Pensamento sistemático e estudos históricos
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 169

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Heidelberg. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Heidelberg. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 169/15 (2017:5)



O pensamento sistemático da análise musical nas suas relações com estudos históricos
e o nacionalismo em processos identificatórios de imigrantes
Considerando Bruno Kiefer (1923-1987) em Baden-Württenberg: Baden e Heidelberg


Reflexões de outono em Heidelberg. Pelos 30 anos do falecimento de Bruno Kiefer
no ano do centenário de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e do Primeiro Congresso de Musicologia (1987)


 
Uma das personalidades que mais intensamente participaram do primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, levado a efeito pelo centenário de Heitor Villa-Lobos em São Paulo, de 27 de janeiro a 1° de fevereiro de 1987, foi Bruno Kiefer, vulto de alta erudição e influência em diferentes áreas do conhecimento e da educação, matemático, músico, compositor e professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor de várias obras de ampla difusão no Brasil.

Lembrar esta sua atuação e seus pronunciamentos transcorridos 30 anos do congresso é ato particularmente significativo, uma vez que pouco depois do congresso - a 27 de março de 1987 - veio a falecer, tendo sido essa sua participação a última atividade de cunho musicológico de maior relêvo de sua vida.

Os resultados de pesquisas e os pensamentos que então apresentou adquirem assim um significado especial como uma espécie de testamento público à comunidade de pequisadores de música e que merecem ser relembrados após três décadas da sua morte.

Lembrar Bruno Kiefer, suas obras e seu pensamento é de significado para os estudos de processos culturais em relações internacionais sob muitos aspectos, em particular para aqueles concernentes ao complexo das relações Alemanha/Brasil, a intercâmbios teuto-brasileiros, à atuação e a processos integrativos de alemães e seus descendentes no Brasil.

Nascido em Baden Baden, Bruno Kiefer veio para Santa Catarina e, a seguir, para o Rio Grande do Sul ainda muito jovem. Foi no Brasil que obteve grande parte de sua formação, realizou estudos superiores e atuou profissionalmente e no ensino, tanto na área das matemáticas como na música, na criação musical e no ensino.

Identificando-se como brasileiro, Bruno Kiefer pode ser visto como significativo exemplo de integração de alemães no meio brasileiro e de processos psicológicos e culturais vivenciados por imigrantes e que, em não raros casos, levam a intensos estudos da cultura da sua nova pátria e mesmo à tomada de posições de cunho nacionalista.

Esse fenômeno, apto a ser analisado em diferentes contextos, revelando aparentemente paradoxais relações entre processos integrativos e posições político-culturais e estéticas, adquire relevância para estudos do nacionalismo no Brasil e atualidade perante o recrudecimento de tendências nacionalistas, povísticas e identitárias no presente em diferentes nações, também na Alemanha.

Relações entre processos integrativos e identificatórios de migrantes com e suas posições político-culturais, seu pensamento estético e suas expressões nas artes vem sendo analisados em diversas ocasiões. Entre outros eventos, salienta-se o Seminário „Imigração e Estética“, levado a efeito em 2006/7 na Universidade de Colonia em cooperação com o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS). Neste sentido, uma das personalidades e suas obras consideradas no seminário realizado há dez anos foi Bruno Kiefer.

Uma das questões que mais vem sendo discutidas é aquela do singular conservadorismo de imigrantes no Exterior, resultante em parte da idealização a sua antiga terra natal, o que leva a interesse por tradições e características culturais do país de origem.

Há porém também a questão do processo integrativo no campo de tensão entre assimilação e diferenciação relativamente ao novo contexto cultural da terra que os acolhe e onde vivem. O exame desse processo adquire até mesmo prioridade no caso daqueles que sairam de seu país definitivamente como fugitivos, exilados ou expulsos, premidos por perseguições e coerções, como foi o caso dos judeus que tiveram que abandonar a Alemanha quando da tomada de poder dos nacionalsocialistas em 1933.

Sob esse aspecto das interações entre processos integrativos vivenciados por imigrantes e seus descendentes e posicionamentos político-culturais e estéticos é que os pronunciamentos de Bruno Kiefer no congresso de 1987 adquirem dimensões que extrapolam aquelas dos significados dos temas especificamente tratados.

Bruno Kiefer foi significativamente um dos participantes que mais se destacaram não só pela apresentação de estudo de obra de primordial relevância do nacionalismo musical - Trio Brasileiro de Lorenzo Fernandez (1897-1948) - como na apologia das concepções cívico-musicais do Canto Orfeônico de Villa Lobos.

Para além de sua comunicação, Bruno Kiefer destacou-se nos debates finais do congresso pela sua crítica à situação do ensino musical nas escolas brasileiras e pelos seus pronunciamentos a favor de uma Educação Musical segundo critérios e o espírito de Villa Lobos.

Uma de suas moções foi a de que o ensino musical voltasse a ter um núcleo definido de matérias de títulos claros e compreensíveis segundo a tradição do país. Não se deveria aceitar o desprezo a que teria sido relegado o Canto Orfeônico. O sistema de Villa Lobos deveria segundo êle ser o ponto de partida para a reflexão do problema da Educação Musical no Brasil.

Considerar a presença de Bruno Kiefer e o teor de seus posicionamentos nas sessões do congresso exige porém que se recapitulem em linhas gerais desenvolvimentos anteriores que tiveram lugar tanto no Brasil como na Alemanha.

Bruno Kiefer nos estudos musicológicos na Alemanha das últimas décadas

O significado de Bruno Kiefer nos estudos euro-brasileiros desenvolvidos na Alemanha desde 1974 explica-se pelo fato de ter nascido em Baden Baden, cidade do atual estado de Baden-Württenberg.

A primeira das publicações que o tornaram conhecido nos meios musicais foram estudos sobre a música alemã, em 1957 (Música Alemã - Dois Estudos, Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1957). Em seminários, conferências e eventos dedicados á música nas relações Alemanha-Brasil, assim como à música em regiões marcadas pela imigração centro-européia no sul o Brasil, o seu nome não poderia faltar.

Obras de Bruno Kiefer foram discutidas em seminários do Instituto de Musicologia de Colonia, tanto em seminários histórico-musicais em geral, em particular daqueles referentes a questões teóricas da Idade Média, como no âmbito antes etnomusicológico do projeto „Culturas Musicais da América Latina no século XIX“. (Veja)

Repetidamente, considerou-se o fato de ter sido aluno de Ênio de Freitas e Castro (1911-1975) que, como Francisco Curt Lange (1903-1997) em diversas ocasiões salientou, foi uma personalidade de erudição e significado insuficientemente valorizada na história da música e da pesquisa musical no Brasil.

Nos anos de 1980, a partir do primeiro Forum e Semana Brasil-Alemã de Música de Leichlingen/Colonia (Veja), publicações de Bruno Kiefer foram consideradas em seminários dedicados á música no Brasil, dando origem a debates que não foram isentos de controvérsias.

O fato de ser de origem alemã levou sobretudo a que composições suas fossem executadas em diversas ocasiões em eventos dedicados às relações Alemanha-Brasil. Assim, escolheu-se o seu Trio para violino, celo e piano (1959) para  a recepção da Embaixada do Brasil na Redoute de Bonn no dia 7 de setembro de 1999, data do encerramento do Congresso Internacional „Música e Visões“ pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil. abrindo, ao mesmo tempo, a série de eventos de triênio comemorativo.

Aproximações a antecedentes e contextos em Baden Baden em 2016


Antecedendo os 30 anos do Primeiro Congresso de Musicologia e, concomitantemente, os 30 anos de seu falecimento, Baden Baden ofereceu-se como local adequado para uma retomada, em 2016, de reflexões sobre Bruno Kiefer e o seu significado nas discussões sobre o nacionalismo no Brasil e os neo-nacionalismos no presente, também e sobretudo devido à presença de Villa Lobos na vida de concertos dessa importante cidade de águas.

Os estudos de 2016 puderam contar como texto-base uma obra recente que trata de forma documentada a grande emigração de Baden ao sul do Brasil no século XIX publicada pela Sociedade Badense-Sulbrasileira: Lothar Wiese, „Das hiesige Land gleicht einem Paradies“ – Die Auswanderung von Baden nach Brasilien im 19. Jahrhundert. Darstellungen und Quellen zur badischen Auswanderung/„Esta terra é um paraíso“ – A emigração badense ao Brasil no século XIX. Relatos e fontes da emigração badense, Badisch-Südbrasilianischen Gesellschaft, Karlsdorf Neuthard, Ubstadt Weiher/Heidelberg: Regionalkultur 2014, ISBN: 978-3-89735-863-8).

Procurada desde a Antiguidade pelas suas fontes e pela sua localização privilegiada, emoldurada pelas montanhas da Floresta Negra, Baden Baden tornou-se - juntamente com o seu cassino - uma das mais procuradas estâncias balneárias de políticos, artistas e intelectuais e, com isso centro cultural cosmopolita de cultivo da literatura, das artes e da música. Se hoje é importante cidade da mídia, da arte e de festivais internacionais, o seu significado para a história de relações e intercâmbios culturais é de longa data, sendo que os elos político-culturais com o Brasil já foram significativos no século XIX.

Como documentam as pinturas murais no histórico edifício das fontes de 1839-1842, Baden Baden foi marcado por correntes do pensamento romântico do século do Historismo nas suas relações com a história e com o estudo e valorização da tradição oral. A região desempenhou relevante papel no movimento nacional alemão da primeira metade do século XIX.

Os murais do edifício das fontes manifestam sentimentos nacionais e de patriotismo regional, de ímpetos de valorização de redescoberta de fatos do passado, de lendas e mitos, da procura de origens capazes de fornecer bases para uma cultura de características próprias e de fortalecimento de uma identidade de Baden, Grão-Ducado, estado do Império Alemão e independente até tornar-se parte do moderno Baden-Württenberg, configuração que une num todo regiões diferenciadas culturalmente.

O desfecho da Primeira Guerra Mundial, com a derrota do Império alemão, o fim do regime monárquico e dos estados até então regidos por dinastias, trouxe graves consequências para a auto-estima alemã, humilhado que foi o país com o tratado de Versailles. A situação foi agravada com a crise da economia mundial, que levou grandes segmentos da população ao desemprêgo e à pobreza.

Se como balneário de renome internacional, com a sua vida cultural e de jogos, Baden Baden foi por um lado centro visitado por pessoas de posses da alta burguesia, das finanças e do comércio do Exterior, em particular também dos países agora vitoriosos, de posicionamentos antes cosmopolitas, internacionalistas e econômico-liberais, por outro tornou-se centro de tendências nacionais-socialistas, levando a repressões e ataques contra judeus.

Com a lei da reintrodução do funcionalismo público profissional em 1933, os funcionários judeus passaram a ser discriminados. Em março esse ano, o „Gauleiter“ Robert Wagner nomeou-se a si próprio presidente de Estado em Baden. Premidos pelas repressálias e atingidos pela crise econômica, muitos judeus emigraram, sobretudo os mais jovens, abandonando a Alemanha para a Alsácia francesa, região próxima, ou para os Estados Unidos, para a Palestina ou outros países, entre êles o Brasil.

Como a cidade, porém, com os seus visitantes estrangeiros, muitos dos quais judeus, oferecia uma certa segurança contra discriminações, judeus de outras cidades da região, também sujeitos a repressálias, transferiram-se para Baden Baden, onde apenas em 1937 foi proibida a visita ao balneário por judeus. Até o início da Segunda Guerra, mais da metade da população judaica da região de Baden tinha saído do país. Deve-se sobretudo considerar que as repressões e perseguições raciais não atingiram apenas aqueles de religião judaica, mas também evangélicos e católicos.

Prosseguimento das reflexões em Heidelberg em 2017


Esses estudos levados a efeito em Baden Baden, em 2016, tiveram continuidade com reflexões encetadas por ocasião de visita de convidados brasileiros da A.B.E. a Heidelberg, em outubro de 2017. A escolha dessa cidade à margem do Necker, antiga cidade-residência do Palatinado e uma das mais procuradas por visitantes devido a seu patrimônio histórico e ao romantismo que emana das ruínas do seu burgo explica-se pelo fato de tratar-se de um dos grandes centros de estudos universitários da Alemanha. A sua universidade é uma das mais antigas instituições de ensino superior da Alemanha.

Aspectos das reflexões: Kiefer e a morfologia nas suas relações com a história

A presença de Bruno Kiefer no movimento de renovação teórica iniciado em São Paulo em meados da década de 1960 deu-se primeiramente na área da Morfologia ou Análise Musical. Essa disciplina, assim como a História da Música e o Folclore, demonstrava a necessidade de reflexões de natureza teórica, o que levou ao reconhecimento de uma reorientação da atenção a processos em tratamento interdisciplinar refletido.

Em encontros e conferências, em particular naquelas proferidas por representantes da matéria em conservatórios, discutiu-se a necessidade de renovação teórica não só dos estudos históricos e empíricos, mas sim também daqueles antes sistemáticos da Análise Musical. Esses debates prepararam a fundação do Centro de Pesquisas em Musicologia da sociedade então fundada e dedicada ao estudo de processos culturais (ND), e na qual se instituiu o curso de Teoria Desenvolvida, termo compreendido como Teoria da Música em desenvolvimentos histórico-culturais.

Essas iniciativas em São Paulo corresponderam a preocupações relativas à Análise Musical que se faziam sentir na época em outros contextos institucionais e regionais no Brasil, salientando-se, no Rio Grande do Sul, aquelas formuladas por Bruno Kiefer na sua História e significado das formas musicais: do moteto gótico à fuga do século XX (1966, 2a. e. Porto Alegre: Movimento 1970) e, a seguir, Elementos de linguagem musical (Porto Alegre, 1969).

A sua História e significado das formas musicais nascera de aulas que ministrara em seminários de música realizados em Porto Alegre e no interior do Rio Grande do Sul, sendo voltada não só aos estudantes de música como aos leigos interessados em ver a música em contexto mais geral.

Esse interesse, na convicção de Kiefer, apenas podia ser satisfeito por meio da análise formal. A partir dela é que tentou construir uma ponte entre a música e as demais artes e a outros aspectos da cultura.

Esse intento de Kiefer vinha de encontro a uma então generalizada opinião segundo a qual seria incompreensível a divisão entre História da Música e História da Arte, ou a não consideração da música na História das Artes e, vice-versa, das demais artes na música, convicção que seria de influência na posterior introdução da Educação Artística substituindo a Educação Musical nps estudos de Licenciatura.

A principal constatação de Kiefer, porém, foi a de ter percebido o perigo do tratamento de formas como „meros esquemas ou fôrmas“.

O reconhecimento de que esse procedimento era „um tanto simplista e matemático-racionalista“ por parte de um matemático, de um autor que tinha publicado no Instituto de Matemática da UFRGS uma obra sobre Equações Diferenciais de Primeira Ordem a Derivadas Parciais (Porto Alegre, 1964) surgia como altamente significativo também para o movimento nascido em São Paulo, marcado por outras interações interdisciplinares, em particular por concepções de osmose da química e por relações com a arquitetura.

„As formas musicais, como de resto todas as formas em arte, só podem ser compreendidas e sentidas quando colocadas dentro do contexto cultural da época que as gerou. (...)
Por isto tivemos o duplo empenho no sentido de colocar o estudo das formas musicais dentro e uma perspectiva histórica e no sentido de apontar sempre os elementos morfológicos em suas relações mútuas e seus significados“
(pág. 6)

Essa obra de Bruno Kiefer tornou-se um dos textos básicos para estudos quando da introdução da área de Estruturação Musical nos cursos de Licenciatura em Música e Educação Artística da Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo em 1972. Ela serviu na pesquisa dos motetos no Brasil e nas execuções com base nos materiais levantados pelo Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista sob a regência do editor entre 1972 e 1974, destacando-se o primeiro concerto exclusivamente dedicado a motetos brasileiros na igreja de S. Cristóvão do antigo Seminário de S. Paulo.

Neste concerto, vinha-se de encontro à lacuna constatada no capítulo dedicado ao moteto n Brasil da obra de Kiefer (pág. 253), apresentando-se motetos levantados em pesquisas.

A obra, sendo dedicada explicitamente ao estudo do moteto, foi, discutida com especialistas da pesquisa do moteto na Alemanha, em particular em reuniões com Heinrich Hüschen (1915-1993) e Karl-Gustav Fellerer (1902-1984).

No âmbito da música sacra, registrou-se que Kiefer cita vários compositores alemães do século XX, tanto evangélicos como católicos, então já considerados como representantes de uma época passada, marcada pelo movimento restaurador da música sacra remontante ao século XIX.

A História da música brasileira - assimilação de visões historiográficas nacionalistas

Poderia ser objeto de estudos biográficos pormenorizados considerar razões do crescente interesse manifestado por Bruno Kiefer pela história da música no Brasil e sua inserção na tradição historiográfica de cunho nacionalista.

Se uma obra como a História e significado das formas musicais, apesar de dedicar-se a uma temática „conservadora“ -  o moteto das suas origens a criações de compositores vinculados à tradição do século XX - viera de encontro a tendências progressistas de renovação teórico-musical, os seus estudos posteriores dedicados mais especificamente ao Brasil revelaram-se com maior evidência como representantes de uma corrente historiográfica que era questionada nos seus fundamentos conceituais por representar conceitos e visões de uma época político-cultural do passado.

A visão nacionalista de Kiefer manifestava-se já no título do seu grande projeto historiográfico, que não foi o de escrever uma história da música No Brasil, mas sim de uma história da música qualificada como brasileira. Retomando assim no seu título a obra de Renato Almeida (1895-1981), a história da música brasileira de Kiefer foi alvo de intensas discussões críticas em encontros de pesquisadores de diferentes países no âmbito do projeto „Culturas Musicais da América Latina“ no século XIX.

Já há anos tinha-se reconhecido que o principal problema dessa visão historiográfica residia na perspectivação do passado a partir de um referencial ideológico que divide processos históricos anteriores e posteriores, considerados como precedentes de uma situação que mereceria a adjetivação de brasileira.

Todo o desenvolvimento de séculos anterior ao marco estipulado passa a ser visto como preparatório, ou seja, não considerado e analisado a partir de seus próprios pressupostos e contextos.

A estipulação de um marco como referencial da interpretação de desenvolvimentos diz respeito à problemática da periodização histórica. Se na discussão a respeito iniciada na área de Metodologia da História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1969/1970, considerou-se repetiamente as dificulades resultantes de consideração de divisões da História Política na análise de desenvolvimentos histórico-musicais, o que se evidencia, entre outros, no uso da expressão „música colonial“.

O próprio Kiefer tinha sido um daqueles que abordara a questão da periodização da história na sua obra de 1966, tratando do problema da divisão da história em séculos.

„Concebemo-la como recurso didático à semelhança de barras de compasso numa peça musical. Quem estudou música sabe que o ritmo indepene fundamentalmente da métrica. Não obstante, as barras de compasso constituem um auxílio valioso.“ (História das formas musicais... op.cit. 7)

Para a estruturação de sua História da Música Brasileira, Kiefer estabeleceu como principal marco referencial não uma data da história política como a da proclamação da Independência, a da República, a Primeira Guerra Mundial, ou a dos 100 anos da Independência do Brasil em 1922, mas sim o da Semana de Arte Moderna realizada em 1922 em São Paulo. Assim, o primeiro volume de sua obra chegou até essa data.

As consequências dessa visão historiográfica para os estudos de processos culturais foram objeto de debates conduzidos em seminários de universidades e em correspondência. Tratava-se aqui de uma problemática de natureza fundamental que esteve às bases das preocupações que marcaram o início do movimento de renovação teórico-cultural que levou à criação da sociedade dedicada a estudos de processos culturais em 1968.

Com a escolha desse marco, Bruno Kiefer inseriu-se numa tradição de pensamento que, especialmente em São Paulo, foi compreensivelmente marcada por uma exaltação celebrativa dessa data e cuja problemática foi levantada em diferentes ocasiões. Considerou-se, entre outros aspectos, que essa celebração ofuscava a visão mais ampla para o verdadeiro marco transformativo de desenvolvimentos globais que foi o desfecho da Primeira Guerra Mundial, uma vez que trouxe mudanças de centros de referências e tendências internacionais, marcados agora decididamente pelo contexto dos países vencedores, em particular pela França e pelos EUA.

Parece ser compreensível, para um autor que vivenciou os problemas na Alemanha derrotada pós-Guerra e tendo sido obrigado a emigrar, que se integrasse no universo dos aliados, daqueles que tinham sido da Entente contra as potências centrais. O nacionalismo assim definido não é aquele alemão e muito menos do nacionalsocialismo, baseado antes na concepção povista de comunidade de povo a partir da ascendência racial, mas sim o de uma visão de estado nacional que congrega diferentes grupos étnicos e que atinge, após longo desenvolvimento de múltiplas miscigenações por fim uma situação de compleição.

Consequências da visão historiográfica para os estudos de música e dança populares

A visão da história de Kiefer foi discutida também e sobretudo nas suas consequências para os estudos de música e dança de tradições populares.

Também aqui esse debate remonta a meados da década de 1960, quando reconheceu-se que a história assim concebida e referenciada levava a problemas nos estudos do folclore, área então marcada por preocupações de renovação teórico-cultural.

Considerando que o período posterior a 1922 era por demais vasto e complexo devido à quantidade de materiais, e também por razões pragmáticas decorrentes da ausência de textos para cursos de música brasileira, Kiefer decidiu publicar o segundo volume da sua História da Música Brasileira por partes. Assim, publicou A modinha e o lundu (1978) e Música e dança popular (1979), livros que revelam os seus esforços de coligir dados e opiniões da literatura quanto a origens e desenvolvimentos.

Segundo procedimentos similares a autores nacionalistas do passado, o autor parte da música e a dança popular como fontes de uma música que teria por fim adquirido qualidades que a poderiam designar como brasileira.

Pelo significado dos assuntos tratados sob a perspectiva dos estudos de processos culturais, essas obras foram repetidamente objeto de atenções e discussões críticas em seminários e eventos. Os dados e as hipóteses relativos às expressões consideradas não correspondiam aos resultados mais recentes das pesquisas, reconhecendo-se que esse problema resultava de uma insuficiente consideração as dimensões mais amplas de processos, ou seja, decorrentes da visão historiográfica.

Muitos foram os aspectos questionados e tratados com o autor e em correspondência com outros pesquisadores culturais do Brasil e do Exterior. Entre outros, debateu-se criticamente a afirmação de Kiefer de que seria „ponto pacífico entre os musicólogos que a modinha e o lundu são as raízes da música popular brasileira“ (pág.7). Também questionada e refutada foi a sua afirmação de que seria „ponto pacífico, hoje, que o lundu descende diretamente do batuque dos negros“. (pág. 31)

Debate sobre concepções essencialistas de brasilidade

O problema teórico mais discutido foi o do essencialismo nas conceituações e interpretações de autores representantes do pensamento nacionalista como Kiefer.

O essencialismo manifesta-se já no título da obra, uma vez que trata de uma música adjetivada como brasileira. Quando se trata de música francesa ou música alemã, compreende-se, em geral, música de compositores franceses ou alemães, não música que se utiliza de elementos de tradições ou da cultura popular ou que exprima necessariamente valores ou características culturais francesas ou alemãs.

Na acepção da História da Música Brasileira, porém, o interesse do pesquisador é procurar a „essência musical de um modo de ser“ já em expressões populares do passado que seriam fontes de uma música essencialmente brasileira.

„O estudo comparativo permite-nos formar a imagem daquilo que seria a essência musical da modinha brasileira urbana, essência musical de um modo de ser especificamente nosso em termos de sentimento amoroso. Claro, essa essência nem sempre se reliza de um modo puro. Muitas vezes apenas é possível vislumbrá-la no matagal de ornamentos do bel canto ou de outras reminiscências operísticas“. (pág. 23)

Bruno Kiefer e os estudos de Villa-Lobos

A essas obras que tratavam de fontes populares seguiu-se, como parte de sua História da Música Brasileira, o livro Villa-Lobos e o Modernismo na Música Brasileira (Porto Alegre: Movimento, 1981). Nele, segundo as suas palavras, Kiefer procurou não fazer um trabalho de cunho laudatório, como muitos outros, mas um estudo crítico, equilibrado, capaz de revelar o que a sua obra teria de definitivo.

Levando em consideração colocações de outros autores e analisando obras, procurou enquadrar o compositor no contexto de sua época e a relevância „universal“ de sua obra.

Essa universalidade mencionada por Kiefer não é, porém, compreendida no sentido de uma consideração do desenvolvimento do compositor nas suas inscrições em processos político-culturais globais da sua época e dos contextos criados pelo desfecho da Primeira Guerra, ainda que reconheça que seria de conhecimento geral que a Semana de Arte Moderna de 1922 não foi „o início do movimento modernista, mas tão somente seu instante de detonação“. (pág. 68)

Documentando mais uma vez de forma expressiva a visão historiográfica que estabelece a Semana de 1922 como referencial e marco periodizador, Kiefer trata, no primeiro capítulo, da trajetória de Villa Lobos até 1922, chegando até a participação do compositor na Semana de Arte Moderna. O capítulo II é então inteiramente dedicado ao tema „A Semana de Arte Moderna e a Música Brasileira“, seguindo-se então a apresentação de traços biográficos de Villa Lobos no capítulo III e considerações em torno de algumas obras posteriores a 1930 no capítulo IV.

Nessa obra, Bruno Kiefer revela a sua atenção ao fomento da prática orfeônica de Heitor Villa-Lobos à época de Getúlio Vargas.

É sob o pano de fundo das suas considerações nessa obra que se desenvolveram os debates na sessão final do Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia pelo Centenário do compositor, quando Kiefer - mais do que qualquer um dos presentes - levantou a sua voz pelo retorno do Canto Orfeônico nas escolas segundo a tradição do pensamento de Villa Lobos.

Talvez um dos mais expressivos pronunciamentos para o estudo o pensamento de Bruno Kiefer encontra-se no texto de suas apreciações de obras de Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e que parecem refletir a sua própria experiência de vida:

„Seja como for, Carlos Gomes entrou na história da nossa música (erudita) pela vontade de voltar-se para as coisas da nossa terra. Nesse contexto, é bom lembrar que é mais fácil adotar uma posição ‚nacionalista‘ - como diriam mais tarde - escolhendo títulos, textos ou assuntos em correspondência com essa posição, enfim algo que pode ser decidido racionalmente, do que traduzir musicalmente algo que ainda está em formação: nosso modo de sentir. De resto, sentimentos não obedecem a comandos racionais! O tempo moifica vagarosamente as pessoas e, até o modo de se adquirir expressão artística correspondente, é longo o caminho a percorrer“. („A obra pianística de Antônio Carlos Gomes“, Carlos Gomes: Uma obra em foco, Rio de Janeiro:FUNARTE/Instituto Nacional de Música, Projeto Memória Musical Brasileira, 1987, 35ss,42)



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A..“ O pensamento sistemático da análise musical nas suas relações com estudos históricos
e o nacionalismo em processos identificatórios de imigrantes. Considerando Bruno Kiefer (1923-1987) em Baden-Württenberg: Baden e Heidelberg pelos 30 anos de seu falecimento“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 169/(2017:5).http://revista.brasil-europa.eu/169/Bruno_Kiefer_e_Bispo.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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