Bach-Bewegung e Bachianas Brasileiras
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 169

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Theatinerkirche, Munique. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Theatinerkirche, Munique. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Theatinerkirche, Munique. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Theatinerkirche, Munique. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Theatinerkirche, Munique. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Theatinerkirche, Munique. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 169/4 (2017:5)



A Bach-Bewegung nos seus elos com Salzburg em São Paulo e as Bachianas Brasileiras
Relendo carta de H.Villa-Lobos à Sociedade Bach de São Paulo
à luz de diferentes correntes de pensamento:
Philipp Spitta (1801-1859) e Bernhard Paumgartner (1887-1971)


Reflexões de outono na Theatinerkirche de Munique - após 100 anos de falecimento de Max Reger (1873-1916) -
30 anos do I Congresso Brasileiro de Musicologia no ano dos centenáriois de Villa-Lobos e Bernhard Paumgartner

 
Theatinerkirche, Munique. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

O ano de 2016 foi marcado na vida musical da Alemanha pela passagem dos cem anos da morte de Max Reger. Em concertos e conferências, em particular naqueles realizados em Munique, considerou-se um compositor que na sua linguagem musical revela a influência da obra de J. S. Bach (1685-1750). Ambos os compositores foram assim conjuntamente lembrados em execuções como aquelas do Bach-Chor de Munique por ocasião de concertos em dias memoriais de suas mortes. Essas relações entre a obra de compositores de diferentes épocas e contextos motivoureflexões sobre a vigência e a irradiação da obra de Bach através do tempo e do espaço e, assim, ao movimento que levou, desde o século XIX, a seu redescobrimento e revalorização.

Na Theatinerkirche de Munique, revisitada no outono de 2017, retomaram-se reflexões concernentes à extensão do movimento Bach ao Brasil e o seu significao para os estudos euro-brasileiros, um tema que já foi objeto de estudos em diferentes ocasiões e locais.

Theatinerkirche, Munique. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Poucas são as obras de compositores que mais são lembradas e mesmo justificam a consideração da música do Brasil na Alemanha o que aquelas que se referem expressamente a Johann Sebastian Bach (1685-1750) na sua própria designação: as Bachianas brasileiras de Heitor Villa Lobos (1887-1959).

Quando se indaga quais são os elos musicais entre o Brasil e a Europa de língua alemã, quais são os argumentos que justificam a consideração da música do Brasil na Alemanha, na Áustria ou na Suíça, antes de qualquer referência à vínculos históricos, a elos culturais possibilitados pela imigração e colonização, a brasileiros na Europa Central ou a europeus de língua alemã no Brasil, lembra-se sempre que a mais relevante personalidade da música no Brasil do século XX não só foi um admirador de Bach como um dos maiores vultos da história da música alemã como explicitamente referenciou-se a êle na sua obra criadora.

Compreensivelmente, as Bachianas brasileiras constituiram desde a década de 1970 constante objeto de atenções no programa de estudos euro-brasileiros iniciado na Alemanha, em 1974, sendo sempre consideradas em encontros e diálogos, em seminários e cursos de escolas de música e institutos de musicologia, em particular naqueles das universidades de Colonia e Bonn orientados pelo editor. A atualidade das Bachianas brasileiras nos estudos musicológicos em geral e nos estudos culturais relacionados com o Brasil revela-se em projetos de pesquisas que continuam a ser idealizados e discutidos.

Essa permanência de interesses pelas Bachianas brasileiras indica que a sua potencialidade quanto a questionamentos e análises ainda não foi esgotada. O reconhecimento dessa riqueza de possibilidades de estudos e interpretações é favorecido por uma situação enigmática que sempre se coloca de início, uma vez que, apesar das muitas tentativas, poucas relações podem ser identificadas numa primeira aproximação entre as composições de Heitor Villa-Lobos com obras de Johann Sebastian Bach. Obras de compositores de diferentes épocas e contextos, relações entre elas surgem como de difícil reconhecimento, seja sob o ponto de vista histórico-musical e cultural de elos com o Brasil, seja sob o aspecto de análise musical, morfológica, estrutural, estilística e da prática de execução.

As Bachianas brasileiras trazem assim à consciência a necessidade de perspectivas mais amplas quanto a seus sentidos, às intenções e concepções, tornando-se assim obras de relevância no desenvolvimento e nos esforços de institucionalização de uma musicologia de orientação científico-cultural.

Para o prosseguimento refletido desses estudos, porém, torna-se imprescindível recordar posições, iniciativas e caminhos do pensamento e da interpretação, nem sempre conhecidos ou devidamente considerados.

Momentos do desenvolvimento das reflexões - de São Paulo a Lüneburg e a Salzburg

Preocupações com problemas de interpretação e prática de execução de obras de J. S. Bach e de outros compositores de sua época acompanharam desde o início do movimento de concepções e de renovação teórica em São Paulo que levaram à criação do Centro de Pesquisas em Musicologia no âmbito da organização voltada a processos culturais nas reflexões e na prática musical fundada em 1968 (Nova Difusão).

Nesse movimento marcado pelo empenho de renovação de repertórios, de superação de delimitações de esferas, de aberturas em diferentes sentidos, o interesse, o cultivo e a difusão da música de época anterior àquela dos compositores do século XIX mais presentes em programas convencionais do ensino e de concertos não eram expressões de conservadorismo, mas sim um dos intuitos renovadores e progressistas que levavam também à promoção da música de vanguarda.

Se não havia contradição entre o empenho de difusão de obras pouco conhecidas da música contemporânea, da popular e aquele voltado à „música antiga“, nesta constatava-se diferenças quanto aos círculos que a praticavam, a concepções, práticas de execução, público e inserções em correntes dos estudos e da prática européias e norte-americanas.

Das novas tendências na prática da „música antiga“ distinguia-se a Sociedade Bach de São Paulo com a sua história de décadas e que, fundada em 1935, fora já na época expressão de anelos mais antigos, remontantes aos anos de formação de seus fundadores em Salzburg no início do século.

Como nenhuma outra entidade representava a extensão no Brasil da Bachbewegung, um movimento que, nascido da redescoberta e revalorização do compositor no século XIX, difundiu-se também em países não de idioma alemão, marcando a vida musical de grandes centros, entre êles Paris.

Não só os vários contextos geográfico-culturais em que se desenvolveu, mas também aqueles epocais devido às suas inserções em processos históricos e políticos das diferentes regiões e nações levaram a que tomasse características diferenciadoras no tempo e no espaço. Quanto à Sociedade Bach de São Paulo, então sob a direção de Renata Braunwieser como sucessora de seu pai Martin Braunwieser (1901-1991), uma das preocupações foi a de, sob a perspectiva de uma orientação da atenção a processos, considerar os elos da instituição e das características do seu trabalho através das décadas com a Bachbewegung alemã na diversidade de seus centros e correntes.

Significativamente, o início dos trabalhos na Alemanha em 1974 deu-se em Lüneburg, cidade do norte da Alemanha estreitamente ligada à vida de J.S.Bach e um dos principais centros do seu cultivo. (Veja)

Entre os músicos e pesquisadores envolvidos nesse diálogo euro-brasileiro destacou-se Volker Gwinner (1912-2004), professor de órgão da Escola Superior de Música de Hannover e que abriu caminhos a outros círculos de pesquisadores e aos muitos centros históricos e da pesquisa de J.S.Bach na Alemanha, como Hamburg e Lübeck, asim como aqueles da então República Democrática Alemã posteriormente visitados como Eisenach e Halle.(Veja)

Assim iniciadas e conduzidas, as reflexões desenvolveram-se em rêde de musicólogos e da prática musical de confissão evangélica. Como porém Martin Braunwieser já na época expressamente salientava, o caminho adequado para a compreensão e o estudo dos elos da Bachbewegung com o Brasil era aquele que considerasse prioritariamente o contexto cultural católico da Áustria e do sul da Alemanha, em particular o de Salzburg. Não tanto Philipp Spitta (1841-1894), mas antes Bernhard Paumgartner (1887-1971) deveria ser, entre os seus biógrafos, a personalidade-chave a ser considerada.

Nos trabalhos desenvolvidos a seguir em Salzburg, considerou-se o cultivo da „música de antigos mestres“ no Mozarteum à época da Primeira Guerra e nos anos que se seguiram e que, ao lado da promoção de obras contemporâneas e da música extra-européia fazia parte integrante da orientação renovadora de Paumgartner.

J.S.Bach e F. Schubert nos concertos do Mozarteum e de austríacos em São Paulo

Tornou-se claro, porém, que esse interesse pelo redescobrimento e revalorização da „música de antigos mestres“ a serviço de intentos de superação de convenções conservadoras no ensino e na vida de concertos necessita ser considerado à luz da situação crítica da guerra e do seu desfecho, que representou o fim do império dos Habsburgs e criou, com a derrota austríaca, um estado de espírito marcado por emoções ambivalentes, por sentimentos patrióticos e nostálgicos, o que explica uma espécie de culto a Franz Schubert manifestado nas Schubertiaden de 1921. (Veja)

Uma orientação fundamentalmente de natureza renovadora, superadora de convenções, anti-conservadora, aberta tanto a tendências estéticas contemporâneas como à descoberta da música de passado mais remoto coadunou-se de forma apenas aparentemente paradoxal com um estado de espírito romântico, marcado por sentimentos patrióticos de amor e dor.

Ao mesmo tempo, as Schubertiaden retomando imagens dos encontros músico-literários da época de Schubert, podem ser vistas como indício expressivo do estado de espírito e da atmosfera que caracterizavam as realizações dos jovens músicos da época, onde, apesar de toda a seriedade de ideais, predominava o cultivo da sociabilidade em simplicidade de atitudes entre pessoas irmanadas por objetivos e sentimentos afins.

Neste sentido, não só as apresentações contrastavam exteriormente com a gala e o cultivo de exterioridades de concertos e da ópera como também influenciavam a performance, a prática de execução e a interpretação. A renúncia a trajes e atitudes de cunho representativo e teatral não significavam severidade e austeridade, mas sim simplicidade e modéstia adequadas a um convívio de cunho familiar e amigo. Correspondentemente, demonstrações de virtuosismo vocal e instrumental deviam ser evitadas por sinalizarem vaidade e superficialidade.

Programa Sociedade Donau. Arquivo A.B.E. Copyright
Nas suas apresentações em outros países e no Brasil na década de 1920, o casal Martin e Tatjana Braunwieser cultivou essa orientação quanto a repertórios e o espírito da prática musical dos anos de sua formação em Salzburg. Essa orientação marcou também o seu empenho pela difusão e cultivo da obra de J. S. Bach, sobretudo nos círculos austríaco-alemães de São Paulo.

Exemplo significativo desse empenho foi concerto realizao no salão nobre da Sociedade Austríaca „Donau“, então sediada no Largo Paissandú da capital paulista. A primeira parte do programa foi aberto com a Sonata N° 1 em si menor para piano e flauta de J. S. Bach, a segunda com „Introdução e Variações“ para piano e flauta de Franz Schubert, incluido composição do próprio Braunwieser.

Assumindo a direção do Schubertchor em 1930, Martin Braunwieser passou a dar prioridade a obras de J.S.Bach na vida e nas atuações da entidade.

Embora mantendo os mais altos critérios quanto à escolha de repertório e de interpretação segundo o escopo do Schubertchor como entidade que se impunha continuos esforços de aperfeiçoamento, o cultivo da sociabilidade alemã no sentido de Schubert marcou ensaios e apresentações.

O cultivo de J.S.Bach e o espírito das Schubertiaden

Devido a atenção prioritária dada a Bach, o espírito das Schubertiaden que determinava a vida do Schubertchor assumiu antes características de por assim dizer „Bach-iaden“.Já no dia 16 de abril o Coro Schubert apresentou-se sob a sua direção na Rádio Educadora Paulista e, no dia 18 e abril, na Igreja Evangélica Alemã com um programa que incluiu sobretudo obras de Bach.

O cultivo da „sociabilidade alemã“ no sentido de Schubert - ou seja, das Schubertiaden - manifestou-se na participação do coro na 3. Sängerbundesfest em Campinas, efetivada juntamente com os 60 anos de fundação a Sociedade de Canto Concordia, de 3 a 4 de maio de 1930. No confronto com outras com essa tradicional entidade e outras associações de canto alemão de São Paulo, o Schubertchor distinguia-se pelo seu alto nível qualitativo e pelos seus ideais de aperfeiçoamento e de formação cultural, o que correspondia à posição social mais elevada e influente de seus membros.

A convicção de que Bach representou o mais alto cimo da música na história da música, da sua espiritualidade veio de encontro aos anelos de aperfeiçoamento interior de circulos de imigrantes mais bem situados e que poderiam ser designados como sendo de uma burguesia ávida de conhecimentos e de aperfeiçoamento interior („Bildungsbürgertum“). (Veja)

Foi nessa época de entusiasmo e mesmo obcessão por Bach do Schubertchor sob Martin Braunwieser dos primeiros meses de 1930 que Villa-Lobos tomou contato mais estreito com o Schubertchor.

Se Villa-Lobos já desde a sua juventude pela formação paterna e através dos professores do Rio de Janeiro conhecia obras de J.S.Bach, - como frequentemente lembrado na literatura -, se necessáriamente na sua estadia na França constatara a atenção dada a obras de Bach no ensino e na vida musical, foi o seu convívio com o Schubertchor que pode elucidar as características de suas relações criadoras que se referenciam segundo Bach. Elas não surgem como explicáveis através de uma recepção da recepção de Bach na Itália ou na França, mas sim da austríaca nas suas relações com o cultivo da sociabilidade „no sentido de Schubert“ possibilitada de forma particularmente estreita pelo regente do Schubertchor.

O interesse pelas mais atuais tendências na literatura e nas artes de seus membros torna compreensível a simpatia e a consideração com que Villa-Lobos foi recebido no meio. Esse apreço manifestou-se na organização de oito concertos onde o Schuberchor atuou sob a regência de Villa-Lobos em julho de 1930, uma série que foi considerada por Mário de Andrade como de extraordinária importância. Que esses concertos inseriram-se na corrente que levava à academia criada em Salzburg testemunha a inclusão de „Saudades do Brasil“ de Darius Milhaud (1892-1974), obra que sempre foi emblemática dos concertos de Martin e Tatjana Braunwieser.  

Como ponto mais alto do cultivo de J.S.Bach desse primeiro semestre de 1930 apresentou-se o Primeiro Concerto Brandenburguês do compositor sob a regência de Villa-Lobos. Essa apresentação, porém, deu ensejo a uma crise na alta-consideração que o compositor até então gozava no meio austríaco-alemão do Schubertchor.

Não só a inclusão de um violinofone - que Villa-Lobos também utiliza em outras obras - causou estranheza aos músicos e aficcionados, como também a sua capacidade técnica como regente levou a críticas.

Os músicos do círculo do Schubertchor no seu empenho pela qualidade das execuções em contínuo aperfeiçoamento passaram a questionar a formação musical de Villa-Lobos. O contato mais estreito com o compositor nos ensaios e em encontros pessoais levantou dúvidas sobre o seu preparo teórico - tornou-se lugar comum afirmar-se que não sabia solfejo, que não sabia anotar corretamente melodias ouvidas ou por êle mesmo entoadas, que não dominava a percepção de intervalos.

Apesar de todas as lembranças felizes do convívio, apesar de toda a afinidade, as relações entre o círculo austríaco-alemão de São Paulo e Villa-Lobos permaneceram estremecidas. Este distanciamento ter-se-ia acentuado com a fundação da Sociedade Bach de São Paulo, em 1935, quando o intento de cultivo da „sociabilidade alemã“ perdeu gradualmente a sua intensidade. O retraimento dos austríacos e alemães forçado pelo desenvolvimento político dos anos 30 e da Guerra, contribuiu a uma concentração dos esforços à realização de concertos a um público de maior erudição.

Releituras da carta de Villa-Lobos à Sociedade Bach de São Paulo

Um dos documentos mais relevantes para o estudo de diferenças entre o pensamento e as iniciativas de Villa Lobos e aqueles do movimento Bach de São Paulo foi carta à Sociedade Bach de São Paulo escrita pelo compositor em dezembro de 1945.

Essa carta foi conservada em rascunho, essa carta foi publicada no órgão do Museu Villa-Lobos, em 1974 (Presença de Villa-Lobos IX, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1975, 95-96).

A publicação desse manuscrito - carta não enviada ou silenciada de forma discreta pela Sociedade Bach - levou a intensas trocas de idéias com os mentores do movimento Bach de São Paulo nessa época e em anos que se seguiram, obrigando à recordação de dissidências que procuravam ser esquecidas.

Numa primeira leitura, poder-se-ia compreender a expressão que abre a missiva - „Cuidado, meus amigos!“ como uma ameaça e que apenas poderia ser explicada pelo fato do compositor tê-la escrito no ano do término da Segunda Guerra com a derrota da Alemanha,

Justamente no período da Segunda Guerra é que Villa Lobos dedicou-se à criação de uma segunda série de Bachianas. Se as primeiras tinham sido compostas no início da década de 1930 à época do convívio com o Schubertchor - as Bachianas brasileiras n° 1, para orquestra de violoncelos, as Bachianas brasileiras n° 2 para orquestra, e as Bachianas brasileiras n° 4, para piano, de 1930 (para orquestra 1931), uma segunda série surgiu em anos marcados por tensões internacionais que levaram à Guerra - as Bachianas brasileiras n° 3, para piano e orquestra, 1938; Bachianas brasileiras n° 5, para canto e orquestra de violoncelos, 1938-1945; Bachianas brasileiras n° 7, para orquestra, 1942; Bachianas brasileiras n° 8, para orquestra, 1944; Bachianas brasileiras n° 9, para orquestra de cordas ou de vozes, 1945.

A argumentação de Villa Lobos na sua carte surge como de grande relevância para estudos de suas concepções de difusão e de formação cultural. Em primeiro lugar, salienta a sua mais alta consideração da música de J. S. Bach. Para êle, ela seria „incontestavelmente a mais sagrada dádiva do mundo artístico“.  Se assim inicia o seu texto, o termina dizendo que J. S. Bach foi o „maior dos maiores dos mortais“. Entretanto, justamente por ser „tão imensa e profunda“ seria perigosa a sua difusão em meios sociais que não estavam devidamente preparados para senti-la.

O „perigo“ de difusão da obra de J.S.Bach em meio social não preparado para ouví-la

Essa convicção do „perigo“ de difusão da música de Bach surpreende, sob muitos aspectos, em particular por manifestar uma opinião negativa sobre o meio social brasileiro quanto à sua capacidade de recepção. Essa sua frase, na verdade, surge como reveladora de uma singular atitude depreciativa relativamente ao nível de formação ou de cultura da sociedade, o que contradiz generalizada imagem do compositor e de seu pensamento.

Mais à frente de seu texto, porém, explica melhor a que meio social a sua crítica mais particularmente se dirigia: seria aquele ambiente „cheio e recalques e complexos, incrédulo em face da criação artística de seus patrícios“. Tratava-se, assim, do público que se interessava sobretudo por obras de compositores estrangeiros.

A sua advertência indica um fundamental cunho educativo e de concepções culturais de sua crítica à difusão praticada pela Sociedade Bach de São Paulo.

Consequências de diferentes pesos na recepção da pesquisa de Bach no Brasil

As explanações de Villa-Lobos, que hoje surgem como surpreendentes e mesmo incompreensíveis, indicam a vigência de um edifício de idéias que partem de uma determinada compreensão da obra de Bach.

Villa-Lobos parte do pressuposto que a obra de Bach estaria „baseada no canto livre da terra, através das expansões espontâneas dos homens simples e inconvencionais“.

De onde Villa Lobos teria chegado a essa suposição que hoje surge como estranha é uma questão que merece ser considerada nas suas relações com a literatura especializada.

Poder-se-ia aqui lembrar de Philipp Spitta (1841-1894), que no seu „Über Johann Sebastian Bach“, publicado antes de 1879,  fala de Bach como „o mais completo representante da arte nacional“ alemã (s/d pág. 21).

As colocações e Villa-Lobos não podiam corresponder a orientações da Sociedade Bach de São Paulo, baseadas que eram nos pesquisadores mais recentes de Bach, entre êles sobretudo Bernhard Paumgartner (1887-1971).

Da interpretação de Bach conhecida de Spitta, Villa Lobos parece ter chegado assim a uma por assim dizer teoria cultural: Bach, partindo das criações musicais do seu país, mas pensando em Deus e no Universo, teria dado a mais espiritual prova de solidariedade humana. O caminho a seguir seria, segundo o compositor, compreender, amar e cultivar a música que vem e vive, direta ou indiretamente da terra - no caso da brasileira - e universalizá-la com fé e consciência. Assim procedendo, o compositor reproduziria o caminho de Bach.

É neste sentido que as Bachianas brasileiras parecem dever ser entendidas, ou seja, não como referências diretas a Bach, a formas, estruturas, estilos e linguagem musical, mas sim como resultado da criação de um compositor que teria seguido o suposto caminho de Bach, partindo da música da terra em solidariedade humana e universalizando-a „com fé e consciência“.

A advertência de Villa Lobos à Sociedade Bach de São Paulo dizia respeito ao perigo de, com a melhor das intenções, esta desenvolvesse um trabalho propagandístico das obras de Bach sem efeito educativo, fútil, levando apenas a momentos de fruição para aqueles ouvintes sem maior interesse para a criação musical da terra.

As dimensões político-culturais da compreensão de Bach por Villa-Lobos

As explanações de Villa Lobos adquirem no decorrer do seu texto, um significado político. A juventude deveria ser educada na „disciplina coletiva das massas“ até que se alcançasse a „maioridade consciente de um povo civilizado“.

Nessa expressão, que mais uma vez manifesta um parecer que parte do nível primário da cultura musical do povo, o processo educativo teria por finalidade orientar o povo a formar „elites espontâneas“ e estas tornarem-se „baluartes morais e materiais das realizações artísticas de suas predileções“.

Nessa explanação, revela-se que um dos pontos de sua crítica à Sociedade Bach de São Paulo seria aquela dela ser elitista ou orientar-se segundo elites, sendo que estas não eram aquelas elites surgidas espontaneamente do povo formado na „disciplina coletiva das massas“.

Parte considerável de sua carta é dedicada à exposição de sua própria experiência na prática da música de Bach junto ao povo. Villa-Lobos lembra que executara, com um coral de mais de 200 professores de Canto Orfeônico, dois prelúdios e duas fugas de Bach para um público de mais de 2000 operários. Prevenira anteriormente que seriam executadas obras de autores nacionais e do maior compositor de todas as épocas, sem, porém, mencionar os nomes. O auditório teria aplaudido mais as obras de Bach, uma vez que estas possuiam elementos que apresentavam „incontestável afinidade de células melódicas e rítmicas com gênero da música popularesca sertaneja“ (sic!).

Em outra ocasião, preveniu antes o auditório a respeito dos autores, e este teria aplaudido sobretudo obras de compositores que conheciam de nome. Dessa experiência, Villa Lobos chegara à conclusão que a apreciação musical do povo era sobretudo influenciada por nomes de autores famosos, por títulos, pelo programa literário ou por outros fatores da vida social ou sentimental de cada um, sendo raros os casos daqueles que apreciariam a música em si.

Com a explanação dessas suas experiências, Villa Lobos parece ter procurado exemplificar a sua crítica a uma forma de difusão que estaria sendo praticada pela Sociedade Bach de São Paulo, presumindo serem os seus concertos voltados a um público que se orientava sobretudo por fatores extra-musicais, erudição ou prestígio social, salientando mais uma vez o procedimento qu considerava adequado quano à educação do povo na „disciplina coletiva das massas“.



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.) “A
Bach-Bewegung nos seus elos com Salzburg em São Paulo e as Bachianas Brasileiras. Relendo carta de H.Villa-Lobos à Sociedade Bach de São Paulo à luz de diferentes correntes de pensamento: Philipp Spitta (1801-1859) e Bernhard Paumgartner (1887-1971). Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 169/4(2017:5).http://revista.brasil-europa.eu/169/Bachbewegung_e_Bachianas_Brasileiras.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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