O sino como símbolo da Olimpíada Berlim 1936

Revista

BRASIL-EUROPA 163

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 163/14 (2016:5)



O sino como símbolo da Olimpíada em Berlim 1936 a serviço do nacionalsocialismo
Da memória de caídos
ao chamamento de jovens ao auto-sacrifício no culto do Estado e do
"Führer"


Reflexões euro-brasileiras no Olympiapark Berlin

 

Pode parecer estranho, numa primeira aproximação, que sinos possam ter maior significado em estudos culturais relacionados com o nacional e o nacionalismo. Pode também parecer estranho que reflexões sobre sinos justifiquem-se no presente marcado por movimentos identitários que propagam uma reconscientização de valores nacionais e concepções nacionalistas.


Os sinos nos estudos organológicos em relações com processos culturais


O estudo de sinos, como parte da Organologia, tem sido estudo sob diferentes aspectos na Musicologia. Pelo seu uso principal em igrejas, é objeto de estudos da História Eclesiástica e da Teologia, que considera dedicações, ritos, funções no culto e nas comunidades. O interesse da pesquisa não se restringe aqui à história de sinos e carrilhões como bens patrimoniais de igrejas.


Diferentes aproximações - teológicas, históricas, sistemáticas e da pesquisa cultural empírica - interagem no estudo campanológico. Desde o início dos estudos euro-brasileiros na Europa, em meados da década de 1970, tem-se considerado a Organologia - e dentro dela os sinos - sobretudo sob o aspecto do edifício de concepções e imagens em que se inserem os instrumentos, emprestando-se atenção assim sobretudo a sentidos nas suas relações com formas, materiais, produção de som e funções. (Veja)


Tratam-se de concepções de remotas origens, relacionadas com o mundo natural, com o cosmos e com a antropologia simbólica de uma visão do mundo a ser estudada em fontes da Antiguidade e que foram reinterpretadas no Cristianismo, considerados em tratados, empregadas no culto e no trabalho missionário, levadas a regiões extra-européias e que sobreviveram na linguagem simbólica de tradições populares. Elas passaram por transformações no decorrer da história que não se restringiram àquelas da cristianização dos primeiros séculos; também foram secularizadas e modificadas nas suas formas e sentidos.


Sinos nos estudos culturais históricos e empíricos brasileiros foi um dos temas tratados na primeira coletânea de estudos de autores brasileiros publicada em Roma como base de discussões de simpósio internacional realizado em São Paulo, em 1981. (Veja)


Os sinos tiveram sempre diferentes sentidos e funções, e o chamar à missa, o congregar o povo foi um deles. Essas sentidos e funções puderam manter-se, mesmo no processo secularizador, adquirindo o chamamento e a congregação outras finalidades, também no caso de uma quase que sacralização do estado ou do corpo nacional.


Atualidade dos estudos campanológicos sob o aspecto de tendências renacionalizadoras


O debate atual sobre a permissão ou não do canto de muezins em mesquitas em países europeus com forte contingente de muçulmanos, na Alemanha, na França e em outros países, traz à mente o confronto secular entre a voz de muezins do alto de minaretes e os sinos das igrejas cristãs em territórios conquistados por muçulmanos ou reconquistados pelos cristãos.


Como registrado quando da conquista de Ceuta ou em outras ocasiões dos séculos dos Descobrimentos, o sino surgia como símbolo do Ocidente cristão em oposição ao canto dos muezins, e um ou outro deviam silenciar, de acordo com o poder estabelecido. A voz do alto das torres - humana ou instrumental - possuiu uma relação com o poder estabelecido ou que adquiriu supremacia já em épocas marcadas pelo estreito relacionamento entre a política e a religião de ambas as partes do conflito entre o Ocidente cristão e o Islão.


A oposição a minaretes e ao canto de muezins na Europa do presente é acentuada sobretudo em movimentos que manifestam uma preocupação pela islamização do Ocidente, e isso não tanto para a defesa do Cristinianismo, mas sim sobretudo com argumentos nacionais e nacionalistas de fundamentação histórico-cultural, étnica ou "povística" ("völkisch") que muito lembram concepções de décadas passadas.


O sino das torres de igrejas assim indiretamente defendido através da oposição à voz dos muezins no alto de minareta nesses movimentos do presente não é tanto o instrumento consagrado, na sua função religiosa, mas sim instrumento sentido como parte da cultura com a qual aqueles que defendem o nacional se identificam.


Ambivalências, passagens e interações entre o sacral e o secular marcam sentidos e funções do sino sob a perspectiva dos estudos relacionados com o nacional e o nacionalismo.


A simbologia do sino em dois contextos: Rovereto e Berlim


Essas complexas interferências de sentidos religiosos e profanos podem ser estudadas no exemplo de dois sinos que, respectivamente na Itália e na Alemanha, tornaram-se complexos símbolos de épocas marcadas por guerras do século XX.


Na Itália, em Rovereto, encontra-se o mais importante centro para reflexões relativas às dimensões do simbolismo campanólogico nas suas relações com guerra e paz, com o nacionalismo e com a unidade do gênero humano e dos Direitos do Homem. (Veja)


Essa simbólica é estreitamente relacionada com o material do instrumento, uma vez que se trata de um sino fundido com o metal de armas dos países envolvidos na Primeira Guerra Mundial. Essa iniciativa, provinda de um religioso, apesar de seus abrangentes sentidos supra-confessionais, possui fundamentos teológicos.


Ela representou, após a guerra, um procedimento oposto àquele que da transformação de sinos em armas. Em diferentes países, a necessidade de metal para armamentos levara ao uso de sinos que, desacralizados, foram fundidos e transformados em armas. O retorno de sinos não fundidos às aldeias após a guerra deu motivo a manifestações de regozijo pelo seu alto conteúdo simbólico.


O sino dos caídos de Rovereto manifesta a sua fundamentação religiosa na sua dedicação mariana - Maria Dolens - nos seus relêvos e no fato de ter sido sagrado pelo Papa. Em visão histórica, constata-se porém que esse sino não deixou de experimentar a ação de mudanças políticas no pêso dado a seus sentidos. Refundido em 1938, em plena era fascista, a memória dos caídos a que servia adquiriu conotações outras àquelas dos anos imediatamente posteriores à Primeira Guerra.


Nas reflexões encetadas na área da Campana dei Caduti em Rovereto, em agosto de 2016, lembrou-se que o sino da década de 1930 que mais merece atenção pelas suas relações com visões do mundo e do homem nacionais e nacionalistas do totalitarismo é o da XI Olimpíada, realizada em Berlim, em 1936.




O sino da XI Olimpíada de Berlim em 1936 no seu significado nacionalsocialista


O sino para os jogos olímpicos de 1936 destacou-se pelas suas grandes dimensões: 4,28 metros de altura e diâmetro de 2,8 metros e 9,6 tonelaas. Foi um dos emblemas da IX. Olímpiada ao lado dis aros entrelaçados, da águia imperial e da porta de Brandenburg, sendo representado em impressos e carimbos de correio. O seu significado simbólico colocou-o ao lada da tocha e do fogo olímpico.


Esse extraordinário significado do sino da Olimpíada de Berlim de 1936 não foi sempre devidamente avaliado. Após a Segunda Guerra, com a explosão da torre por soldados britânico, o sino caiu por terra, deteriorando-se.
Foi enterrado, sendo redescoberto em 1956. Encontra-se hoje no sul do estádio e desempenha a função de memorial e ponto de referência..


O sino foi projetado por Johannes Boehland (1903-1964) e Walter E. Lemcke (1891-1955), sendo realizado entre 1932 e 1935. Boehland era um pintor e artista gráfico que destacou-se em várias exposições da época, entre outros com trabalhos apresentados na grande exposição alemã de arte em 1940. Lemcke era um artista plástico que montou um atelier em Berlim após a Primeira Guerra, tornando-se conhecido em exposições.


O sino olímpico foi por êle modelado segundo projeto de Ernst Sagebiel (1892-1970), um arquiteto vinculado ao partido nazista - considerado um dos mais importantes arquitetos da época e cuja obra mais conhecida é o monumental edifício para o Ministério da Aviação em Berlim. O seu estilo construtivo, marcado por linhas e formas retilíneas, severas e maciças, sugere associações com a técnica de transportes aéreos, sendo por vezes designada como de moderno-aérenáutico. Poder-se-ia, também no sino olímpico, perceber referências na modernidade de sua decoração a essa estética de inspiração aeronática e, assim, com o ar.


O sino foi fundido em agosto de 1935 pela sociedade de fabricação de aço de Bochum. Essa sociedade era uma empresa que integrava várias usinas siderúgicas, com mais de 20.000 trabalhadores.


Originada em meados do século XIX, designada primeiramente como sociedade de mineração e de fabricação de aço fundido (Bochumer Verein für Bergbau und Gußstahlfabrikation), passou a denominar-se Bochumer Verein für Gusstahlfabrikation após a tomada de poder nazista em 1933. A ela foi subordinada a Rombacher Hütte (Werk Weimar) adquirindo, por influência do poder militar, a maioria das ações da firma Hanomag de construção de veículos e máquinas de Hannover.


Nessa indústria, iriam passar a ser montadas armas na Segunda Guerra com partes fundidas em Bochum. A usina tornou-se empresa modêlo do nacionalsocialismo, apoiando o partido nazista NSDAP e a Fronte de Trabalho Alemã (Deutscher Arbeitsfront).


Um sino defronte à casa da prefeitura de Bochum surge ainda hoje como sinal do significado da fundição de aço para a história da cidade e do trabalho na região. O instrumento surge assim como emblema da produção metalúrgica dessa região de mineração e de siderurgia da parte ocidental da Alemanha e que hoje, após a decadência industrial, passa a ter funções sobretudo culturais e de revitalização ecológica.


O sino olímpico foi fundido justamente em época de intensificação da influência do poder militar na empresa, poucos meses após visitas de pessoas influentes da indústria e do regime, de ministros e do próprio Adolf Hitler em 1935.


O sino e o seu transporte em publicações de divulgação cultural da época


O transporte do sino para Berlim, em maio de 1936, foi encenado como ato de alto significado simbólico e político pelo regime, sendo registrado em artigos de revistas ilustradas de ampla divulgação dedicadas a temas culturais e geográficos.


O transporte foi acompanhado por membros do partido nacional-socialista e que mantiveram guarda dia-e-noite. O sino foi levado a Berlim em cortejo triunfal, percorrendo diferentes cidades e acompanhado por emissões radiofônicas, por exposições e impressos, servindo à Propaganda como demonstração do refortalecimento do Império. No dia 11 de maio, foi levantado no campanário edificado para os jogos olímpicos.


A "torre do Führer" ou "torre do sino" e a Langemarckhalle


A torre do sino edificada para os jogos olímpicos integrou-se na concepção geral da área, adquirindo, também pelas suas funções, não só sentidos práticos como também simbólicos.


Na torre instalaram-se, nos seus vários andares, postos de observacão da direção do evento, da polícia, do serviço sanitário e, sobretudo, de transmissão radiofônica e de reportagem cinematográfica.


Abaixo da torre do sino, nas tribunas que se abriam ao "Campo de Maio", encontrava-se o lugar do "Führer". Em imitação de práticas da Antiguidade romana, o povo, saindo da área e passando por um portal de grandes dimensões, podia saudá-lo com mão estendida.


Para além da memória de combatentes, o complexo de sentidos do sino e da sua torre unia às suas sugestões antigo-romanas a tradição do seu uso eclesiástico através dos séculos, agora porém servindo a uma quase que sacralização do nacional e do líder.


O significado simbólico da torre fundamentava-se sobretudo no fato de levantar-se sobre a sala de Langemarck. Esse espaço era dedicado ao culto de combatentes e da morte em sacrifício pela nação sob o signo do chamado "Mito de Langemarck". Essa dedicação dizia respeito aos jovens voluntários que, em 1914, foram mortos durante um ataque alemão em terreno próximo à cidade belga de Langemark. Essas mortes, em grande número, passaram a servir à propaganda, como "sacrifício altruístico da juventude".O sino, que com a sua inscrição chamava a juventude do mundo, soava assim em torre que se levantava sobre o fundamento da disposição à morte em sacrifício heróico.


O sino foi assim celebrado por entidades oficiais como a "Liga Alemã de Educação Física" nacional-socialista como servindo à eterna memória do sacrifício dos heróis mortos em guerra e que obrigava em consciência de dever os vivos, como o expressou Hans von Tschmmaer und Osten (1887-1943), o "Reichssportführer".


O sino como símbolo memorial de mortos em guerra foi frequente em monumentos e em torres dos três burgos de ordem nacional-socialista onde se formava o pessoal de liderança do partido.


Os espaços da Lagemarckhalle, desde 2006, são usados para exposição de tema "A área da Olímpia como local histórico 1909-1936-2006" do Museu Histórico Alemão, tendo-se previsto, para a torre, instalações do Museu de Esportes de Berlim. Os visitantes podem subir à plataforma, da qual se abre grande panorama sobre o parque olímpico, o estádio e as regiões circunvizinhas.


A reconstrução da torre e o novo sino


No início da década de 1960, a torre foi reedificada segundo os antigos planos, recebendo um sino novo, de 4,5 toneladas. O instrumento é ornamentado com a água da federação alemã e com o portal de Brandenburg, trazendo a inscrição "Jogos Olímpicos de 1936" e os dizeres "Chamo a juventude do mundo" com os aros olímpicos. O instrumento foi projetado por Werner March (1894-1976), o arquiteto que, em 1936, destacara-se na construção do estádio em prosseguimento à tradição de seu pai.


Em 1982, o sino foi dedicado, de modo mais abrangente do que anteriormente, aos sacrificados em guerra e violência, mantendo-se, assim, a continuidade dea tradição de sua primeira dedicação, ainda que agora ampliada.



De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“O sino como símbolo da Olimpíada em Berlim 1936 a serviço do nacionalsocialismo. Da memória de caídos ao chamamento de jovens ao auto-sacrifício no culto do Estado e do "Führer"“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 163/14 (2016:05). http://revista.brasil-europa.eu/163/Sino_da_Olympia_1936.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne





 








Berlim 2012. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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