Nas encruzilhadas da vida - destino

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/11 (2015:6)



Nas encruzilhadas da vida - interferências no destino
O manuseio do mal na estrategia e na política:
compadres, caciques, caudilhos, ditadores, bandoleiros



 

Atualidade de questões relativas ao destino, encruzilhadas da vida e do mal


A corrente imigratória de fugitivos que no presente atinge a Europa, levanta sob muitos aspectos a questão de destino, do acaso e dos políticos que se confrontam com desenvolvimentos inesperados na sua força e dimensões, procurando dirigi-los e reassumir o controle, intervindo assim em destinos.


Fugitivos de regiões assoladas por guerras e migrantes à procura de melhores condições de vida do Oriente e da África enfrentam as maiores dificuldades e os maiores riscos de vida para atravessar o Mediterrâneo e prosseguir com imensos sacrifícios pelos países balcânicos em direção à Europa central de língua alemã ou, ainda mais longe, à Escandinávia.


Muitos deles não sabem para onde vão, não possuem noções geográficas claras de caminhos e países, não sabem onde se localizam cidades, onde é a Alemanha, a Dinamarca ou a Suécia ou onde encontrarão asilo.


Deixam-se levar por informações e imagens vagas que alimentam a esperança de um fim feliz. Entregam-se assim a um destino que determinará a sua vida, a acasos que poderão interrompê-lo, seja pela morte na travessia do mar, seja pela aceitação ou não de seus pedidos de refúgio.


Em grande parte são levados a essa migração e a seu destino por obscuros guias que, surgindo nas terras assoladas por guerras e necessidades, instigam à migração e lucram criminosamente das travessias que colocam a vida de muitos em perigo.


A Europa, por sua vez, enfrenta um abalo nos valores que fundamentam a sua união, receia pela certeza da mudança que passará com a quantidade de migrantes de outras culturas e religiões, vivencia assim receios quanto a seu destino, sente ressurgir impulsos que contrariam preceitos humanitários, atos de violência e posições que justificam o mal a serviço de interesses nacionais e e de valores que são sentidos como em perigo. Outros, por outro lado, argumentam que os migrantes representam um enriquecimento, ou seja, o que é sentido negativamente na atualidade pode ser colocado a serviço de valores.


Centro A.B.E.. Foto A.A.Bispo 2010

Migrações, encruzilhadas, destino e acaso na história de Portugal e do Brasil


Joanopolis. Foto A.A.Bispo 2004
Essa situação atual na Europa não pode deixar de ser considerada no âmbito de estudos de processos culturais em relações internacionais. Migrações de todos os tipos e em todas as épocas e contextos constituem neles necessariamente objeto de análises e reflexões.


No caso daqueles referenciados pelo Brasil, não se trata apenas de estudos da emigração/imigração européia a partir do século XIX, que marcou vastas regiões do país, assim como a vida e o desenvolvimento científico e cultural de seus centros. Trata-se de uma temática muito mais fundamental e que diz respeito aos princípios dos caminhos históricos do Brasil, aos processos desencadeados pela expansão ibérica à época das Descobertas, ao destino daqueles que se entregaram à aventura das navegações e ao destino do país que foi explorado e colonizado.


Na presente situação européia, torna-se assim oportuno recordar alguns momentos de reflexões encetadas desde o início do programa euro-brasileiro de estudos de processos culturais na Alemanha, em 1974/5, tratadas em encontros, conferências, seminários e colóquios.


Esses estudos não puderam deixar de partir fundamentalmente da história dos Descobrimentos, dos nomes de navegadores e líderes que marcaram desenvolvimentos, do contato e interações com os nativos das diferentes regiões alcançadas, do povoamento e da expansão pelo litoral e pelo interior.


A epopéia das navegações e dos Descobrimentos que, marcando o destino de Portugal consistui preocupação central dos estudos portugueses, tem levantado há muito a questão das causas e dos motivos condutores que levaram a fenômeno de tão grandes proporções e consequências, à saída de tantos portugueses em direção ao desconhecido.


Consideraram-se razões religiosas, comerciais, militares, mas nenhuma delas satisfaz plenamente a questão de uma disposição psíquico-cultural que poderia explicar a audácia de tantos homens que se atiraram a um destino incerto, enfrentando a sorte e colocando a vida em perigo.


A questão dos condicionamentos culturais, psíquicos e mentais que possam elucidar mais profundamente tal fenômeno levou a estudos de seus fundamentos inerentes a um sistema cultural de concepções e imagens de remotas origens e cujos mecanismos intrínsecos, se revelados, prometem esclarecimentos.


A questão do mal nos estudos da história cultural das navegações e conquistas


Um dos aspectos mais preocupantes e detrimentes desses estudos sempre foi e é a constatação dos desatinos, dos males praticados por alguns dos vultos que entraram na história e cujos atos desumanos foram silenciados ou tratados com indulgência numa história heroicizante e glorificadora de ações.


Essa problemática do mal esteve particularmente presente no Congresso Internacional dedicado a questões de fundamentos culturais por ocasião dos 500 anos do Descobrimento da América por Colombo, no Rio de Janeiro, em 1992, ano no qual as atenções estiveram dirigidas às atrocidades cometidas pelos conquistadores espanhóis nas grandes civilizações indígenas das Américas.


As reflexões tiveram continuidade por motivo da passagem dos 500 anos da viagem de Vasco da Gama, quando, no Brasil, em 1998, realizou-se colóquio internacional dedicado explicitamente à consideração de um edifício simbólico-antropológico cujas estruturas e mecanismos permitem aproximações a aspectos trágicos relacionados as navegações e as migrações. Essa questão foi tratada em sessões nas universidades de Coimbra, Nova de Lisboa, de Colonia e de Bonn.


Ettal. Foto A.A.Bispo 2014
O não-metafísico do destino nas „Meditações Sulamericanas“


Esses esforços elucidativos tiveram como ponto de partida e procuraram aprofundar e atualizar meditações de natureza psicológico-cultural ou demopsicológica e filosófico-antropológicas de Hermann Graf Keyserling ((1880-1946). (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932).


A quinta meditação de H. Keyserling (op.cit. 111 ss) parte explicitamente da questão do destino. Contrariamente à idéia generalizada de que o destino é resultado da Providência Divina, ou algo transcendental ou metafísico, o filósofo procura explicá-lo como pertencente ao mundo natural, terreno.


Com essa constatação Keyserling coloca o destino no contexto das ciências naturais, da evolução, da luta pela existência. Ao mesmo tempo, porém considera o papel da intervenção do espírito do homem nesse desenvolvimento, ampliando assim e modificando concepções evolucionistas. O conceito de espírito é aqui compreendido como a esfera de idéias, imagens, da razão, do intelecto e outras faculdades imateriais no interior do homem.


Como confessa, Keyserling teria aprendido essa conceituação da natureza não-metafísica do destino na América do Sul.


Na sua exposição da problemática do destino, lembra do caso de uma estranha borboleta do Brasil que é capaz de detectar uma fêmea a longa distância para o acasalamento. O fato de escolher essa fêmea, e o fato desta última ter sido escolhida, de ter sido detectada, ou seja, o da determinação de destinos, eram incidentais, de acaso.


A maior parte dos acasos na vida do homem não seria diferente. Na maior parte não teriam significado suficiente para serem considerados. Além, do mais, com o desenvolvimento das comunicações, o homem tornou-se muito superior a todos os outros animais quanto à detectação à distância. Isso não impede, porém, que haja acasos determinantes de destino, exigindo explicações.


Das „melodias de vida“ de determinados seres - na concepção músico-antropológica de Keyserling - fazem parte de forma orgânica acasos externos que nela interferem, e que não podem ser compreendido através de causalidades.


Foi por um acaso que Keyserling tomou conhecimento do decorrer da vida de uma enguia. Quando madura, no fim da vida, a enguia peregrina de rios e lagos nórdicos a um mar entre as Bermudas e a América do Sul, onde gera uma nova geração e morre, nunca retornando. Os rebentos pouco parecem com a imagem que terão quando desenvolvidos, passando por vários estados de larva. O mais inigmático, porém, é que, sem possuirem nada adequado para a longa viagem, procuram tão logo quanto possível dirigir-se às águas doces do longínguo norte, onde crescem, mas onde não se reproduzem. Se o destino impedir que a enguia alcance o mar tropical, então morre sem filhos.


Como Keyserling salienta, muitos outros estranhos caminhos de vida no mundo animal poderiam ser lembrados, entre estes o da lombriga. Também passa por diversas etapas de sua vida antes de cair como larva em algum capim e também por acaso ser comida por outro animal. Poder-se-ia também pensar nas aves migratórias.


Em todos esses exemplos haveria sempre o momento do deslocamento no espaço na „melodia da vida“, que decorre no tempo. Isso parece valer também para o acaso no contexto do destino. A trajetória de vida da enguia, a carreira dos pássaros mitratórios surgem como diferentes formas de manifestação de um mesmo complexo de natureza primordial, podendo assim servir de ponto de partida para a consideração de decorrências de povos e indivíduos.


Interferências inesperadas nas encruzilhadas da vida e a livre vontade


Se a anguia, a lombriga e a ave migratória tivessem consciência, deviam sentir de imediato que certos deslocamentos no espaço pertecem de forma indissolúvel à sua „melodia de vida“ que decorre no tempo  e que acasos podem determinar o seu destino. Elas viveriam assim uma síntese em que o espaço e o tempo, a necessidade e o acaso surgem como partes integrantes. Keyserling supõe, assim, que deve haver uma entidade que vivencie de forma imediata a unidade primordial espaço-tempo tal qual os homens vivenciam o espaço e o tempo como diferentes dimensões.


No caso do homem, a liberdade da livre-vontade desempenha um papel decisivo que o diferencia dos outros animais. O homem consciente também vivencia o seu destino. Tanto mais destacada for a sua linha de vida pessoal, tanto mais necessariamente fazem dela parte todos os acasos que nela interferiram ou interferem. Em cada acaso sente onde deve mudar de direção, cada acaso é um cruzamento de vias.


Mencionando a sua própria ida à América do Sul, Keyserling afirma que, de início, não podia viajar. Êle porém, „precisou“ ir. Foi levado - tal como a anguia ou a lombriga - por um impulso cego  para os desafios arbitrários de possíveis acasos.


Keyserling pensava não poder aceitar a um convite que recebera. Sentia que a viagem significava um perigo para êle; inconscientemente, sentia as consequências que teria o confronto com esse mundo tão diferente do seu. O fato de ter viajado foi um cumprimento de seu destino. Sem a América do Sul, nunca teria reconhecido e tratado adequadamente os problemas com os quais se ocupa nas suas „Meditações Sulamericanas“ e que representa uma obra central do seu pensamento dos anos posteriores à Primeira Guerra.


Como no seu caso, o homem se expõe voluntariamente aos acasos da vida. Ele toma as suas chances conscientemente. Apenas aqueles que possuem a coragem de  correr riscos cumprem aquilo que os outros vão chamar de destino necessário.


No plano da natureza, toda a vida é ligada a um roteiro de marcha. A anguia não pode cumprir o seu destino se for comida pelo caminho, e do mesmo modo nenhuma previsão de horóscopo pode impedir a ação do espírito e do senso.


Lembrando não só a Astrologia, mas também o I Ging, estudada por pensadores vinculados à Escola da Sabedoria, Keyserling salienta a dinâmica existente em cada momento, ou seja as possibilidades resultantes de uma situação determinada em cada situação, havendo tempos em que a ação surgia como aconselhável, outros que, pelo contrário, aconselham um não-agir, o ir à frente ou o esperar, o seguir um caminho ou outro.


Também aqui não se trataria de nada de metafísico. A todo o momento o homem tem a liberdade de querer o bem ou o mal. 


Felicidade e infelicidade, o tomar ou não uma chance seriam para Keyserling condicionados internamente. A alma de cada pessoa equivaleria a um órgão corporal cujas antenas podem ser comparadas na sua acuidade com aquelas da borboleta brasileira que detecta a fêmea a longa distância.


O homem atrai assim as interferências na sua vida no sentido de que o inconsciente o direciona às correspondentes intervenções. Faltando tal afinidade, não poderia haver um acaso que seja significativo para o indivíduo. 


Destino individual e de povos


Não só o indíviduo, também os povos teriam um destino. Desde que Keyserling sentiu a segurança quanto ao futuro que impregnava os argentinos e a consciência dos brasileiros de não serem portugueses, apesar de derivarem de Portugal, entendeu que em ambos os casos se tratava de destino.


Alguns povos possuem um destino imperial, outros não; alguns um continental, outro marítimo, alguns um nacional, outros apenas provincial, um são sujeitos, outros objetos da história. Assim, também os povos possuiriam uma espécie de horóscopo. Não seria um acaso, se um povo se expande ou gera povos filiais ou permanece como sistema fechado num espaço determinado. Não seria acaso para onde um povo se dirige, pois um homem, se não for nascido escravo, estabelece-se apenas onde o meio ambiente é sentido como aparentado. As migrações teriam sido sempre algo relacionado com destino. Assim, existiria uma relação de correspondência orgânica entre a Península Ibérica e a América do Sul, manifestada numa singular compatibilidade dos povos ibéricos com os indígenas.


No caso de grandes deslocamentos e mudanças radicais, os povos seriam levados a um destino que nada teria de metafísico, nada de místico nada que indicasse Divina Providência. O destino diz respeito apenas ao caminho terreno, não a um caminho de ordem espiritual.


O fator dinâmico no destino: estrategia e política


O elemento dinâmico no contexto do destino reside segundo Keyserling nas artes da estrategia e política. 

Aqui se comprovaria que no destino nada haveria de espiritual e metafísico. Estrategia e política teriam as suas raízes no impulso primário cego das escuras profundezas do homem que trata em outras reflexões. (Veja)

Os mais antigos povos já conheciam instintivamente a estrategia. Política seria impossível onde não houvesse um instinto político.

Este fato não teria nada a ver com o espírito, razão ou intelecto. Pelo contrário, diroa respeito a uma esfera primordial de vida, de trevas, cega. Keyserling lembra que são os cegos aqueles que mais facilmente encontram caminhos.

Analisando a grande política de todas as épocas, constatar-se-ia que não foram motivos do espírito que desempenharam papel principal. A política pertenceria segundo Keyserling totalmente à esfera da vida primordial das profundezas.

Com essas colocações, Keyserling expõe uma extraordinariamente negativa conceituação de políticos e homens de estrategia. Impulso cego de poder, impulso cego de possuir e impulso cego de delírio de sangue seriam motivos fisiológicos que dariam alma a políticos. Se êles faltam, ou se estiverem submetidos a motivos intelectuais, mudando o seu sentido, então a política falharia.

Objetivamente, política não conheceria nada de problemas de espaço e tempo; também não conheceria qualidades e valores. Para ela seria totalmente indiferente quais os meios que usa para chegar a seus fins, pois somente o alcance desse objetivo, o cumprimento do destino no sentido da enguia é e pode ser o seu objetivo.

De caso para caso valem diferentes valores políticos, dependentes da singularidade do destino. O império marítimo da Grã-Bretranha exigiu a manutenção a todo o custo de pontos estratégicos; um poder essencialmente continental, ao contrário, pode dispensá-los. O peso específico de cada Estado o determina em certo tempo para o seu papel. Um Estado independente fraco deve projetar-se como defensor de direito internacional e de contratos. O vencido sente necessariamente de forma outra do que o vencedor. Toda boa política interna segue esses fundamentos.

Um política, que não se movimente nessa esfera, não é mais política. Os ideólogos de todos os tempos teriam sido os principais traidores do próprio espírito como esfera de idéias, pois, desprezando as leis da terra e da ordem emocional, sempre impediram a concretização de seus ideais.

O despertar da consciência para o trágico da existência - o mal

As concepções sobre o mal expostas por Keyserling devem ser compreendidas no contexto global de suas „Meditações Sulamericanas“.

Ao primeiro despertar da luz do espírito no homem, este acorda para o fato de que a vida na terra é trágica. A ela pertence o mal.

Como todos os animais, o homem tem de morrer e corre sempre o risco de perder a vida. O morrer é o destino de todos os animais, pertence assim a uma situação existencial do homem já anterior ao despertar da luz da consciência quanto ao trágico da vida, a situação anterior na qual não podia enxergar, ou seja quando era cego.

As trevas são assim anteriores e encontram-se no ínfimo do interior do homem, em sub-mundo de escuridão nas suas entranhas. Com o primeiro despertar da luz da consciência, iluminando ainda que tênuamente as trevas, o homem adquire consciência de que o mal pertence inoxeravelmente à existência terrena.

As trevas, já pré-existentes, adquirem uma nova qualidade, pois passam a ser identificadas como tal. Representam assim um primeiro produto da situação anterior na qual se processou o surgimento da luz da consciência. Esse primeiro rebento da situação terrena de trevas é reconhecido nas suas tensões conflitantes com a luz, tal como a noite em relação ao dia, que é deste separado no decorrer do dia que cresce, mas que nunca desaparece de todo.

O reconhecimento da tragédia da vida é, assim, o reconhecimento do mal, que é mau para sempre. A solução para o homem é aceitar essas condições trágicas e sua existência terrena e procurar tirar dela o melhor partido possível.

Ou seja, colocá-la a serviço do bem na terra.

Keyserling lembra que o mal se encontra sempre presente no homem e na história, sendo trágicos o destino pessoal e o de povos. O homem não pode viver de outra forma do que à custa dos outros.

A luta pela existência é um fenômeno primordial, terreno, não espiritual.

A história está repleta de crimes e muitos dos grandes vultos da história foram criminosos. Keyserling lembra que esse significado do crime na história não tem sido considerado suficientemente. Não há povo que não tenha conseguido alcançar situação mais elevada a partir de ações más. Este foi o caso dos conquistadores de todos os tempos, também aqueles que cometeram atrocidades nos povos indígenas americanos. Este foi o caso daqueles que se adentraram pelo interior das terras à procura de ouro e pedras preciosas -os bandeirantes - e que, apesar de celebrados na história, cometeram toda a espécie de atos maus.

O viver à custa de outros, a luta pela existência, a espoliação e o „comer“

O mal, relacionado com o viver à custa de outros e à luta pela existência, manifesta-se também de forma menos evidente. Keyserling lembra que também o banqueiro, o industrial e o comerciante, se não matam diretamente, também vivem à custa de outros. Como nunca arriscam a vida como o guerreiro, agindo veladamente, seriam ainda piores do que aqueles. O agir econômico não seria espiritual, mas terreno. Ninguém fica rico sem viver à custa de outros e sem espoliar, e esse espoliar pode ser feito de forma silenciosa e imperceptível.

Da mesma forma procede aquele que se utiliza de especulações, aquele que não revela conhecimentos a respeito do desenvolvimento do mercado e da bolsa, o garimpeiro  ou mineiro que mantém segrêdo quanto ao rio ou à veia de ouro que descobriu e o cientista que silencia a respeito das descobertas de suas pesquisas. Espoliar outros que menos sabem e podem é uma expressão do mal.

O viver à custa de outros pode ser visto como um ato de comer. Um come o outro no sentido amplo do termo. Esse comer, no edifício das explanações de Keyserling, não é característica singular do mal, mas já pré-existente na „fome primordial“ da situação anterior de trevas e à qual dedica outras meditações. (Veja)

Sangue (no sentido metafórico de calor humano)( Veja) e terra determinariam segundo Keyserling as bases sobre a quais se desenvolveu a história. Possuir uma certa terra é exigência do mêdo original, que procura segurança, sobretudo através da propriedade. Aqui se enraiza a estática da história. A sua dinêmica, porém, depende do grau do conflito de sangue (como imagem), do poder e do papel da „fome primordial“. Se esta for grande, então os povos tornam-se conquistadores. Os puros povos de consquistadores foram e são sem direção.

Aventureiros e vagabundos, sonâmbulos e embriagados - impulso ao risco

Para Keyserling, o aventurar sem objetivos denota falta de condução a partir de imagens e concepções. Os grandes aventureiros da história sempre foram sem fantasia e imaginação. Aqueles que vagabundeiam no presente seriam homens vazios, nús no sentido metafórico, que o destino leva de acaso a acaso. Seriam motivados pelo horror vacui. Seriam incapazes de vivenciar algo, pois não estabelecem valores.

O aventureiro como pioneiro da história é cego, a sua cegueira pertence à vida primordial. Ele foi levado pela „fome original“, que quer se movimentar no mundo „tudo comendo“. Essa fome é ao mesmo tempo expressão primordial de um princípio espiritual que deverá tomar a posição condutora e, assim, cerne da liberdade posterior. No início da história não teria havido previsões, planos e objetivos. Reinava a cegueira da fome-primordidal no ventre materno de toda a dinâmica. Por isso, as dimensões dos aventureirismo antigo e dos fatos heróicos.

O alcance dessa liberdade enraiza-se no impulso ao risco, que no decorrer da espiritualização se torna veículo de escolha, de equilíbrio e decisão.

As proezas dos Descobrimentos foram possíveis por que a força de imagens que geram mêdo quase que não eram existentes, enquanto que a „fome original“ era sem fim.

Esses conquistadores do mundo agiram como sonâmbulos e embriagados. Foram os únicos que tiveram iniciativa, determinaram assim as grandes linhas da história.

Os outros, nos quais dominava o mêdo primordial e assim a procura de segurança através da propriedade, estes não entraram na história, e deles não partiram forças de desenvolvimento. Haveria assim, segundo Keyserling apenas uma alternativa: história de heróis ou nenhuma história. Novo início apenas houve quando houve a vontade de risco, rasgando-se assim a ordem estarrificada, dirigindo o homem ao futuro sem atentar a destruições. Esse fato explicaria a periodicidade de guerras e de revoluções.

A política e o mal - e o manuseio do mal por políticos

A partir dessas considerações é que se compreendem as palavras extremamente duras de Keyserling sobre o político.

O homem que manuseia os elementos do destino histórico não é o mais intelectualizado ou de mais espírito, mas sim o mais ligado à terra, não o de mais amplas perspectivas, mas o que mais atenta ao redor. É o homem cujo espírito mais se aproxima do proceder do corpo e sabe-se afirmar na mudança sob influências do ambiente. Assim, seria impossível intelectualizar a política, pois ela deve levar em conta a cada momento os elementos irracionais da vida. Por isso, Keyserling não via a possibilidade de moralizar a política.

Mesmo que muitos políticos fossem homens de bem, a política seria violentação, tentação, chantagem, procura de privilégios e de interesses próprios, de egoísmo.  O moderno homem de Estado, ainda que falando sempre de ideais e direitos, não teria superado os princípios de Macchiavelli, apenas disfarçando-os. Os meios feios da política externa, que de uma forma ou outra usam meios de chantagem, tentação e engano apresentam todas as caracterícas de mundo subterrâneo.

Keyserling não saberia de atividade mais ínfima do que a política. O pior era para êle o fato de ser os crimes políticos encobertos, manifestando-se apenas ocasionalmente. Péssimo seria também a sempre afirmada intenção de representar e defender o direito. Política seria sempre injusta, moralmente ruim.

Devido ao fato do mal pertencer à existência terrena na sua tragédia, não se tratava de pensar em procurar melhorar os infernos, somente de colocá-lo a serviço do espírito. Isso, porém, apenas pode ser alcançado se o espiritual não tornar-se motivo para os impulsos e anelos infernais.O que conta, portanto, são valores.

Fazer males que evitem males maiores

O homem de estrategia e de política deveria ter a força de decisão para fazer males que evitem males maiores. Este é o caso do político ou do comandante que fazem uma guerra preventiva. Este é o caso do político que precisa „liquidar“ o concorrente para que o seu partido vença. No dia-a-dia, o homem de estrategia e de política é permanentemente ocupado com o equilibrar forças econômicas e com o balançar de interesses de modo que resulte um mínimo de injustiças segundo os seus objetivos e critérios de valores.

O homem de Estado que é consciente dessa situação existencial trágica da inexorabilidade do mal na terra encarna aquele que tem a força de decisão para o mal, ainda que no sentido do cometer o menor dos males para evitar-se um mal maior, impedindo piores desenvolvimentos, como na guerra preventiva.

Assim, o homem de estrategia e política representaria o tenebroso sub-terrâneo no homem e Keyserling não teme designar o político como homem dos infernos, salientando que, para êle, seria o mais ínferior de todos os tipos humanos pela sua proximidade à terra nas trevas das profundezas.

Só o homem infernal pode jogar com o destino, uma vez que o destino é fenômeno terreno, não espiritual.

O político ou o homem de estrategia, conduzido por um intento, objetivo ou programa de idéias, procuraria dirigir os acontecimentos de tal forma que o espírito do homem adquira possibilidade de agir.

O bem através do uso do mal ou a colocação do mal a seu serviço apenas pode ser alcançado se houver uma supremacia da ordem espiritual ou não-material. É consolador constatar a possibilidade de colocar tenebrosos impulsos terrenos a serviço do espírito meditando sobre as guerras religiosas, onde a crença tornou-se condutora, com maior poder o que aqueles existenciais da sobrevivência, da luta pela existência, da „fome primordial“ e do „mêdo primordial“. Ao mesmo tempo, esse fato lembra do perigo do por o mal a serviço da religião. Essa manipulação do mal no colocá-lo a serviço de bem maior espiritual pressupõe que este não se torne sujeito a impulsos e anelos dos infernos, das trevas, do comer uns aos outros, do desejo ide ter e do mêdo original.

No processo de espiritualização, ideais espirituais podem assim assumir significado vital no organismo total da humanidade, de modo que também os infernos podem orientar-se segundo êles.

O „compadre“ e o compadrio na América do Sul


Para Keyserling, o tipo característico do sulamericano como „animal político“ é o „compadrito“. Esse termo das periferias de Buenos Aires tem a sua correspondência no termo compadre do Brasil. Keyserling salienta o significado do compadrio como apoio social na vida do gaúcho na sua pobreza orgulhosa e solitária.


O compadrito dos subúrbios de Buenos Aires, porém, teriam levado a uma forma deturpada de compadrio, compreendendo-o como elo de ligação com o sub-mundo.


O „cacique“, o caudillho, o ditador sulamericano e o mal


Nas suas explanações sobre encarnações do tipo do mal na América do Sul, Keyserling empresta particular atenção ao „cacique“, ao caudilho e ao ditador sulamericano. Lembra que todos êles caracterizam-se pelo fato de terem sangue frio.


O caudilho é impenetrável, silencioso, „mais pagé do que herói“, sempre à espera e passivo até que chegue o momento de agir rápido.  Êle nunca esquece, é vingativo, intrigante e sem sentimentos por detrás de uma aparência de cortesia. Se tiver estatura, então tem as características das grandes cobras.


O grupo que o envolve - cambada na expressão de Keyserling - é reptília da mais baixa racionalidade. Corruptos, detratores, chantagistas, aduladores, se por todo o lado existentes, Keyserling nunca tinha visto porém exemplos tão odientos como nos compadrios da América do Sul.


Devido à proximidade de suas almas ao fundo frio apresentam abertamente a expressão do ressentimento, da mentira, da traição e da possível vingança. Talvez por isso seriam porém menos perigosos do que os seus similares em situações espiritualmente mais desenvolvidas. Sentindo-se em casa no seu mundo, não tinham consciência pesada em ser odientos.


O mêdo original viveria na América do Sul tão na superfície que os caudilhos partiam de imediato para enfrentar um perigo quando se sentiam instigados.


Keyserling salienta que os compadritos eram receptivos para a compreensão e pelo bom tratamento, como „lagartos ao calor do sol“. Aceitando-os como são, jamais confiando na existência de motivos morais nesses homens, poder-se-ia experimentar alegria no seu convívio. Esse sub-mundo dos compadritos é mau no sentido de ser mau em mundo de anfíbios, de sapos e rãs.

Continuidade das reflexões sobre o mal nos estudos euro-brasileiros

Desde o início do programa de estudos euro-brasileiros na Alemanha, em 1974/75, as meditações de Keyserling passaram a ser alvo de reflexões diferenciadoras e, entre elas, aquelas referentes ao mal.

Deu-se, prosseguimento, aqui, a preocupações já existentes no âmbito de estudos de práticas de culto no Brasil, tratadas entre outros em pesquisas de campo, no ensino e em trabalhos de orientandos no contexto de formação de professores.

As explanações de Keyserling possibilitaram sob diferentes aspectos o entendimento de sentidos da linguagem visual e de práticas relacionadas com Exú na umbanda e no candomblé: o fato de aparecer em primeiro lugar em sessões, no fato de ser „despachado“, no seu local fora do recinto, a prática de oferendas em encruzilhadas e muitos outros aspectos.

O próprio Keyserling indica na sua obra os caminhos para o aprofundamento dos estudos e que são estreitamente relacionados entre si: o da tradição filosófico-natural, o da antiga mitologia e o do relato bíblico da Gênese, uma vez que considera a América do Sul como „continente do terceiro dia da Criação“.

Os estudos foram assim desenvolvidos no âmbito da filosofia, dos estudos da Antiguidade/Cristianismo e da teologia e religião. Sob o ponto de vista filosófico-natural, considerado nas suas relações com o ano natural, as explanações de Keyserling dizem respeito ao elemento terra no seu estado mais baixo, aquele que corresponde ao signo de capricórnio do Zodíaco e, de forma deslocada, ao mês de dezembro no ano, o período de mais escuras noites no hemisfério norte, no qual, porém, dá-se o solstício.

Essas correspondências permitem o reconhecimento de aspectos da linguagem visual tradicional, como atributos tais como chifres e pés de bode. As referências à Astrologia em Keyserling indicam que, quando fala na „fome original“ que o conduz, refere-se a Saturno/Kronos como regente do tipo humano, aquele que, segundo a narrativa mitológica, comia até mesmo os próprios filhos.

Relacionando-se assim com a tradição mitológica, considerou-se, nos estudos das relações Antiguidade/Cristianismo, as concepções de Hades - o filho de Zeus e senhor dos infernos -  e Dionísio. 

O complexo dessas relações com Dionísio - aparentemente de difícil compreensão devido a interpretações inadequadas na literatura e mesmo na filosofia do seculo XIX -  foram objeto de estudos mitológicos em diferentes centros e eventos, sendo considerado , entre outras ocasiões, em sessão comemorativa dos 25 anos do instituto  de estudos etnomusicológicos da organização pontificia de música sacra em Maria Laach, em 2002.

Nessa ocasião, tratou-se da atualidade da consideração do mal nas diferenças de aproximação a partir de uma leitura a partir do Criador ou da Criatura nas suas consequências para a ciência. Lembrou-se, aqui, que a manipulação do mal para fins de bem maior também pode ser registrada na própria Igreja, como comprovável na sua história. Coloca-se assim a exigência absoluta de um cuidado muito grande na determinação desse bem maior para o qual se manuseia o mal. Uma reconsideração e mesmo revisão atenta desses valores surge como constante tarefa, particularmente premente na atualidade.

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ Nas encruzilhadas da vida - interferências no destino. O manuseio do mal na estrategia e na política: compadres, caciques, caudilhos, ditadores, bandoleiros“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/11  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Encruzilhadas_da_vida.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)




 













Fotos A.A.Bispo, 2015 ©Arquivo A.B.E.