Sangue quente - calor humano e „meu país“

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/10 (2015:6)





Sangue quente - calor humano e o estar em casa no „meu país“
- o „corpo fechado“ na cultura e a tensão tipológica Eva/Maria -
aproximações psiquico-culturais ao estudo do tango



Reflexões sobre „Heimat“ no Herzogstand, Baviera 2015

após  5 anos e sessão sobre tango finlandês na A.B.E. em cooperação com a Volkshochschule Gummersbach


 
As dimensões da imigração de fugitivos de países do Oriente e da África à Europa central e do norte, em particular à Alemanha, despertam na atualidade diferentes preocupações que se manifestam de forma conflitante na opinião pública e na política, na imprensa, em debates e posicionamentos na mídia, em extraordinárias ações humanitárias de um lado e em demonstrações populares de „cidadãos preocupados“ de outro.

Teme-se uma transformação da sociedade e cultura de nações e mesmo da Europa com a vinda de número tão elevado de imigrantes e fugitivos de outras culturas, língua e religião. Em várias cidades da Alemanha, em particular no Leste, grandes manifestações de „patriotas europeus contra a islamização do Ocidente“ defrontam-se com a oposição decidida daqueles que lembram os valores humanos que constituem a essência da Europa.

O ressurgimento do nacional e do nacionalismo, de consciência pelos laços do homem com a sua terra e contextos étnicos, culturais, religiosos, de valores, a intensificação do conservadorismo, tradicionalismo, xenofobia e mesmo racismo, assim como o debate sobre a família, seu significado para a sociedade e sua definição, são algums dos principais problemas que se impõem na atualidade a estudos de processos culturais.

Heimatabend. Herzogstand. Foto A.A.Bispo 2015

Atualidade de „Heimat“ e a dificuldade de sua conceituação

Conceitos até há poucos anos sentidos quase que como ultrapassados passam a tornar-se correntes, entre êles o de „Heimat“.

Por todo o lado levanta-se a questão: O que é „Heimat“? Esta questão também não pode ser facilmente respondida sob a perspectiva dos estudos em língua portuguesa, pois o termo não encontra correspondência precisa em português.

„Heimat“ tem outros sentidos e conotações do que pátria, nação ou terra natal, permitindo antes uma aproximação a partir do termo „lar“.

Tratar-se-ia, assim, nas preocupações atuais, sobretudo do sentir-se em casa, do estar em casa e do mêdo de perda de sua casa através da estrangeirização, mas também daqueles que não estão em sua casa, que perderam o seu lar e que procuram novo lar. Talvez esse conceito alemão possa ser compreendido a partir da querência ou do amor aos pagos do sul do Brasil.

Nos debates sobre o que define „Heimat“ salienta-se sobretudo o papel da língua. Assim, ao aprendizado do idioma do país hospedeiro é concedida importância fundamental na integração dos imigrantes e refugiados. É através da possibilidade de comunicação através da língua que poderão encontrar trabalho, estabelecer contatos humanos e inserir-se na sociedade e sua cultura.

Constata-se e teme-se, porém, que justamente o impulso de superação da experiência existencial do estar fora de casa e sem casa - „Heimatlosigkeit“ - leve a uma intensificação de sentimentos com o contexto humano, familiar, social e com o país deixado, não apenas no sentido de nostalgia e saudades, mas também no sentido da intensificação religiosa, do fanatismo e fundamentalismo.

Compreensivelmente, na procura de recuperar lar, os estrangeiros levam à vinda da família, parentes, amigos e conhecidos de mesma língua materna, religião, costumes e modos de vida. Criam-se assim sociedades e mundos paralelos que contrariam um ideal de integração. Compreensivelmente, discute-se se aqueles que procuram asilo podem ou não ter permissão de trazer família.

Manifesta-se, nessa preocupação, a problemática do „sentir-se em casa“ na sua dependência da perspectiva daquele que recebe e daquele que procura. Delineia-se assim uma dimensão mais abrangente desses impulsos e sentimentos, surgindo estes como inerentes ao homem na sua existência e, assim, como objeto de estudos antropológicos, psicológicos e demopsicológicos.

Atualidade do debate sobre a família e o „matrimônio para todos“

Uma outra preocupação que marca os tempos atuais e que pode e deve ser considerada neste contexto de reflexões é aquela referente à família. O sínodo sobre o casamento e a família realizado no Vaticano surge como a mais manifesta evidência da necessidade de discussão sobre problemas atuais relativos à família na sua acepção teológica consuetudinária e que se revela como sendo questionável, do empenho de valorização da família como „célula mater“ da sociedade e da necessidade de debates perante a atualidade de suas reconsiderações na realidade de diferentes formas de convívio de vida humana.

A preocupação pela manutenção de um conceito de matrimônio determinado por aquele da reprodução, pela possibilidade da geração de filhos na união de homem e mulher, manifesta-se também em demonstrações que procuram trazer à consciência que também a outros tipos de união cabe o conceito de família e, assim, o da união de casamento, o que exige reinterpretações de sentidos sacramentais.

Também as famílias que não são definidas por elos de sangue, por elos biológicos e genéticos de filhos nascidos da união podem ser vistas como células e mesmo esteios da sociedade, um significado que vem sendo reconhecido pela sociedade e pela legislação de muitos países.

Tudo indica tratar-se, nessa situação de conflitos e polêmicas, de problemas resultantes de relações não suficientemente claras entre a realidade corpórea definida por elos de consaguinidade e aquela do plano de concepções e imagens, de uma realidade espiritual, e, assim, de uma compreensão antes metafórica de sangue.

Seria de se esperar que justamente a Igreja e outras religiões atentassem prioritariamente a essas dimensões espirituais, não às físicas, ou seja, às realiades veladas, não às perceptíveis superficialmente na polaridade do mundo externo. Em todo o caso, trata-se também aqui de um problema que deve ser considerado nas suas dimensões abrangentes, antropológicas, psicológicas e psicológico-culturais ou demopsicológicas.

Desenvolvimento das reflexões nos estudos euro-brasileiros

Este complexo de problemas e questões que se evidencia com toda a força na atualidade vem representando já há muito uma preocupação nos estudos euro-brasileiros. Já no seu início na Europa, em meados da década de setenta, vivenciou-se a sensação do sentir-se fora de casa de brasileiros e de estrangeiros em geral, do campo de tensão representado pela intensificação de elos com o lar, o ambiente familiar, de parentesco e amigos da terra distante e aquele da procura de integração na nova sociedade e cultura.

Desde o início experimentou-se e registrou-se uma tendência de brasileiros e outros estrangeiros de unirem-se com conterrâneos de mesma lingua e costumes, expressões culturais, modos de vida e tradições.

Foi fenômeno constantemente constatado e tematizado em encontros e reflexões o fato de brasileiros que no Brasil nunca tinham festejado carnaval, nunca tinham dançado samba e nem gostado de futebol passassem, no Exterior, a participar de escolas de samba, a aprender batucada, capoeira e a torcer. Muitos reencontraram a religião.

Esse fenômeno continua a ter a sua vigência no presente, como manifesta a singular florescência de grupos de maracatú de brasileiros residentes em diferentes países da Europa. Concomitantemente à formação de grupos e comunidades, processa-se de forma complexa a integração com outros grupos e comunidades do novo contexto.

Essas constatações e reflexões levaram desde o início a uma maior atenção a similares processos vivenciados por europeus no Brasil e cujo estudo abrem perspectivas para estudos da imigração, de regiões colonizadas por imigrantes e do próprio país na sua formação colonial.

Um dos caminhos para essas análises é o da leitura atenta de relatos de viajantes que passaram pelo Brasil e por outros países latino-americanos e que fixaram as suas próprias experiências de vida, os seus sentimentos, impactos e transformações, relacionando-os em muitos casos com a realidade que descrevem quanto ao homem, cultura, modos de vida, mentalidade e psique.

As mais profundas reflexões referentes a este complexo temático encontram-se na quarta meditação sulamericana do conde Hermann Keyserling (1880-1946), viajante filósofo que se preocupou com psicologia cultural, a demopsicologia nas suas relações com auto-análise e fundou a „Escola da Sabedoria“, hoje conhecida como de praxis da filosofia. (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933, 1a. ed. 1932, 81-110).

Buenos Aires. Foto A.A.Bispo 2007
Vivência do isolamento no Estrangeiro e a sensação de que se é estranho

Como em outras meditações, Keyserling parte do conhecimento que ganhou a partir de sua vivência na América do Sul. Sempre sonhara em estar só anteriormente, feliz por ser deixado em paz, perturbado pelos homens. No Estrangeiro, porém, sentiu-se solitário, e essa solidão era terrível.

Era uma situação singular, pois a América do Sul já tinha nele despertado a consciência da existência de impulsos provenientes das profundezas no seu íntimo, o que tinha sido resultado de experiências existenciais, em situações liminares, as quais descreve em outras meditações.

Nunca anteriormente tinha-se sentido estranho relativamente àquilo que lhe pertencia, que lhe era próprio ou ao qual pertencia, e sempre se tinha compreendido como um hóspede na terra e como um peregrino.

Sentia-se feliz na América do Sul, experimentando uma grande simpatia pela terra e pelos homens. Apesar disso, porém, nada no mundo sul-americano era com êle aparentado. As constelações do céu eram outras, e nada na terra pertenciam originalmente a seu ser. Não havia nenhum elo simpatético com o substrado dos sulamericanos.

Nessa experiência, entendeu a imagem da árvore e das raízes: visto a partir da terra - não do espírito -.ao homem pertence só aquilo que tem as mesmas raízes, e espaços separam uma árvore da outra. (op.cit. 82)


O pertencer àquilo que tem as mesmas raízes e o sangue como imagem do calor

O pertencer àquilo que tem as mesmas raízes levou-o considerar a imagem do sangue. No emprêgo desse conceito reside a dificuldade de leitura desse capítulo da obra de Keyserling e os riscos de mal-entendidos, abrindo porém perspectivas para a percepção de correspondentes mal-entendidos nos debates da atualidade.

O sangue é visto por Keyserling explicitamente como imagem.

Entretanto, quando se trata de tentar compreender realidades que não pertencem à esfera racional, o pensador experimenta o renascer de situações primordiais. Nesse caso, a imagem, evocando uma determinada vivência, atua como uma corda que, vibrada, faz vibrar outra com ela afinada em ressonância., estabeleceno relações de correspondência entre o mundo interior e o exterior. Tanto mais complexas imagens, tanto mais tons parciais possui a corda tocada na alma.

A imagem do sangue  seria comparável à imagem da árvore genealógica, só que esta última refere-se ao passado, salientando apenas um aspecto do contexto global.

„Corpo fechado“. O sangue quente e o calor da comunidade como corpo

Com a imagem do sangue, Keyserling associa em primeiro lugar aquela de calor.

Tudo o que é estranho é frio. O sangue no homem é essencialmente quente e flui vitalmente apenas no contexto fechado do corpo.

Assim, o sangue pode ser visto como primeira imagem do pertencer a um organismo. Consequentemente, a imagem de uma comunidade é aquela do corpo fechado de um animal de sangue quente que mantém a sua temperatura própria em si e em confronto com o meio envolvente. Nessa consideração pode-se encontrar o sentido de imagens de animais de sangue quente no edifício cultural, tais como o boi/touro ou carneiro.

A forma primária desse pertencimento é a do parentesco de sangue, um círculo fechado.

O estrangeiro, como Keyserling, deixa o seu círculo fechado de parentesco e o „seu país“, o seu espaço e ambiente na Europa, sentindo-se de fora perante os círculos fechados da América do Sul, ainda que estes o atraíssem.

Constatou, no exemplo das famílias tradicionais sulamericanas, a existência de verdadeiras estirpes, havendo clãs e verdadeiras tribos mesmo nos mais modernos círculos da população. Os seus membros permaneciam extraordinariamente ligados uns aos outros e a menor separação era sentida como se a alma tivesse sido dilacerada.

Keyserling chegou assim à conclusão de que apenas dois caminhos haveria para a entrada nas esferas proporcionadas por laços de sangue e do „estar em casa“ na nova situação: o da mistura de sangue - compreendido sobretudo como imagem de cruzamento de rêdes de calor - ou o do enraizamento na nova terra. Dessa sensação de exclusão e isolamento, de frieza, procurou criar uma nova sensação de „estar em casa“.

A imagem de Eva e o primado da consciência de grupo no homem

A partir dessa experiência pessoal e do impulso sentido, Keyserling julgou compreender o caminho primordial do povoamento da terra pelo homem. Este precisou unir-se a seus iguais para não gelar-se no frio do isolamento, assim como galinhas se ajuntam uma às outras procurando esquentar-se sob a neve. (op.cit. 83)

O primeiro impulso seria o de superar o isolamento. Referenciando-se ao relato bíblico - como característico do seu procedimento segundo linguagem visual - Keyserling lembra aqui da criação de Eva da carne de Adão pelo fato de não ser bom que o homem esteja só.

Nessa imagem de Eva residia para êle o fundamento do primado da consciência de grupo no homem. Esta consciência de grupo não tinha as suas bases numa crescente individualização na sociedade, como frequentemente suposto por críticos de desenvolvimentos da sociedade moderna. Seria, ao contrário, uma instância primordial. Explicar-se-ia, assim, a existência de laços familiares, de estirpe e nacionais em situações altamente individualizadas e intelectualizadas.

Eva seria, assim uma personificação de um fato antes plural, de comunidade, uma colocação que auxilia a compreensão de muitos aspectos aparentemente inigmáticos da linguagem visual de expressões tradicionais de fundamentação religiosa no Brasil

Relações do calor com a luz na linguagem visual - as águas que correm da terra

A imagem do sangue como calor - qualidade do fogo - surge estreitamente relacionada com a da luz. Keyserling explica essas relações lembrando que é a luz que permite esquentar o sangue a animais de sangue frio, como os répteis.

Tendo tratado em outras meditações do sangue frio do sulamericano - e da reptibilidade no íntimo do homem e na sua expressão maior na delicadeza do brasileiro - é a luz que permite esquentar este seu sangue.

Também aqui as meditações de Keyserling baseiam-se nas suas concepções fundamentais expressas na linguagem de imagens elucidada já no primeiro capítulo da sua obra. Esses fundamentos residem mesmo tempo na filosofia da natureza e no relato bíblico da Criação.

Vendo a América do Sul como „continente do terceiro dia da Criação“, considerou em outras meditações sobretudo a terra que nele emerge, coberta de vegetação com plantas que trazem sementes.(Veja)

As suas considerações relativas ao calor dizem respeito agora à noite do terceiro dia, ou seja, à parte do dia precedente ao relato do surgimento do sêco. O surgimento do sêco da terra procedeu-se com a movimentação das águas que fluiram em correnteza e se ajuntaram no mar, saindo da terra e deixando surgí-la revestida de vida vegetal.

Esse estado anterior da água misturada com a terra seria para Keyserling como um plasma original frio que teria a sua origem no humo sem limites, que tudo cobria serpentuosamente na noite da Criação, onde teria a sua localização e esfera de poder.

O calor pressupõe, porém, o corpo fechado, assim como o sangue apenas pode correr dentro do corpo. Esse plasma por todo o lado serpenteante da noite da Criação torna-se organismo de sangue fechado ao despontar do dia, uma vez que a luz possibilita o esquentar do sangue.

As raízes desse organismo fechado também atingem as profundezas das esferas subterrâneas, uma vez que as veias e artérias onde corre o sangue no corpo fechado do animal também representam espaços de segurança, o que é um anelo do mêdo primordial da vida na sua esfera mais inferior (Veja).

O mundo do calor, da imagem do sangue, porém, é um novo mundo, o mundo do dia que desponta e que é descrito no relato bíblico do terceiro dia da Criação: no hemisfério norte o terceiro dia da Criação corresponde ao início da primavera e dos dias mais longos que a noite: março e, no Zodíaco, signo de Aries ou carneiro.

Aconchego do grupo, euforia de guerra e nacionalismo

Nesse contexto, Keyserling via a explicação do significado de estirpes mesmo nos mais modernos círculos da América do Sul, onde as famílias tradicionais do subcontinente formavam tribos similares àquelas dos filhos de Israel do Velho Testamento. Os seus membros mantinham-se ligados a todo custo, não apenas exteriormente, como também interiormente. A menor separação representava um sofrimento, como se a alma fosse cortada. Aqui se explicaria a euforia de guerra antes que esta começasse: justamente na hora de entrar-se na solidão última da fria noite da morte o homem quer vivenciar o aconchego do grupo.

Nos Estados modernos organizados segundo critérios nascidos da razão e do intelecto - como a ideologia marxista e o capital, haveria, segundo Keyserling, a ameaça de destruição de calor, e assim as forças originais reagem em defesa e surgem à superfície.

Apenas Estados de tradição garantedora de unidade entre o espírito e a terra através da ordem emocional não cairiam nesse nacionalismo primitivo que seria uma reação ao frio de sistemas determinados por idéias, por imagens abstratadas ou pelos interesses econômicos.

Na subida à superfície de forças terrenas primordiais encontrar-se-iam as raízes do racismo e do nacionalsocialismo. Tratar-se-ia aqzu de uma compensação da objetividade hipertrofiada causada pelo unilateralismo da esfera fria das idéias, da razão, das imagens, abstrações e cálculos que levaria a uma supravalorização do sangue no sentido primário do termo. E isso determinaria o destino numa política de sangue, de pureza de sangue totalmente irracional. (op.cit. 85)

Unidade de grupo por laços de calor, calor dos outros e mistura de sangue

O significado dos laços de calor é para Keyserling ainda muito mais amplo: esses vínculos não só representam unidade, como a criam, promovendo igualação de atitudes, posicionamentos e sentidos.

Quando o homem entra em contato com aqueles que não pertencem à esfera com a qual se une por laços de calor, passa a vigorar instintivamente um impulso que leva à mistura, à „mistura de sangue“ no sentido figurado - a mistura de calores.

O anelo de calor aconchegante explicaria o fato da exogamia apenas ter-se implantado em tribos que se consideram suficientemente fortes para assimilar o calor de outros. Na aristocracia do presente ainda se praticava o casamento entre parentes ou pertencentes à mesma esfera social.

Quando, porém, uma tribo alcança suficiente solidez interna e deseja conquistar outra terra povoada, tende, mais cedo ou mais tarde à miscigenação. O motivo condutor, ainda que inconsciente, é o de criar „Heimat“, uma outra esfera na qual o homem possa-se sentir em casa.

Política de assimilação de conquistadores e miscigenação

Aqui estaria a explicação da política de assimilação que os conquistadores desenvolvem mais cedo ou mais tarde: com ela, procura-se estabelecer que nada mais deve ser sentido como estranho no mundo envolvente, superando-se o isolamento.

Cada um passa a estar tão ligado pelo seu subconsciente ao contexto que, sem mesmo atuar, tem o seu lugar na comunidade, não se sentindo excluido.  Esse caminho indicado pelo instinto para a criação de uma atmosfera de „estar em casa“ significa uma mistura de calores, ou, no sentido da imagem, uma mistura de sangue.

Através de cruzamentos, cria-se uma nova unidade. Os vencedores na conquista unem-se aos vencidos, fazendo nascer filhos e, assim, novas unidades duráveis mais amplas. Antes, porém da unificação, teria lugar o conflito representado pelo confronto de esferas herdadas no próprio interior do homem, dos calores derivados de rêdes paternas ou maternas.

Este seria o caso do início da conquista da América do Sul, podendo ser o subcontinente exemplo significativo para a compreensão de um processo geral em tempos remotos. Keyserling lembra que o primeiro iniciador de uma revolução na América foi um filho de Fernando Cortez (1485-1547) com uma indígena.

Conflito e criação de „meu país“ na alma do homem e o positivo das misturas

No sentido do homem interno, o conflito na alma procura, segundo Keyserling, a sua reação em conflitos externos.

Explicar-se-ia, assim, a situação convulsiva e conflitante dos países sul-americanos no decorrer da história, que terminaria quando é alcançado um equilíbrio mais durável.

Entretanto, o homem, segundo o filósofo, é potencialmente tão diferenciável e variável, que o rítmo de alternância entre o impulso de reunir-se e o da necessária mistura é eterno, mantendo-se a diversidade.

Como na vida animal, o fixar-se em determinada diferenciação é a causa de extinções. A mistura dissolve fixações, dando origem a contínuos rejuvenescimentos. (op.cit. 87)

Em determinadas fases, os povos se orientam segundo as normas da igualdade de condições ou de unidade de raça. Essa orientação seria justificável enquanto durasse o período especial de um estado de equilíbrio estabilizador e vital, o que não duraria muito, pois fixações levam a estarreficações e perda de vitalidade.

A salvação era assim o rejuvenescimento a partir de calores diferentes. Assim, em situações contrárias, encontram-se ideais diferentes que atuam positivamente. O bom senso exige, assim, a mistura. (op.cit. 88)

Tomada de consciência do significado da miscigenação na cidade de São Paulo


Na sua estadia na América do Sul, Keyserling constatou e vivenciou o significado da mistura nas suas mais intensas formas. Reconhece que esta era resultado do fato de que os primeiros povoadores, os portugueses, não terem tido preconceitos raciais. 

A sua maior experiência deu-se em São Paulo, ao retornar, à noite, de uma visita a fazenda de café no interior do Estado.

Nesta fazenda, vira rebanhos mixtos modêlos, onde se encontravam raças de reses de todo tipo. Ao chegar à capital, deparou com pessoas que, na sua aparência, denotavam resultados das mais diversas miscegenações.

Neste contexto, Keyserling critica a idéia de José Vasconcelos, que preconizava uma „raça cósmica“ que deveria ser a expressão mais alta da humanidade, levando à criação do „homem integral“ a partir da mistura de todos os povos atuais. Sendo a população da América do Sul a mais misturada de todos os continentes, a humanidade alcançaria ali a sua compleição.

Para Keyserling, essa teoria era absolutamente falsa, tão errônea quanto aquela que partia da pureza racial.

O impulso à miscigenação teria como finalidade fazer com que o meio envolvente se tornasse um lugar onde o homem se sinta em casa. Aquele que é resultado de misturas, apenas pode ter a esperança de se sentir em casa em mundo totalmente misturado. (op.cit. 88)

Manifestando de forma explícita o seu não-racismo, Keyserling nega as extrapolações do eugenismo, do desenvolvimento racial do homem como se fosse rês de raça, acentuando que o principal é o caráter individual, não o da espécie.

De misturas imprevistas poderia surgir resultados altamente positivos. Neste contexto, Keyserling considera a mistura com sangue africano na América do Sul, visto como propício ao talento. Tratar-se-ia aqui de uma questão de calor, pos o calor emocional dos africanos compensaria a falta de calor que teria sido herdada do indígena e da frieza dos europeus dominados pela esfera fria do espírito calculador e a uma alma marcada por insegurança, mêdo e fomes primordiais. O calor dos africanos exerceria a ação de um catalizador que possibilitaria o alcance de um nível mais alto de desenvolvimento do homem.

O Brasil - ainda que se tornasse segundo Keyserling cada vez mais branco (ou frio), demonstrava como o calor africano podia ser positivo. O mesmo acontecera no remoto passado no continente africano, e a famosa Nephretete do Egito, se fosse hoje nascer, seria brasileira (!). (op.cit. 89).

O decisivo seria o aspecto qualitativo da mistura de calores

A questão não era assim a da miscigenação ou não, mas sim se da mistura surgia ou não um novo equilíbrio favorável. Se este ocorresse, então passaria a vigorar qualitativamente uma nova situação de unidade.

Na mistura consolidada em nova unidade, seria errôneo querer falar do predomínio de uma de suas partes, sendo o mais importante a nova qualidade.

O sangue dos conquistadores de início determinou o tom. Na língua, ainda que a do vencedor ibérico tivesse predominado, não a derivação filológica seria decisiva, mas sim o novo nas línguas surgidas, a sua nova alma. Um novo espírito emprestaria ao material da língua um novo sentido.

Esse paralelo com a língua permitia considerar o verdadeiro significado da mistura de calores. O inglês seria ainda hoje uma horrível mistura de fragmentos germânicos e latinos, mas a unidade de alma do novo povo inglês nele se manifestaria de forma tão perfeita que ninguém chamaria o inglês de mestiçagem infeliz. Em contextos vitais seria irrelevante tratar de origens, sendo o que conta é o hoje e agora.


Os laços de calor no tango - psicologia cultural e musicologia - sessão na A.B.E.

Devido à formação musical de Keyserling e as constantes referências à música na sua obra, o seu pensamento foi repetidamente considerado em cursos e seminários universitários realizados na Alemanha e dedicados à América Latina. Entre êles, considerou-se as suas interpretações músico-antropológicas do tango, discutindo as suas colocações sob diversos aspectos, também e sobretudo da recepção o tango no pensamento e na filosofia européia. A extraordiná´ria atualidade do tango em países como a Finlândia motivou a realização de um colóquio no Centro de Estudos da A.B.E.. em sequência a ciclos de estudos realizados em Buenos Aires, em 2007.

Após considerar a língua como meio de explicação do significado dos laços de calor, Keyserling passa a considerar o tango nas suas Meditações Sulamericanas. Lembra que este teria nascido em bairros periféricos de reputação duvidosa de Buenos Aires. Os seus antepassados principais teriam sido danças afro-cubanas e cantos napolitanos. Devido à grande passividade da natureza argentina, o agente despertador tinha de ter vindo de fora.

Logo surgiu a grande depressão, o sofrer sem fronteiras e sem solução, característica psíquico-cultural da Argentina. A reserva segura do indígena domador de cavalos deu lugar à languidez africano-napolitana. O golpe do chicote, adaptado à guitarra, criou um rítmo másculo. O tango, assim, na sua época, já pertenceria à arte clássica. A forma com que era dançado pelos compadritos até ao redor da passagem do século teria sido a original. Se bem executado, o tango não manifestaria paixão liberta, mas sim paixão suspensa.

Keyserling procura elucidar esse caráter do tango com o levar areia vermelha suspensa pelas águas do Rio de la Plata.

Com isso, estabelece uma ponte com a sua imagem do terceiro dia da Criação, quando as águas, correndo, se juntaram ao mar. Estabelece também uma ponte com o mundo natural do hemisfério norte, fazendo comparações entre o outono e o inverno. Se o minueto manifestaria a melancolia do outono, o tango a depressão na primavera. A imagem do terceiro dia é uma imagem de primavera (do hemisfério norte), as suas raízes, porém, se encontram na última parte do outono europeu, a época de noites mais longas do ano.

A tomada de consciência do calor dentro de si ao acordar do homem

A tomada de consciência do calor dentro de si é para Keyserling tão difícil como assumir a própria mineralidade ou reptibilidade. (Veja)

Para o espírito, trata-se de uma consciência do não-eu. O indivíduo que acorda sente-se primeiramente em oposição à espécie. Assim toda a espiritualização começa com a negação do sangue - no sentido metafórico -, sendo aqui o monge o prototipo do espiritual.

Abandonar o calor para entregar-se à procura de outros calores correspondia ao lema de Keyserling já formulado na obra que o fêz famoso, o „Diário de um Filósofo“: o mais curto caminho para si mesmo é aquele ao redor do mundo. (Das Reisetagebuch eines Philosophen, Munique/Viena: A. Langen-G. Müller 1980, 1a. ed. 1918).

Segundo a sua própria experiência, a sua não-compreensão do elo proporcionado pelo sangue corresponderia ao normal na perspectiva do estado primário daquele que se torna consciente.

Antes de alcançar a unidade no plano da personalidade espiritual, antes desta se cristalizar no centro do seu eu, o seu pensamento girava em torno do que êle não era. A unificação apenas processou-se quando decidiu-se reconhecer - sem compreender - que um não-eu predominante na massa a êle pertencia e que não devia negá-lo. Esta consciência do não-ser já era um fato psíquico.

Seria falso que aquele que desperta para a auto-consciência tenda a sentir inveja e ressentimentos para com os outros. So que êle não consegue aceitar que êle próprio não pode ser como imagina que poderia ser. Ele imagina ser sempre melhor e mais alto do que é. Apenas em nível mais alto passa aquele que se sente soberano a ter modéstia relativamente às suas restrições naturais.

O calor da mulher, a melancolia e o sentimento religioso feminino - a sabedoria da vida

Keyserling lembra que inguém pode identificar-se totalmente com o calor, mesmo a mulher como mãe. Nesse local silenciado do sentimento próprio, tanto homens como mulheres sentem a tragédia da fraqueza da carne. Aquele que se encontr mais mais próximo da terra sente essa tragédia da forma mais profunda, pois a terra prende. Por isso a melancolia e o sentimento religioso seriam mais acentuados nas mulheres e na América do Sul.

Por outro lado, a felicidade terrena passa a ser nesse sentido apenas possível no seio da comunidade no plano do não-eu. Assim, a sabedoria de vida levaria a que a consciência pessoal passasse a desempenhar um papel tão pequeno quanto possível.Tudo torna-se então despersonalizado, transportado ao plano de costumes gerais.

Neste contexto, Keyserling compara as mulheres espanholas com as sul-americanas, muito mais felizes e menos melancólicas. As espanholas, desconfiadas relativamente à vida, restringem-se à rotina. Viivendo o pessoal na projeção do impessoal, imergem segundo Keyserling no coletivo por mêdo do experimentar o próprio eu. Assim, vivenciam a felicidade proporcionada pela vida dentro de um grupo de laços de calor.

Keyserling lembra neste contexto o conflito entre a natureza e o espirito que trata em outras meditações. A história demonstraria, na sua dinâmica, a movimentação resultante do conflito entre um sentimento de identidade pessoal e o não-eu do calor no quadro da auto-consciência.

Essa tensão é que levaria segundo êle o homem a tentar desesperadamente ascender, a subir da esfera original. O homem deseja alcançar a sua plenitude e compleição. Esta, porém, é apenas possível a partir da superação do conflito de calor da herança na sua alma, de linha paterna e materna, pois esta procura a unidade. 

Para Keyserling, a psicoanálise trataria do problema de forma insuficiente ao falar em exteriorização libertadora de conflitos íntimos da alma. Toda a dinâmica externa já seria reação de conflitos internos. O conflito decisivo não é aquele entre os diferentes conteúdos psíquicos ou complexos, mas sem entre o não-eu e o espírito.

Capacidade do „sangue“ em receber o espírito e gerar o espírito - imagem de mulher

Em toda a origem da cultura seria para Keyserling decisiva a capacidade do „sangue“ em receber o espírito e gerar o espírito. A terra pode impulsionar os necessários órgãos para o exercício do espírito e fomentar o seu crescimento, mas a cultura nasce e morre com o seu sentido e conteúdo espiritual, e este jamais é proveniente da terra.

O novo contexto surgido pelos laços de calor é comparado por Keyserling como uma jovem mulher que procura despertar amor atraindo o homem que não está totalmente seguro de unir-se definitivamente. Trata-se portanto de uma imagem de jovem mulher bela e atraente - Eva -que procura fascinar o homem. Ao contrário, o sentimento de „Heimat“  já enraizado equivale aos elos emocionais quase inconscientes que ligam um velho casal.

O sulamericano seria para Keyserling aquele que mais amava o seu país de todos os povos do mundo. Os espanhóis, ao contrário dos ingleses, ter-se-iam entregado totalmente à nova terra que conquistaram, e por isso se explicaria a permanência maior de costumes europeus no subcontinente.

Entretanto, nesse processo, a alimentação da parte da alma que se relaciona com a terra de origem torna-se sempre menor, e assim, a alma se retrai. Dessa forma, a tradição européia perde o seu substrato fisiológico. Só no corpo de emoções e costumes é que continua a viver a tradição espiritual, permanecendo esta mais fortemente vital na América do Sul do que na própria Europa.

O espírito, em si, não liga e não cria vínculos, pois é esfera de ideais, abstrações, que são universais, válídas acima de contextos, tais como as matemáticas. O sulamericano, ligado pelos seus sentimentos com a terra, tem a sua alma mais determinada por forças terrenas do que os europeus: toda a esfera emocional é corrida pelo calor de fontes terrenas de vida.

Discussão e aprofundamento das análises de Keyserling nos estudos euro-brasileiros

Keyserling manifesta orientar-se segundo a filosofia natural nas suas relações com o ciclo do ano do hemisfério norte na sua leitura do relato bíblico da Gênese e da mitologia. Na sua erudição, considera aspectos da astrologia e das religiões orientais. As meditações referentes ao terceiro dia da Criação partem da sua identificação com o período de ano marcado, no Zodíaco, pelos signos de Aries e Touro e, quanto aos meses do ano, pelos meses de março e abril, época de início da primavera, onde após o equinócio, os dias passam a ser mais longos do que a noite. A imagem do sangue, correspondendo à principal qualidade do fogo, corresponde a Aries, ou seja à noite do terceiro dia.

O por êle mencionadoplasma primordial frio que cobria a terra, e do qual correram os rios que se dirigiram ao mar com o aquecimento no terceiro dia, tinha as suas raizess nas profundezas das trevas do sub-mundo, ou seja no fogo de Sagitário, o período de mais longas noites do ano no hemisfério norte, situação das mais problemáticas do ponto de vista da linguagem visual do edifício cultural, contrária sob muitos aspectos das interpretações antes positivas da astrologia convencional.

Tem-se, assim, uma distinção entre duas imagens estreitamente relacionadas, porém distintas: aquela do fogo frio nas trevas que agora passa a correr nas veias de um corpo fechado que se juntam no mar, e aquela do calor à luz que desponta no mundo natural e que é a luz no interior do homem.

Ambas as imagens teem conotações femininas e são relacionadas com virgens, pois, segundo antigas concepções filosófico-naturais, o fogo é sempre virgem. As virgens de narrativas não foram necessariamente virgens no sentido físico, mas sim mulheres associadas na linguagem visual com o fogo.

A imagem correspondente ao despontar do calor no início da primavera é aquela que representa „Heimat“, a segurança da comunidade unida por laços de calor a quem se referem os múltiplos sentidos apontados por Keyserling, entre outros a da mulher que procura atrair o espírito e capaz de gerar o espírito ou a da sabedoria.

Em trabalhos realizados em centros de estudos arqueológicos, de história antiga e de relações Antiguidade/Cristianismo desde 1975, reconheceu-se que a imagem feminina considerada por Keyserling corresponde à de Pallas Athene/Minerva, a „menina“ e virgem, divindade do Parthenon da Acrópolis de Atenas, personificação da sabedoria, protetora da cidade, do burgo e da comunidade. Era a divindade cultuada nessa época do ano - Aries - em calendários agrícolas.

Em estudos desenvolvidos no âmbito da história religiosa e teologia, considerou-se em várias ocasiões correspondências dessa personificação mitológica com imagens bíblicas, tanto em tipos do Velho Testamento como na sua correspondência anti-típica em Maria. Em seminários em institutos pontifícios e universidades, e sobretudo no Colóquio „Tradições Cristãs e Sincretismo“, em 1989, no qual participaram vários pesquisadores do Brasil, considerou-se a permanência dessas relações no Brasil sob o conceito de Oxum.

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ Sangue quente - calor humano e o estar em casa no „meu país“ - o „corpo fechado“ na cultura e a tensão tipológica Eva/Maria -aproximações psiquico-culturais ao estudo do tango “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/10  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Calor_humano_Heimat.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Buenos Aires, Herzogstand, Gummersbach, S.Paulo. Fotos A.A.Bispo, 2007/8, 2015 ©Arquivo A.B.E.