Interações ítalo-austríacas de entre-Guerras

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 162

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 162/17 (2016:4)



Interações ítalo-austríaco/alemãs na música de câmara
de entre-Guerras no Brasil

A primeira audição 
do
Quarteto de Carlos Gomes (1836-1896) em 1929
sob o signo de Leone Sinigaglia (1868-1944), da
Società del quartetto di Milano
e dos 140 anos da morte de W. A. Mozart (1756-1791)


Estudos euro-brasileiros em Bozen/Bolzano

 
Bolzano. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

Nas reflexões conduzidas na Villa Gomes em Maggianico/Lecco relatadas no número anterior desta revista, emprestou-se especial atenção ao Quarteto de Carlos Gomes. Considerou-se a gravação realizada na Universidade de Campinas, os singulares comentários nela publicados e, com base em partitura enviada a Milão, as relações entre aquela cidade e a Itália por ocasião do "Ano Carlos Gomes" de 1986. A partir de partes manuscritas mais antigas, procurou-se identificar o copista dos anos de 1920/1930, refletindo-se sobre a história e as circunstâncias do redescobrimento e execução da obra nessa época. (Veja)


O Quarteto, em particular a sua última parte, O burrico de pau, é uma das obras de Carlos Gomes que sempre são apresentadas como revelações. A síndrome de pioneirismo relativamente à vida e obra de Carlos Gomes, que aqui tem mais um exemplo, explica-se apenas pela insuficiente consideração de fatos históricos. Trazê-los à consciência surge assim como uma necessidade para os estudos especializados, pois somente o seu conhecimento pode impedir constantes repetições e falsas suposições.


O Quarteto merece especial atenção nos estudos músico culturais, uma vez que representa, como obra instrumental camerística, uma singularidade na obra de um dos maiores vultos da história da música do Brasil e que foi sobretudo compositor de óperas e de música vocal de câmara. A obra surge como significativa no contexto da história da música de câmara do Brasil, tanto aquela da época em que foi criada - como um dos poucos exemplos do gênero na produção musical de brasileiros -  como em décadas posteriores, quando a prática camerística passou a ser mais cultivada, sobretudo em círculos da imigração européia no Brasil. Foi nessa fase que a obra foi "descoberta".


Esses dois contextos históricos devem ser considerados não apenas relativamente ao Brasil, mas sim também à Itália e às relações ítalo-brasileiras. O olhar deve ser dirigido à história da música instrumental de câmara no país por excelência da arte lírica e que foi aquele no qual Carlos Gomes criou as suas principais obras, e àquele de décadas posteriores, em particular na modificada situação política da região alpina de fronteira entre a Áustria e a Itália após a Primeira Guerra Mundial.


Esses dois contextos italianos, compreendidos na dinâmica processual de desenvolvimentos políticos foram considerados nos estudos euro-brasileiros levados a efeito em Bozen/Bolzano no corrente ano.


O significado de Bozen/Bolzano em processos políticos e músico-culturais


A capital do Alto Adige assume particular interesse sob as condições de aguçada atenção a questões identitárias da atualidade. O recrudescimento de tendências nacionais e nacionalistas na presente crise européia traz à lembrança, justamente em anos marcados pelos 100 anos da Primeira Guerra, as tensões e os conflitos entre a Itália e a antiga Áustria-Hungria, vistos, sob a perspectiva italiana, como movimento de libertação ou redenção de populações de origem, língua e cultura italianas até então sob a égide austríaca.


Se já no século XIX várias regiões tinham podido ser  integradas no corpo nacional do reino da Itália - como no caso da Lombardia onde viveu Carlos Gomes - o Trentino, Trieste e o Alto Adige o foram apenas como resultado da Primeira Guerra.


Bozen/Bolzano é uma cidade que ainda hoje traz à memória o passado austríaco dessa região hoje pertencente à Itália. Arquitetura, modos de vida e mesmo a língua mais comumente falada dão testemunho dos elos da cidade com a esfera austríaco-alemã, apesar da intensidade da italianização de décadas do século XX.


Bolzano. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

Bolzano. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright
Na sua praça principal, levanta-se de forma emblemática um monumento a Walter von der Vogelweide, mestre-cantor e principal representante da lírica alemã do passado medieval.


Nenhum outro simbolo poderia marcar de forma mais significativa a afirmativa da égide austríaca em fins do século XIX e à qual, em resposta, os italianos eregiram, em Trento, o grande monumento a Dante Alighieri. (Veja)


Bolzano. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright
Em 2016, pelos 160 anos de nascimento de W. A. Mozart, vem-se lembrando de suas estadias na Itália, nas quais, a caminho, passou por Bozen/Bolzano. Esteve na cidade três vezes, em dezembro de 1769 - lembrada em placa comemorativa -, em agosto de 1771 e em outubro de 1772, quando ali compôs partes do Quarteto de cordas em Ré Maior (KV 155).


Nesta ocasião, visitou o convento dominicano, que hoje abriga o Conservatorio Monteverdi di Bolzano, internacionalmente conhecido pelos festivais e concursos de piano que realiza. Se o seu primeiro quarteto, o KV 80 surgira em Milão, em 1770, o "quadro" ou quarteto de Bozen, criado como passa-empo, foi o primeiro dos assim-chamados "quartetos milaneses" do compositor. Essas obras revelam influência da cantabilidade melódica de quartetos italianos, que lhe serviram de inspiração, assim como obra do seu colega da Boêmia, Josef Myslivecek (1737-1781),


A história da música de câmara de Milão entrou numa nova fase na segunda metade do século XIX, quando, em 1864, fundou-se a Società del quartetto di Milano como uma academia musical para a promoção de atividades de concertos. Entre seus principais iniciadores encontra-se Arrigo Boito (1842-1918), influente intelectual e libretista, do círculo de relações de Carlos Gomes e que dá testemunho de pontes entre o movimento da Scapigliatura e tendências classicistas. É nessa esfera intermediária ou de transições que se deve inserir o interesse de Carlos Gomes arte camerística do quarteto.


(Re-)descobrimento do Quarteto de Carlos Gomes e sua primeira audição


Bolzano. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright
A primeira audição do Quarteto de Carlos Gomes em São Paulo deu-se no dia 22 de fevereiro de 1929 no Salão Nobre do Circolo Italiano, situado na rua São Luís. A obra foi incluida no 22° concerto da Associação Quarteto Brasil. Esse quarteto era formado por dois músicos italianos - Dino Fioretti (II violino) e Pedro Varoli (Violoncelo), e dois instrumentistas de outra nacionalidade: Frank Smit (1° violino) e Emmerich Csammer (Viola).


O Quarteto de Carlos Gomes constituiu a terceira parte do programa. Este foi aberto pelo Quarteto op. 51 em do menor de Johannes Brahms (1833-1897) e encerrado pelo Estudo de Concerto para Quarteto op. 5 de Leone Sinigaglia (1868-1944).


A parte intermediária foi preenchida por números para canto e piano da artista convidada Annita Gonçalves, acompanhada por Italo Tabarin (+1992). Annita Gonçalves apresentava-se como cantora de promissor futuro e que sob orientação e acompanhamento de Tabarin, gravaria em outubro de 1929 peças de autores apresentados no programa do Circolo Italiano.


A inclusão da obra de Carlos Gomes explica-se pelos estreitos elos entre os participantes do concerto e instituições de Campinas. Assim, o violoncelista Pedro Varoli era professor do Conservatório Musical Carlos Gomes de Campinas, desenvolvendo, à época, intensas atividades como professor e concertista naquele estabelecimento de ensino, então reconhecido pela sua alta qualidade.


O "descobrimento" da obra deveu-se ao maestro I.Tabarin, músico, regente e professor nascido em Pádua e fundador do Conservatório Musical de Santos. Informações divulgadas pela imprensa quando de sua morte de que Tabarin descobriu a obra - assim como Mamma dice - em 1936, não correspondem à verdade histórica, uma vez que o quarteto já fora apresentado em São Paulo, em 1929.


Sob o signo de Leone Sinigaglia (1868-1944) e Francesco Santoliquido (1883-1971)


Entre as composições apresentadas pela cantora Annita Gonçalves e por Italo Tabarin distinguiram-se canções populares, como o canto popular piemontês "Il cacciatore del bosco", recolhido por Sinigaglia. Este parte do programa foi aberta pela composição L'usignuolo", a mais conhecida de Alexander Alabief (1787-1851), cognominado pai da canção russa, um canto que passara a ser considerado parte do folclore russo. A obra do napolitano Francesco Santoliquido de título "Tristezza crepuscolare" trouxe para o concerto o espírito do crepuscularismo como tendência estética da cultura italiana mais recente.


Correspondendo assim à constituição plurinacional do quarteto, também o concerto realizado no Circolo Italiano teve um cunho internacional, sendo a sua lógica interna, porém, determinada pelo vulto de Leone Sinigaglia.


Este compositor de Turim, que, nos seus estudos na Europa Central tornou-se amigo íntimo de Johannes Brahms e admirador de Antonin Dvorak (1841-1904), explica não só a escolha da obra de Brahms para a abertura do programa, como também a das peças populares para canto nele incluídas, em especial a da tradição piemontesa por êle mesmo coletada. O interesse de Sinigaglia pelas tradições populares, em particular do Piemonte, foi despertado ou acentuado pelo seu contato com Dvorak.


Colocando assim Sinigaglia como personalidade condutora do programa, o Quarteto Brasil ofereceu um conjunto de obras unidas por uma lógica interna determinada pela sua vida e obra, tanto no relativamente a Brahms, quanto à seção intermediária com peças tradicionais populares.


Criou-se um programa a ser compreendido na sua coerência por uma perspectiva italiana do nacional na música nas suas relações com desenvolvimentos centro-europeus a partir de seus desenvolvimentos posteriores e que levavam à pesquisa de tradições populares de canto representada por Sinigaglia. Assim procedendo, o Quarteto Brasil vinha também de encontro ao interesse pela pesquisa de cantos da tradição popular que vigorava nos meios brasileiros de fins da década de 20.


O Quarteto de Carlos Gomes foi assim apresentado em primeira audição não em contexto que procurava situá-lo na sua época, mas sim em complexo temático amplo do nacional na música representado pelos seus desenvolvimentos no século XX referenciados segundo o vulto de Sinigaglia.


Carlos Gomes e os 140 anos da morte de W. A. Mozart (1756-1791) em São Paulo


Um outro concerto realizado no Circolo Italiano significativo pela sua programação de cunho internacional mas reveladora de pensamentos condutores foi o 71° sarau da Sociedade do Quarteto Paulista do Conservatório, realizado no dia 7 de maio de 1931.


A alma mater do evento foi Zaccharias Autuori (1889-1961),diretor artístico da sociedade fundada em 1923 e presidida por Agostino Cantù (1878-1943). Este, professor e compositor, era um dos mais destacados representantes musicais da colonia italiana de São Paulo (Veja) O quarteto era constituído por Z. Autuori (1° violino), E. Blois (2°. violino), W. Riley (Viola) e B. Kunze (Violoncello)


Autuori, violinista e compositor, professor do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, de ampla formação e diversificados interesses artísticos, desempenhou um papel extraordinário e não suficientemente lembrado na história do violino e da música de câmara em São Paulo.


Provinha de um contexto cultural italiano distinto daquele de Cantù, fato explicável pela suas origens em pequena cidade da região de Salerno, Campagna, (Cava de' Tirreni).


O programa, porém, indica sobretudo a influência de Cantù, o professor de piano do Conservatório que estabelecia o vínculo da instituição com Milão, sua cidade natal e de formação.


A sociedade do Quarteto Paulista do Conservatório inspirava-se, como associação de concertos e como uma espécie de academia de música não restrita à prática camerística, na Società del quartetto di Milano.


Para a realização do programa da sociedade do Conservatório, Autuori procurou e contou com a colaboração de seu amigo e colega, o austríaco Martin Braunwieser (1901-1981). Este possibilitou a participação do côro da sociedade alemã Frohsinn, que tomou a si a realização da primeira parte do programa.


A segundo parte foi dedicada a uma apresentação do violinista José Gomes Jünior e, a terceira, ao Quarteto n° 2 de W. A. Mozart. Também tomaram parte do concerto os professores de piano B. Chagas Júnior e Italo Izzo. O empreendimento contou com o apoio da casa G. Ricordi.


A moldura do programa foi criada com obras de Mozart, compositor que era alvo de particular atenção nos meios austríaco-alemães de São Paulo no ano da passagem dos 140 anos da sua morte.


O Frohsinn interpretou "O isis, o Osiris" da Flauta Mágica, seguindo-se duas canções populares alemãs: Schwaebisches Volkslied e Am Brunnen vor dem Tore. Braunwieser demonstrava aqui o seu interesse pelo canto popular alemão e  pelo processo de popularização, que tratava à época em estudos e na prática.


A esses cantos tradicionais alemães seguiu-se o coro dos caçadores de Il Guarany de Carlos Gomes, uma obra cantada em italiano por cantores amadores alemães e austríacos, o que representou um gesto de particular atenção dos alemães ao Circolo Italiano.


A segunda parte do programa foi aberta com o Capricho Brasileiro de Edgardo Guerra (1886-1952), seguindo-se obras do repertório violinístico aptas a demonstrar a capacidade do instrumentista.


Apesar de perceber-se que algumas das obras instrumentais tenham sido incluídas com a finalidade de por em relevo o violinista, uma lógica programática do evento aberto e encerrado com Mozart explica-se pelo intuito em trazer à consciência os elos históricos entre o universo musical da Europa de língua alemã e a de língua e cultura italiana, a influência italiana na ópera e, vice-versa, a importância da Itália na vida e no desenvolvimento criador de Mozart.


Também aqui é o número final do programa que revela o foco principal dos intentos: a inclusão do quarteto em ré maior de Mozart lembrou dos quartetos compostos na Itália e chamados de milaneses do compositor, no caso da obra composta em Bolzano, em 1772.


Ressaltou-se, assim, o significado das interações ítalo-alemãs no norte da Itália e territórios então austríacos na história da música, a região na qual Carlos Gomes mais tarde viveu, atuou e criou as suas principais obras, sobretudo em Milão, cidade da casa editora que apoiou financeiramente o evento.


A cooperação entre o Quarteto Paulista do Conservatório e a sociedade M.G. V. Frohsinn repetir-se-ia em outros eventos, salientando-se o 20° Stiftungsfest de 9 de Dezembro de 1933 e  Liederabend de 20 de outubro de 1934 realizada no Sport-Club Germania, no Largo do Paissandú.


O "Jägerchor" - o coro dos caçadores - de Il Guarany, pertencente ao repertório do Frohsinn, foi reapresentado no Liederabend de 22 de Junho de 1935, também aqui precedido por uma obra de Mozart e sucedido por cantos populares alemães.


A "Noite do Castelo" no 67. Stiftungsfest do Gesangverein Concordia em Campinas


A cooperação ítalo-alemã entre São Paulo e Campinas atingiu um ponto alto por ocasião da 67a. festa de fundação da sociedade alemã de canto Concórdia de Campinas, sob a direção de Carl Zink.


No programa festivo, tomaram parte a sociedades de canto masculino Frohsinn sob a direção de M. Braunwieser, e Lyra de São Paulo, esta sob a direção de Emmerich Csammer, além do coro do Verein Germania de Jundiaí, também dirigido por Carl Zink. Da família Zink, participaram também Lucy Zink, aluna do prof. Victorio Mariani, e Gertrud Zink.


O evento foi aberto - após um "Grüss Gott" pela massa coral - com obras instrumentais executadas pela Sociedade Symphonica Campineira sob a direção de Salvador Bove. Nesta parte do programa, apresentou-se uma seleção de A Noite do Castelo de Carlos Gomes, seguida por Lohengrin, de R. Wagner.



De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ Interações ítalo-austríaco/alemãs na música de câmara de entre-Guerras no Brasil. A primeira audição do Quarteto de Carlos Gomes (1836-1896) em 1929 sob o signo de Leone Sinigaglia (1868-1944), da Società del quartetto di Milano e dos 140 anos da morte de W. A. Mozart (1756-1791)“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 162/17 (2016:04). http://revista.brasil-europa.eu/162/Quarteto_de_Carlos_Gomes_1929.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne

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Bolzano 2016
Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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