração Brazileira acentua a orientação de Dunkan à estética ou percepção do próprio corpo e do mundo envolvente na antiga cultura, lembrando aos leitores brasileiros a importância da dança na Antiguidade. Como o texto bem claro expressa, não se tratava de dança sensual, de requebros como a de salões de pares da época, de fox-trott ou tango, mais da tomada de consciência do significado mais profundo dos movimentos em mundo que é marcado pela movimentação.

„Ainda que não pareça, a dansa occupava muito mais espaço na vida dos antigos que na de hoje. Apenas dansava-se differentemente. Ninguem, sem duvida, imaginará um grego do tempo de Pericles a dansar o fox-trott para o encanto da linda Aspasia, ou um voluptuoso grupo de alméas a requebrar o tango argentino. Mas em verdade, em todas as grandes cerimonias, desde as Panathenéas ás festas de Dyonisus, não se celebravam sem o concurso choreographico.

Havia, mesmo, dansas para todos os casos e para todas as situações. Não somente para as cerimonias publicas como para as particulares, das mais graves ás mais frivolas.

Quando algum desses antigos paizes, de que guardamos memoria historica, desejava sellar com outro uma alliança politica, enviava ao chefe solicitado diplomatas, que, ai envez de falarem, como é uso hoje, davam o seu recado dansando. E parece, mesmo, os negocios internacionaes marchavam muito melhor nas épocas em que se regulavam pelo rythmo das pernas, do que actualmente, que estão confiados ás traições da palavra.

Quando uma tribu pretendia declarar guerra a outra, era ainda por meio de dansas que notificava ao inimigo suas disposições bellicosas.

Dansava-se para invocar e agradar aos deuses, para lhes pedir a chuva e o bom tempo, para exortar-lhes protecção ás seáras, para conjurar as molestias, ou pelo successo das emprezas de guerra. Dansava-se em regosijo á victoria, ou para lamentar a derrota.

Dansava-se sempre a todo o proposito, e mesmo sem proposito nenhum.

Entre os povos mais civilisados a dansa era, por assim dizer, uma funcção publica, com escolas proprias e funccionarios especiaes, encarregados de adestrar a juventude nos differentes passos.

O idealismo grego consagrou a arte da dansa uma musa especial, collocando-a entre a poesia e a musica.“

A dança como objeto da Filosofia, do Culto e da Política

Na argumentação do artigo, constata-se também o peso dado à função religiosa da dança em séculos passados. O autor revela na sua argumentação a posição de Duncan, conhecida pela sua antipatia ao Catolicismo e a outras confissões religiosas cristãs que conhecia dos Estados Unidos.

Nesse sentido, o divino da dança passava a assumir características de culto, inserindo-se assim Duncan, que foi influenciada entre outros por Friedrich Nietzche (1844-1900), em correntes do pensamento que desde a segunda metade do século XIX pregava uma transferência da criação religiosa à arte a aos artistas.

„Para ela, o espírito de um filósofo deveria ser o de um bom dançarino, sendo a dança o seu ideal, a sua arte e mesmo a sua devoção.

Nos primeiros tempos do christianismo nas basilicas, dansava-se tambem. A dansa fazia parte do culto.

Em Roma, tal prestigio teve a dansa que os dansarinos chegaram, por uma simples habilidade, a merecer os mais altos cargos do Estado.

É que, antes de ser um divertimento profano, a dansa, como a poesia, como a musica, teve uma origem e um caracter religioso, e por mais tarde, um caracter politico.“

A dança como arte integral - beleza de dançarinos e feiúra dos cantores de ópera

Correspondendo a essas convicções de Duncan, para o autor da Illustração Brazileira, a dança é arte integral, sintética, englobando em si todas as demais. A beleza física, a de gestos e de movimentos seria aqui fundamental, servindo como exemplo aquela de Anna Pawlowa (1881-1931), bailarina que gozava de renome internacional e que, com Sergej Djagilew (1872-1929), fundara em Paris os Ballets Russes, em 1909.

A dança, como arte da beleza integral, que se manifestava também fisicamente, opunha-se àquela da arte operística, marcada por cantores sem qualidades de beleza física e graça, obesos, citando o autor explicitamente E. Caruso (1873-1921) e Riza Elbenschütz (1870-1947), esta a Salome na obra de Richard Strauss.

Na aparência física esses cantores constratavam em falta de beleza com a formosura de V. Nijinsky (1889-1950) e T. Karsavina (1885-1978), sendo que Duncan suplantava nas suas qualidades estéticas todas as cantoras de ópera.

Com essas palavras, o autor deixa entrever um campo de tensões político-cultural entre a dança segundo Duncan e a vida operística, esta última de central significado para o Rio de Janeiro, cidade cuja vida musical era dominada pela ópera e pelas companhias italianas.

O texto revela também o modêlo visto nos Ballets Russes da época e uma antinomia entre a Salomé personificada por Maud Allane a Salomé da obra de Richard Strauss. Segundo o autor, havia motivos para considerar os dançarinos dos Ballets Russes superiores aos renomados cantores de ópera, a todos sobrepujando Duncan na sua arte global.

„Quem, por exemplo, se atreverá a negar a superioridade, incontestavel aliás, entre um bailarino e um tenor celebre? E no emtanto não ha nenhum motivo para julgar o Sr. Caruzo inferior a Nijinsky ou a Karsavina menos merecedora de applausos e enthusiasmo do que a senhora Riza? Ao contrario. A senhora Isadora Dunkan vale, como artista, mais, muitissimo mais que todas as cantoras juntas. Porque a sua arte é a arte completa, integral, synthetica, reunindo em si todas as outras artes. Ella é, ao mesmo tempo, movimento e attitude, rythmo e forma, poesia e musica, pintura e esculptura.

E, para realisar tudo isso, é preciso ter genio. E, o que é preciso ao Sr. Caruzo? Basta-lhe ter uma boa garganta e um cerebro de castanha secca. Se elle fôr obeso, tiver os braços curtos e as pernas arqueadas, nem por isso os seus ‚dós‘ sahirão menos exactos e menos puros. Que seria da Pavlowa, sem a harmonia magnifica de suas fórmas, sem a proporção do seu corpo, sem a graça leve que parece libertal-a da acção e da gravidade, sem a expressão do olhar, sem o gesto que prene e enlaç, sem a flexibilidade ondeante do movimento, sem o que seja de vaga, com uma espuma de sorrisos que attráe e seduz, e envolve e domina, e por fim se desfaz, deixando, em poz de si, uma saudade indizivel do infinito mar e do infinito céo?“

Evolução e o ideal estético da arte em oposição aos „sambas yankees“

Na exposição da Illustração Brazileira, constata-se uma singular concepção historiográfica, pois salienta-se a decadência por que teria passado a dança, havendo necessidade de uma renascença.

A mudança por que passara a dança nos últimos séculos podia ser explicada segundo o autor por razões político-sociais. Com o tornar-se popular da dança, esta tornara-se uma réplica ou caricatura da arte.

Ela testemunha antes a orientação segundo um ideal de beleza correspondente a mais altos critérios, o que poderia ser comparado com aqueles que orientaram a metamorfose do Rio, baseado em concepções evolucionistas na visão do mundo e do homem de E. Haeckel (1834-1919), marcadas por concepções amplas de ontogenese, filogenese e recapitulação biogenética. (Veja)

A metamorfose do Rio, que representava a evolução da cidade - e do país - e que tinha como pressuposto a demolição do velho centro, o saneamento, o ar puro, a higiene, a beleza e a civilização, correspondia assim à mudança que se deveria processar na dança e nos movimentos, valendo aqui Duncan como modêlo. Ao mesmo tempo, o artigo da Illustração Brazileira traz à consciência um certo aristocratismo de concepções evolucionistas que se manifestaram na reconfiguração urbana.

„Seria, talvez, curioso verificar por que decahiu essa arte tão prestigiosa. Mas não é inutil assignalar que as suas companheiras atravessaram, tambem, phases de decadencia, mais ou menos completa, para terem depois a sua renascença.

A dansa teve, tambem, a sua, apenas um pouco mais tardia. E, como a das letras e a da musica, que surgiu dos conventos e monasterios, foi grandemente preparada e agitada pelos mais altos dignitarios da egreja, nas faustosas côrtes européas, e, principalmente, nas côrtes francezas.

Sem duvida, o advento das democracias modernas, desde a revolução, fez grande mal á dansa, como a todas as artes.Com o tornar-se popular, a dansa não somente se degradou, mas se transfigurou. O que hoje se dansa por ahi está pra a arte respectiva como a oleographia para a pintura, como a modelagem de papelão para a esculptura.

Para o leitor atual, as idéias apresentadas no texto da Illustração Brazileira parecem manifestar posições de superioridade, de uma aristocracia de espírito que se opunha a expressões consideradas como vulgares. Elas podem, porém, servir à análise de concepções da época e de suas implicações.

A Estética como condutora e a libertação dos movimentos em contraste com o samba

O autor estabelece na sua argumentação uma oposição entre a dança de Duncan e aquela dos „sambas“ de negros americanos que ter-se-iam tropicalizado e que passavam a ganhar popularidade no Brasil.

Essa consideração do samba surge hoje como singular sob diversos aspectos, adquirindo porém significado para análises mais diferenciadas de processos culturais. O samba - ou melhor, o gosto pelo samba - é mencionado não como expressão conotada como brasileira, mas sim como yankee. O crescente interesse que passava a ter no Rio de Janeiro era visto como expressão de uma norte-americanização do gosto no país.

Contrariando idéias atuais, o samba não surge nesse artigo como expressão de libertação, mas sim como elemento de um edifício marcado por convenções normativas e disciplinadoras, contrário àquele que partia da percepção da natureza, de seus movimentos e da expressão do natural, do ser como se é, o que estaria em verdadeira correspondência ao movimento da extraordinária natureza do Rio de Janeiro.

A difusão e o aumento do significado do samba nessa época não são assim vistas como progressistas e esclarecedoras, mas sim como elemento paradoxalmente afirmador de um complexo sócio-cultural e desenvolvimentos ultrapassados.

„Certo, nenhuma relação existe entre isso e os varios sambas de pretos americanos, acclamados entre nós, e tão rapidamente tropicalisados.

Mas não é justo que esse gosto yankee que, como tudo que nos vem do norte, é a negação de qualquer ideal esthetico, venha occupar o logar que compete á verdadeira arte.

Sob este céo brazileiro, com esta luz e com esta paizagem, o que merece ser evocado são as attitudes que Isadora Duncan foi copiar aos vasos gregos, para revivel-as nos grandes scenarios da natureza.“ 


De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „ A dança e a natureza do Rio. Percepção do belo e a expressão do ser como se é na libertação do corpo. Lembrando Maud Allan (1873-1956) na
Church Village de Toronto “. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 156/8 (2015:04). http://revista.brasil-europa.eu/156/Maud_Allan_no_Rio.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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