"Ah! As ninfas cantam!"
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 160
Correspondência Euro-Brasileira©
"Ah! As ninfas cantam!"
ed. A.A.Bispo
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BRASIL-EUROPA 160
Correspondência Euro-Brasileira©
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N° 160/10 (2016:2)
"Ah! As ninfas cantam!"
Focas e ninfas do Golfo de Nápoles e sereias de Santos
na formação das jovens paulistas
no exemplo de La Ninfa
Aproximações ao edifício de imagens condutoras do canto coral feminino
a partir de obras de João Gomes de Araújo (1846-1943) (I)
Pelos 150 anos de nascimento do Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)
Nos recentes trabalhos euro-brasileiros realizados em Nápoles, voltou ao centro das atenções uma imagem que vem marcando os estudos de sistemas de imagens das últimas décadas nas suas relações com a Antiguidade e com os diferentes contextos culturais. A Grotta Azzurra de Capri é um dos locais que mais revelam o significado da imagem da ninfa para o Golfo, uma imagem que se encontra nos antigos escritos e na tradição popular. À época romana, essa gruta era conhecida como ninfeo marinho, tendo sido ladeada por figuras de seres do mar.
A atenção supra-regional a essa gruta e pelas imagens com ela relacionadas foi despertada no século XIX, quando um pescador caprese levou a que pintores e escritores alemães a divulgassem, em particular August Kopish (1799-1853) e Ernst Fries (1801-1833).
Recordou-se, nessa ocasião, o significado da imagem da ninfa do mar ou da sereia para o mundo Mediterrâneo no qual se inseriu o antigo Reino de Nápoles e Duas Sicílias nos seus elos com a Península Ibérica. Veio à consciência, também, que a atenção internacional da imagem no século do Romantismo processou-se em época na qual se intensificaram os elos entre Nápoles e o Brasil, país cuja segunda imperatriz foi napolitana: Dona Teresa Cristina (1822-1889).
Os elos entre Nápoles e o Brasil não se restringem a vínculos históricos, a recepções de obras e estilos, nem à comparação entre o seu decantado Golfo e a Baía da Guanabara, o que pode ser registrado na história cultural do Brasil do século XIX.
Esses elos são muito mais profundos, pois através sobretudo da imagem da ninfa ou da sereia estabelecem-se relações de fundamentos culturais com a remota Antiguidade e com o Humanismo renascentista. O fascínio exercido pelo Golfo de Nápoles no século do Romantismo não foi apenas devido à paisagem, mas ao redescobrimento de antigos sentidos por detrás do visual e registrado na antiga literatura. Toda a terra surgiu como plena de restos da Antiguidade, da vida na natureza e da vida doméstica e particular, motivando redescobrimentos literários e estudos arqueológicos.
Atualidade dos estudos relativos à antiga imagem da ninfa do Golfo de Nápoles
Entre os estudos mais recentes discutidos, salientaram-se aqueles que tratam de significados musicais dessa imagem fundamental para a cultura e as tradições napolitanas e brasileiras. Sobretudo um estudo sobre o canto da noite de Proteus na Punta della Campanella do Golfo de Nápoles em coletânea dedicada a Jacopo Sannazaro (1458-1530) abriu perspectivas para análises referenciadas segundo o Brasil. (Bernhard Coppel, "Der Golf von Neapel: Proteus'Nacht lied an der Punta della Campanella (Ecl.4)", in E. Schäfer, ed., Sannazaro und die Augusteische Dichtung, Tübingen: Günter Narr, 2006, 87-100).
Este texto revela-se como de particular relevância para o estudo de uma cultura do mar ou de pescadores, das eclogae piscatoriae ou da musa litoranea de Sannazaro na sua Arcadia. O autor analisa a narrativa segundo a qual dois pescadores, que retornavam de Capri à península sorrentina terem ouvido a voz de Proteus dos rochedos chamados saxa Minerva. Eram sons de um outro mundo, sons de imortais. O local onde a ouviram foi a Punta della Campanella, rochedo da parte sul do Golfo também conhecido como o abridor de portas. O que Proteus entoava era um canto divinal: divinum carmen. A seu redor, um grupo de focas se deliciavam com o seu canto na escuridão da noite que caía e que era envolta em magia pelos sons. O surgir da lua, iluminando com a sua luz, faz com que esses seres se retirem. O autor analisa aqui as ressonâncias da Georgica de Virgilio: falando de vitreae sedes como moradia das ninfas, utiliza uma imagem similar àquela das vitrea sedilia virgiliana e, com isso, o tom verde do atributo vitreus. Essa tonalidade verde envolve toda a cena, sentando-se as ninfas que voltam da humidade dos mares em sala verde com cadeiras verdes.
Uma das questões que sempre se levanta diz respeito ao papel das focas ou similares seres marinhos nessa narrativa. Teria essa tradição mitológica um fundamento natural derivado de sons imitidos por focas? Seria esse cantar das focas resultado do encantamento da noite sob a voz de Proteus que decantava do passado, de mitos e de lendas? Corresponderia o retirar das ninfas àquele das focas ao verde da vegetação das rochas e costas? Teriam motivado as focas que cantam a imagem da ninfa que canta? Representariam assim as ninfas do mar focas na linguagem poética da narrativa mitológica?
Significado da imagem para os estudos da mulher na psicologia cultural
Essas reflexões ganharam especial relevância pelo fato de ter-se tratado recentemente de imagens de remota proveniência relativas à mulher e ao feminino na cultura em estudos filosóficos e psicológicos culturais da primeira metade do século XX no exemplo das "Meditações Sulamericanas" do filósofo e demopsicológo Hermann Keyserling (1880-1946). (Veja)
Não houve pensador que mais se dedicasse - ainda que de forma questionável - ao papel condutor de personalidades e grupos femininos da vida cultural e social do Novo Mundo e que salientasse até mesmo um cunho marcadamente feminino na cultura de países como a Argentina e o Brasil. Sobretudo o Brasil, com o soberania da "delicadeza", seria um país marcado na sua psique por qualidades conotadas como femininas da emoção e da "gana". (Veja) Nessas suas considerações, Keyserling utiliza-se de linguagem visual de remota proveniência, fundamentadas no relato bíblico da Gênese em relações com concepções do mundo natural da Antiguidade.
Um papel central desempenha nessa linguagem visual o da terra que se levanta das águas no terceiro dia da Criação e que nessa tensão entre o sêco e o húmido, possibilitada por um fogo interno que possibilita a ascensão, corresponde à figura da mulher que tem a parte superior do corpo de extraordinária beleza e a inferior aquática repugnante no seu escorregadio anfíbio. (Veja)
A recente reconsideração das reflexões desse psicólogo cultural que visitou o Brasil nos anos 20 e cujas observações se relacionam assim com o período posterior à Primeira Guerra, faz com que se levante a questão dos pressupostos da situação social e cultural que teria constatado.
A formação feminina à época de transformações econômico-sociais da República
A atenção dirige-se aqui à época anterior à Primeira Guerra e que, no caso de São Paulo, foi aquela de anos marcados por grandes transformações sociais e políticas determinadas pela ascensão de famílias enriquecidas com a agricultura cafeeira e com a República, ávidas de nobilitação através da cultura e do cultivo da distinção segundo modêlos europeus.
Se as filhas de famílias de posses tinham sido nas fazendas educadas sobretudo no interior do lar, dedicando-se á música, à ilustração literária e a prendas domésticas, a transferência dessas famílias para cidades em expansão e cosmopolitas, como São Paulo, implicou em consideráveis transformações.
Recebendo formação em colégios femininos, em geral conduzidos por ordens religiosas européias cuja ação fora possibilitada pela República, o ensino e as atividades culturais e artísticas de grupo adquiriram maior significado. Se a música sempre desempenhara um papel relevante na formação das jovens, agora a música na vida institucional, as apresentações em conjunto, em recitais de piano ou de canto, e sobretudo o canto coral passaram a ser principais atividades.
É no processo social assim esboçado que se compreende a predominância quase que absoluta do elemento feminino no corpo discente - não no docente - de uma instituição como o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
A predominância feminina no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo
Embora partindo de uma concepção que relacionava estreitamente o dramático ao musical, a sua seção de música distinguia-se pela supremacia quase que absoluta de alunas, em geral de piano ou de canto. Observando-se o rol dos cantores formados por João Gomes de Araújo(1846-1943), constata-se a predominância de mulheres.
Excetuando-se nomes como Mário e Andrade, Antonio Amorosino e Felix Bocchini, o professor e compositor paulista de formação italiana foi mentor sobretudo de cantoras, tais como Alice Fischer, Branca Guiliodori, Angelina Tavolari, Maria Gomes de Castro, Hercília Suplicy Vieira, Josefina Bugiani Fassi, Célia Marcondes Resende, Maria o Carmo Figueiredo, Rosita Wamberg, Maria Lacaz Machado, Hercília Cuba de Souza, Maria Encarnação Bernils, Palmyra Beré, Lucilda Gullo, Maria Amélia d'Almeida d'Eça e outras. ( Estephania Gomes de Araújo, João Gomes de Araújo, sua vida e suas obras, São Paulo, 1946, pág.77) Algumas, como Hermínia Russo, foram grandes multiplicadoras, formando cantores que marcaram a vida musical paulista por décadas. A formação obtida no Conservatório marcou assim concepções e práticas através de décadas, e estas estavam estreitamente ligadas com imagens da mulher e do papel que deveriam exercer na sociedade.
A predominância do elemento feminino no corpo dos discípulos do Conservatório - explicada sobretudo pelos processos sócio-econômicos -, assim como as concepções relativas à mulher e a seu papel na formação de novas gerações motivaram e exigiram que compositores como João Gomes de Araújo criassem obras para canto feminino.
Essa necessidade manifestou-se sobretudo na aula de canto coral, também dirigida por João Gomes de Araújo, fato explicável pelo reduzido número de obras para coro de vozes femininas então disponíveis.
A prática de canto coral era, porém, de fundamental significado para uma instituição que se guiava pelas relações íntimas entre o dramático e o musical segundo conhecimentos do papel do côro no antigo drama, na tragédia e na comédia. (Veja)
Se nas igrejas à época da reforma sacro-musical, cujo marco foi o Motu Proprio de Pio X, de 1903, passara cada vez mais a valer a norma paulina de que "nas igrejas as mulheres silenciam", a prática coral do Conservatório passou a representar um substituto não-religioso do canto em conjunto feminino. Quase que surpreendentemente lembrava que que não só homens, mas também mulheres cantam, e essa surprêsa equivalia à surprêsa de que também ninfas cantam!
O significado do côro em instituição que vinculava o dramático ao musical
O côro feminino do Conservatório - somente em casos excepcionais com algumas vozes masculinas -, adquire particular relevância na pesquisa do canto coral no Brasil, sobretudo quanto às inserções dessa prática em contextos e processos culturais.
O côro representava ao mesmo tempo a principal área de formação coletiva das alunas e de representação pública do Conservatório. É significativo que já poucos meses após a sua fundação o côro tenha-se apresentado como exemplo dos rápidos sucessos do ensino e da vida da instituição.
Para isso, tanto a formação individual e socialização das jovens como a apresentação do conjunto deveria ser coerentemente expressão das concepções condutoras do estabelecimento, que, segundo a orientação de seu iniciador e da sua principal personalidade - Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932) - fundamentava-se no papel do côro na história do antigo drama.
Essa orientação correspondia também à convicção da necessidade de revitalização desses estreitos elos vistos como fundamentais do dramático e o musical, e cuja maior expressão seria o drama lírico.
Tal embasamento filosófico e histórico da vida e do ensino do Conservatório, que necessariamente devia manifestar-se na sua representação, exigia repertórios adequados. Os textos conhecidos de obras então compostas revelam concepções derivadas do estudo de literatura da Antiguidade, da mitologia, não só helênica, assim como do estudo das tradições. Justamente essas áreas dos estudos clássicos, mitológicos e das tradições populares despertavam desde a segunda metade do século XIX extraordinário interesse na Europa.
Se o alcance de obras corais para vozes femininas já não era fácil, mais difícil ainda era o de encontrar composições que correspondessem aos intuitos formativos das educandas - não apenas aqueles especificamente musicais de técnica vocal, afinação ou interpretação em grupo - assim como à representação pública da instituição.
As composições criadas para esse côro por João Gomes de Araújo merecem assim particular atenção, pois permitem, pelos temas poéticos tratados e pela sua elaboração musical, não só conclusões relativas ao nível musical do ensino, como também das concepções e imagens que o conduziam. Apesar da diversidade de assuntos e meios de expressão pode-se constatar uma coerência quanto ao edifício cultural em que se inseriam.
"La Ninfa" de João Gomes de Araújo e as ninfas do Conservatório
A imagem da ninfa no título e no assunto tratado poéticamente e que determina a elaboração musical surge como especialmente significativa por corresponder à idade da maior parte das discípulas do Conservatório. Elas se encontravam em geral em fase pubertária de debutantes na sociedade ou eram nubentes, preparando-se para o casamento; eram, no sentido do termo ninfa, noivas ou aptas a sê-lo.
Estas jovens filhas de destacadas famílias paulistas encontravam-se em idade casadoura, preparavam-se também atráves do ensino musical recebido no Conservatório para desempenhar as suas tarefas de noivas, esposas, senhoras do lar, mães de família e formadoras de filhos.
Com o interesse pela cultura antiga e pela mitologia dos principais responsáveis pelo Conservatório, as concepções relativas a esses seres da natureza na Antiguidade eram conhecidas, sobretudo tmbém porque a presença de musas e ninfas eram comuns na pintura e na decoração de teatros da época.
A imagem da ninfa era também conhecida da tradição popular brasileira, em particular por aqueles que provinham de regiões marcadas pela natureza, sobretudo por águas. Entre as personalidades condutoras do Conservatório que possuiam mais estreitos contatos com essas imagens da tradição popular encontravam-se o compositor e, sobretudo, aquele ao qual dedicou a sua obra, o senador Antonio de Lacerda Franco (1853-1936), diretor do Conservatório.
As sereias de Santos e as ninfas do Conservatório
A dedicação de "La Ninfa" a Antonio de Lacerda Franco merece ser considerada com particular atenção, uma vez que pode abrir perspectivas para a explicação do tema e para o significado da figura da ninfa como imagem condutora na formação das educandas.
Antonio de Lacerda Franco pertencia ao grupo de personalidades influentes do Partido Republicano Paulista que desde o início apoiara a fundação do estabelecimento, acompanhando o seu desenvolvimento. Era membro da Comissão Permanente do PRP em São Paulo. Em 1892, foi eleito senador estadual, fazendo parte da comissão as Finanças.
Como personalidade de grandes conhecimentos e influência, a presença de Antonio de Lacerda Franco na diretoria do Conservatório surgia como importante para o seu renome e alcance de recursos e privilégios. Era personalidade enérgica, envolvido nas finanças como presidente do Banco União em 1904 e homem empreendedor em empresas e projetos industriais, fundando a fábrica de tecidos Votorantim em Sorocaba e desempenhando, entre outros,um papel na fundação da Companhia Telefônica e na diretoria da Companhia Paulista de Estradas de Ferro.
Os seus interesses comerciais, econômicos, assim como de ensino, levaram-no a cooperar na fundação não só do Conservatório como também da Escola de Comércio Alvares Penteado, fato também compreensível pelo fato de uma de suas irmãs - Ana Lacerda - ser casada com o conde Álvares Penteado. A sua atuação na imprensa, em particular no Correio Paulistano, surgia como garantia para uma apresentação positiva do Conservatório junto à população.
Embora nascido no interior - em Itatiba -, de família altamente influente de cafeiculturores em Araras, cidade fundada pelo seu pai - Antonio de Lacerda Franco era estreitamente vinculado com Santos, profundo conhecedor da cidade e mesmo identificado com a cultura santista. Essas relações baseavam-se nos elos de interesses econômicos familiares da exportação do café plantado nas terras de Araras, o que levou-o à fundação da Casa Comissária e Exportadora J. F. Lacerda & Cia..
Antonio de Lacerda Franco ora desde o início figura líder dos republicanos santistas, tendo fundado o partido republicano da cidade. A sua posição influente nos círculos do comércio de exportação de Santos levou-o á presidência da Associação Comercial de Santos já em 1887/88. Com a proclamação da República, foi aclamado como primeiro nome para formar uma junta governativa para o município santista.
Antonio de Lacerda Franco, nos seus elos com o interior cafeeiro e com a exportação do produto pelo porto de Santos surge como vulto que representa exemplarmente os dois polos de um processo econômico que garantiu e levou ao extraordinário crescimento da cidade de São Paulo. A cidade que se tornava metrópole cosmopolita inseria-se nesse campo de tensões entre o interior e o litoral, de agricultures e de pescadores, ou seja, em contexto que lembra antigas distinções entre uma cultura dos campos, da terra, e do mar ou das águas.
Muitas das discípulas do Conservatório vinham de famílias enriquecidas pelo café no interior e pela sua exportação pelo porto de Santos e que se transferiram à capital.
Também o compositor João Gomes de Araújo provinha de família marcada pelo comércio do café, ainda que em outro geográfico contexto de fase anterior da expansão cafeeira, o do Vale do Paraíba nos seus elos com casas exportadoras do Rio de Janeiro. A mudança do compositor para São Paulo fizera com que se inserisse no novo contexto geo-econômico da plantação e do comércio de café: o do eixo interior - porto de Santos.
As relações entre Antonio de Lacerda Franco e João Gomes de Araújo parecem poder explicar-se também pela religiosidade mariana de ambos, evidenciada no empenho em organizações católicas. Lacerda Franco foi durante anos provedor da Santa Casa de Misericórdia e João Gomes de Araújo destacou-se pelas suas participações em festas marianas e na construção de vários templos paulistas, entre outros, o de Nossa Senhora da Conceição de Santa Ifigênia e o de Nossa Senhora da Consolação, sem falar na devoção do compositor por Nossa Senhora da Conceição de Aparecida.
Os estreitos elos de Lacerda Franco com a sociedade e a cultura santista, determinada pela vida portuária e de homens do mar, não poderiam deixar de ser marcados pela imagem da sereia, sempre presente na vida da cidade. Também João Gomes de Araújo conhecia essa imagem, ainda que na forma de ninfa de águas doces do Paraíba de sua terra natal. O texto que colocou em música para homenagear Lacerda Franco, porém, não diz respeito a essas ninfas de águas doces, mas sim a de seres femininos do mar.
"La Ninfa" cantada em italiano pelas alunas e a tradição napolitana
A obra oferecida por João Gomes de Araújo a Lacerda Franco, se corresponde à imagem da sereia conhecida pelo homenageado devido a seu conhecimento e mesmo identificação com a cultura santista, não fala de sereia, mas de ninfa, tendo sido escrita com texto em italiano.
Não há indicação de autor, o que surge como uma exceção na obra de João Gomes de Araújo, sempre tão correto em registrar os poetas dos textos que tratou musicalmente. Tudo indica, assim, que conhecia o texto anônimo da Itália, tendo dele tomado conhecimento no decorrer de seus estudos da cultura e das tradições populares italianas.
Para escrever a sua obra Maria Petrowna, em 1903/4, cujo enrêdo decorre em parte em Nápoles, o compositor dedicara-se ao estudo aprofundado da música e da cultura popular napolitana. Esses estudos evidenciam-se no fato de ter escrito uma Tarantela de grande efeito para a abertura da sua obra, que se passa no golfo napolitano. Nesses estudos, o compositor não poderia ter deixado de confrontar-se com a imagem da ninfa, tão característica da cultura do golfo e suas ilhas. A própria fundação de Nápoles é vista como remontante à ninfa e sereia Partenope, cujo nome é lembrado na própria designação do golfo. Essa ninfa - ou ninfas em geral - surgem até mesmo como mães dos heróis locais. As mais conhecidas eram as Nereidas ou Oceanidas, ninfas das águas salgadas que habitavam cavernas húmidas: as grutas de ninfas tão conhecidas das ilhas do Golfo.
A ninfa como imagem prototipo da mulher e do mundo feminino era difundida na literatura italiana no século XIX estudada por João Gomes de Araújo ao aprofundar-se na cultura e das tradições napolitanas. Ainda que encontrada em escritos da Antiguidade, a partir de Homero, a imagem desenvolvera-se no decorrer do século a partir de estudos da história da arte e de sua vitalidade na tradição popular.
Se o termo sereia podia ter conotações negativas - seria inconveniente apresentar as discípulas do Conservatório como sendo sereias - o conceito de ninfa no sentido conhecido da Itália de imagem-modêlo do feminino despertava antes associações positivas.
Como imagens relacionadas com o nascimento e com a formação de heróis, colocados sob a sua égide, representavam uma espécie de iniciadoras de personalidades plenas de heroismo cívico. Esses seres da natureza possibilitavam que os homens, não mais se formando apenas no âmbito restrito familiar, fossem criados para desempenhar funções heróico-altruístas na sociedade. Tais interpretações aguçam a sensibilidade para a compreensão do papel que se esperava das discípulas do Conservatório - o da contribuição à formação de uma nova geração de homens imbuídos de civismo. A educação dessas ninfas do Conservatório visava, assim, por último, a formação de homens valorosos no sentido do PRP.
A noite, a lua, o prateado das espumas das ondas e os suspiros das ninfas
Si culla sul l'onda la Ninfa del mar se la luna disgombra ogni vel e spume argentine vorrebe slanciar, flutuando ver l'astro del cielo. Alle volte stellate salir l'onda vuol e prorompe in sospir e prorompe in sospir La ninfa cantò, si cant`La ninfa cant`, si cantò. Della mesta canzon sulla spiaggia e che gia van i suon sulla spiaggia e cheggiavani suon ah...ah... La Ninfa cantó, si cantò, la Ninfa cantò, ah si cantò...ah si cantò,...Ninfa cantó, ah si cantò. Nell'onde que muor del crepuscolo il vivo baglior; Il pesce dorato a eserciti va a cercar di cristal le città, ed iivi d'are na su molle cuscin, al lombra del giunco, del giunco marin, riposa, l'invidia del l'onde a savir. Un bel cavalier d'oltre mar, d'oltre mar, un bel cavalier d'oltre mar, d'oltre mar ah si. La Ninfa cantava/La Ninfa catava si, cantava, cantava, cantava, cantava.
A ninfa como imagem-modêlo empregada por João Gomes de Araújo para as alunas do Conservatório não surge como isolada, mas inserida em um amplo quadro natural de múltiplas associações.
Trata-se fundamentalmente de um cenário noturno aquele pintado pelo texto. O interesse pela noite caracterizou outras obras do compositor criadas para o côro feminino da instituição. Elas se relacionaram com o estudo de tradições indígenas, como evidenciado em obra oferecida ao iniciador do Conservatório, Dr. Pedro Gomes Cardim. (Veja) Também nas tradições relativas à contagem do tempo, o astro referencial da noite é a lua, que dá lugar, no despontar da manhã, ao canto dos pássaros. (Veja) A luminosidade lunar também caracteriza o cenário onde as ninfas se movimentam ondulantemente sobre as ondas do mar, e que tem a sua correspondência na espuma prateada das suas cristas. Esse anelo em direção ao astro é comparado com um suspirar das ninfas. É esse movimento de alma suspirante que faz com que as ninfas cantem.
O cantar das ninfas, sugerido como um irromper de suas almas suspirantes, é salientado através de repetições e interjeições que exprimem admiração: Ah!. Assumindo o papel das decantadas ninfas, são as jovens do côro do Conservatório que surgem como expressão de almas suspirantes de seres flutuantes nas vagas. O objeto de seus suspiros é apenas sugerido no fim da composição: o belo cavaleiro do ultramar e que é o que faz a ninfa cantar.
A noite, a luz da lua, as ondas, o cristal, o verde do junco cantados na composição correspondem a antigas narrativas da tradição napolitana remontantes à antiga literatura. O texto colocado em música por João Gomes de Araújo revela-se como inserido nessa tradição, o que permite fundamentar interpretações e tirar conclusões mais amplas.
O tratamento musical de La Ninfa e o canto da foca
O tratamento musical do texto evidencia o intento do compositor em transmitir o cenário de leveza flutuante das ninfas pairando sobre ondas do mar no cair da noite. Em 6/8, em pianíssimo e piano, as figurações descendentes em terça preparam a entrada do côro. Também este carateriza-se por uma melódica em terças ou em falso-bordão que lembra tradições do canto popular.
João Gomes de Araújo utiliza-se de ponto de órgão, baixo ostinato e notas pedais para sugerir a atmosfera antes estática como base das ondulações. O côro toma a si uma função que seria a de Proteus da antiga narrativa, a do canto divino que descreve o cenário e a ninfa do mar sobre as ondas no prateado de suas espumas e que, assim, prepara o enrêdo.
Essa atmosfera ao mesmo tempo estática e ondulante criada pelo baixo repetitivo é interrompida nas exclamações de "La ninfa cantò", pronunciadas alternadamente pela primeira e pela segunda voz.
O tratamento harmônico surge aqui refinado, com encadeamentos inesperados e modulações. O trecho em que o canto da ninfa não é só comentado, mas no qual a própria ninfa entoa com um Ah! o seu suspiro, é tratado com sons agudos sustentados e acompanhados pela melódica de terças anterior da exclamação "La Ninfa cantò". O Ah! agudo corresponde, na antiga narrativa, ao som agudo imitido pela foca acaricida pelo canto divino imitido por Proteus.
Desse Ah! agudo desenvolve-se então o canto propriamente dito da ninfa em arcos melódicos amplos, e que levam à menção do objeto de seus anelos suspirantes: "un bel cavalier d'oltre-mar".Tem-se, assim, na elaboração musical do texto, uma complexa relação entre o som da foca da antiga narrativa e a ninfa que passa a cantar e, assim, a uma difícil distinção entre o animal e o ser mitológico. Impõe-se a impressão de que aqui se trata de uma espécie de metamorfose da foca em ninfa que passa a suspirar e por fim a cantar. Dramáticamente, o término da composição expõe pelo côro que a a ninfa passara a cantar, que a ninfa cantava, sendo a êle sobreposto o Ah! agudo da ninfa - ou da foca...
O compositor veio, nessa sua criação, mais uma vez, de encontro às concepções fundamentais que orientavam o Conservatório Dramático e Musical e que partiam de uma estreita relação entre o côro e o drama justificada por estudos quanto às origens do teatro e do papel nele exercido pela música na Antiguidade.
O tratamento musical profundamente refletido do texto indica o significado da imagem da ninfa - e da metamorfose que nela se processa - no edificio de imagens e idéias condutoras das principais personalidades da instituição tão ligada ao Partido Republicano Paulista.
Tendo sobretudo jovens mulheres como alunas, o Conservatório co-participava nessa metamorfose e via mesmo como sua função o de proporcionar essa transformação de "foca a ninfa", preparando as suas discípulas a cantar como noivas e para a vida de esposas e mães de homens valorosos, imbuidos de ideais do PRP.
A problemática da tradução de La Ninfa para o português
Durante e após a Primeira Guerra Mundial, premido pela necessidade de nacionalização de repertórios, procurou-se traduzir La Ninfa para o português. Em partitura usada pela filha do compositor - Estephania Gomes de Araújo - pode-se analisar as tentativas de traduzir o texto italiano, marcas a lápis e com tinta vermelha.
Cantada em português, porém, a obra deixa de revelar os seus íntimos elos com a tradição italiana, em particular napolitana e, assim, a sua inserção em complexos processos culturais de antiga proveniência e de grande relevância para os estudos de edifícios de imagens.
Desenvolvimento dos estudos
A imagem da mulher aquática, que tem a parte inferior do corpo em forma de peixe ou anfíbia ou que se levanta das águas, em geral em forma da sereia, foi senpre de fundamental significado nos estudos brasileiros. Ela foi si tratada sobretudo a partir de expressões tradicionais de cultos onde é associada como a mãe d'água, rainha do mar, Yemanjá ou, no caso de rios ou de fontes de água doce, com Oxum.
Em geral, as explicações dessa linguagem visual - como em outros casos dos estudos respectivos - são altamente deficientes - pois parte-se da hipótese de que aqui se tem sobrevivências de cultos que seriam originalmente africanos e sincretizados com imagens da cultura européia por motivos circunstanciais ou como camuflagem de africanos para que pudessem continuar a exercer as suas práticas de forma velada no ambiente católico de seus senhores.
Já a associação dessas imagens a Maria, porém, indica que as relações são muitos mais profundas e coerentes, não produtos circunstanciais e arbitrários de sincretismo, mas inerentes a um edifício complexo de concepções e imagens de antiga proveniência e vigente no Catolicismo que marcou a formação cultural do Brasil no período colonial.
Compreende-se, assim, que a imagem da mulher aquática tenha preocupado em particular pesquisadores à época de reflexões voltadas à renovação de estudos culturais em meados dos anos 60.
Tanto a sereia de tradição européia - conhecida e estudada por etnógrafos portugueses - como as imagens e práticas da Umbanda e do Candomblé estiveram no centro das atenções de cursos e trabalhos de pesquisa. Com a introdução da Etnomusicologia nos estudos de Licenciatura em Música e Educação Artística, em São Paulo, a imagem foi tratada nas suas relações com a música. Foi considerada em trabalhos de campo de alunos da área, entre êles por Irvany Bedaque Frias, membro da Sociedade Brasileira de Educação Musical.
O tratamento do tema deu-se assim sobretudo a partir de perspectivas empíricas do Folclore e da Etnologia. Logo constatou-se, porém, a existência de obras de compositores eruditos relacionadas com a imagem. A mais antiga e conhecida dessas obras era de autoria de um dos mais renomados representantes do ensino musical de São Paulo, João Gomes de Araújo.
Os trabalhos relativos à imagem tiveram continuidade na Europa a partir de 1974/75. Partindo-se de estudos etnográficos anteriores, em particular de países como Portugal e a Itália, procedeu-se a estudos mais aprofundados da antiga mitologia em trabalhos desenvolvidos em centros de estudos da Antiguidade, em particular no Museu Romano-Germânico de Colonia.
A imagem foi considerada em viagens de pesquisas realizadas por ocasião de festas em praias brasileiras, no litoral paulista, no Rio de Janeiro e na Bahia em 1980 e que serviu de preparação ao Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", realizado em São Paulo, em 1981.
A imagem desempenhou papel de central importância em estudos do antigo Gnosticismo nas suas relações com tradições vivas e que tiveram a sua expressão nos trabalhos voltados aos fundamentos da cultura cristã transmitida ao mundo extra-europeu durante as viagens dos Descobrimentos e no decorrer da história colonial. A imagem da sereia e similares foram tratadas em diferentes contextos, salientando-se aqui o da antiga Índia Portuguesa, em particular de Goa. (Veja)
Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.)."Ah! As ninfas cantam!" Focas e ninfas do Golfo de Nápoles e sereias de Santos
na formação das jovens paulistas no exemplo de La Ninfa“.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/10 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/La_Ninfa.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
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Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)
Capri. Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.