Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..


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Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..


Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..


Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..


Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..


Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 152/4 (2014:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N°3142






Deutsch-Brasilianische Musikschulwoche
Semana Alemã-Brasileira da Escola de Música de Leichlingen de 1982
Marco da Educação de orientação científico-cultural referenciadas pelo Brasil na Alemanha

Leichlingen-São João del Rey (MG)


 
Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..
Na história das relações entre Ciência e Educação, - em particular daquelas entre Ciência(s) da Cultura, o ensino da música e das artes em geral e Educação Musical e Artística -, as Semanas de Artes e Música promovidas por instituições educacionais no Brasil e na Alemanha merecem ser consideradas com atenção.

Incluindo exposições e concertos abertos ao público, conferências e sessões de estudos, sendo preparadas tanto por especialistas nas diversas áreas, professores e estudantes, como por músicos e artistas não pertencentes ao meio acadêmico e escolar, estabelecem pontes várias entre docentes, estudantes, artistas e músicos, entre instituições de ensino de vários graus e a sociedade, entre a vida acadêmica e em instituições superiores e do ensino médio com a vida cultural em geral.


Mais do que simples „dias de portas abertas“, as semanas oferecem possibilidades de interações múltiplas entre o meio acadêmico, o de ensino escolar e a prática musical e artística, delas originando-se impulsos em várias direções, muitos dos quais marcando de forma duradoura tendências do pensamento e da praxis nos estudos, na pesquisa, na formação de professores, na prática de ensino, na vida e mesmo na política cultural.


Semana de música ou de artes como forum - Semana Alemã-Brasileira de 1982


Nesse sentido, uma semana de música ou de artes desempenha o papel de um forum de encontros de áreas disciplinares e esferas de vida e de ação, de relações entre Educação, Música, Pesquisa Científica e Estudos Culturais.


Foram essas relações entre o conceito de Semana de Música na tradição educativa de escolas de ensino musical e de formação de professores e de Forum que justificaram o emprêgo de ambos os conceitos em estreita vinculação mútua no âmbito Brasil-Alemanha na primeira iniciativa desse gênero levada a efeito em 1982 na cidade de Leichlingen, na Renânia do Norte-Vestfália.


Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..
Esse evento, realizado sob o patrocínio da Embaixada do Brasil na Alemanha, e aberto pelo diplomata Sérgio Cunha, foi pioneiro em muitos sentidos e marco inicial de desenvolvimentos que se prolongam até o presente, devendo assim ser recordado.


Serviu ao mesmo tempo para a apresentação pública de concepções e de trabalhos prático-musicais e de ensino nelas fundamentados e para a discussão e proposição de caminhos que foram seguidos em eventos do mesmo gênero que se seguiram.


Foi também uma primeira ocasião de representação na Europa de correntes de pensamento e orientações originadas no Brasil, da presença mais ampla do Brasil na discussão educativo-musical na Alemanha e da integração de alunos que se ocuparam com a música e questões músico-culturais do Brasil na vida musical de uma cidade alemã.


Vida escolar nas suas relações com a vida cultural

A Semana Alemã-Brasileira da Escola de Música de Leichlingen (Deutsch-Brasilianische Musikschulwoche) teve lugar de 26 de setembro a 1 de outubro de 1982.

Ela foi realizada pela Escola de Música de Leichlingen, que passara a ter direção brasileiranova direçãoprimeira instituição do gênero vinculada à organização-teto do ensino musical na Alemanha - o  Verband Deutscher Musikschulen - a ter uma orientação brasileira, estreitamente vinculada à pesquisa musicológica em relações Brasil-Alemanha.

Essa instituição integrava o Departamento de Cultura da cidade, de modo que o seu trabalho e a vida escolar eram vistos como parte da vida cultural da cidade.


A presença brasileira, assim, ultrapassava os limites escolares, fazendo-se sentir na programação de concertos e outros eventos e, vice-versa, a vida musical da cidade tinha repercussões no ensino musical, participando alunos de forma ativa ou como assistentes em concertos e outras manifestações artísticas municipais.


©Arquivo A.B.E..
Nessas suas relações com a vida e a política cultural da cidade, a Escola de Música fundamentava as suas atividades em concepções de vida escolar de antiga tradição na Alemanha e que passavam a ser lembradas devido a tendências normativas que levavam a excessivo acento de uma orientação científica do ensino musical na Alemanha.


O conceito de „vida escolar“, predominante no debate educativo desde o século XIX, levara a reformas da escola secundária sob o signo de uma adequação da escola à vida. O conceito marcou o caminho de medidas educativas e representou ponto de partida de posições contrárias a uma idéia de escola cuja primordial função seria a da transmissão de conhecimentos e aptidões, regularmente controlados. As visões baseadas no conceito de „vida“ preconizavam uma vida escolar configurada que abrisse caminhos a uma escola formativo-cultural. (Veja)


Consideração da Educação Musical de diferentes nações e orientação teórico-cultural


A relembrança desse conceito do passado no debate educativo da época na Alemanha não queria ser apenas expressão de um lugar comum, nem de convicções utilitaristas e que compreendiam a escola primordialmente como preparo de novas gerações à luta competitiva e existencial.


Preconizava-se por diferentes lados uma proximidade à vida no sentido de uma partida do presente, de expressões musicais e tendências culturais atuais e do âmbito de vida do aluno e da sociedade.


No caso da orientação brasileira a que passava a ter a Escola de Música, abria-se aqui a dimensão da proximidade da vida escolar a desenvolvimentos multi- e interculturais que se faziam sentir de forma crescente na Alemanha e, neste sentido, da necessária consideração de tendências do pensamento e da prática do ensino musical em outros contextos culturais.


O interesse pela situação e características do ensino musical dos diferentes países manifestava-se na época de forma acentuada em publicações especializadas. Tratava-se, assim, na época, de questões da Educação Musical no Japão, nos
Estados Unidos ou na Finlândia.


Já em pronunciamentos inaugurais do trabalho da Escola de Música sob direção brasileira, salientou-se, porém, que esse interesse por desenvolvimentos educativo-musicais nas diferentes nações não deveria ser meramente informativo ou ilustrativo, mas de uma Pedagogia Musical comparada no sentido abrangente.


Esse sentido amplo correspondia à renovação que se discutia no âmbito musicológico relativamente à antiga Musicologia Comparada ou Comparativa, uma área de estudos que - no sentido do programa de interações brasileiro - passava a ter orientação antropológico-cultural em relações internacionais.


Somente assim poder-se-ia esperar o alcance de fundamentos para uma atividade educacional que correspondesse à situação de diversidade cultural que passava a acentuar-se.


Agindo local e pensando global - Brasil, Alemanha/França e interamericanismo


Do lado brasileiro, a Semana de Música Alemã-Brasileira pôde contar com experiências de um evento que marcou época no Brasil, dando a êle prosseguimento em contexto internacional: o da Semana da Arte da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, de 24 a 29 de junho de 1974.


Pelo número e diversidade de eventos que a sua programação incluiu, de seus participantes e de seu público, foi este o maior e mais significativo empreendimento do gênero até então realizado. (Veja)


O fato da cidade manter contatos e parcerias com cidades de outros países - em particular aqui com a Argentina (Bariloche) e a França (Marly-le-Roi) - favoreceu de início colaborações internacionais com escolas de música, e que incluiram viagens para visitas recíprocas e apresentações.


O ensino e as atividades da Escola de Música surgiam como necessária complementação do ensino da música do ciclo secundário e da formação instrumental e prática musical no
âmbito das igrejas, em particular da Kantorei da igreja evangélica local, de renome que ultrapassava as fronteiras regionais pela sua qualidade e repertório.


Esses elos exigiam a consideração da legislação, dos problemas e das tendências do ensino da música nas escolas secundárias do ginásio e de
classes superiores do secundário - correspondente em parte ao colegial no Brasil -, então em transformação devido a determinações oficiais.


O debate alemão referente ao ensino da música nas escolas foi assim necessáriamente considerado também com relação ao ensino especializado da Escola de Música.


Renomado professor norte-americano do ensino secundário - também musicólogo - passou a fazer do corpo docente da Escola de Música. Explica-se, assim, a proximidade à esfera da Educação em geral e a cooperação com especialistas e pesquisadores da área da pedagogia, sendo que educadores assim formados passaram a atuar como docentes na Escola.


O significado da prática musical de igreja na cidade marcou também as concepções e as atividades de ensino da Escola. Esta oferecia uma oportunidade de formação musical não confessional, garantindo a função secular a ser mantida pela política e administração.


Ao mesmo tempo, aproximava o debate educativo-musical à problemática da música sacra, então na consciência de amplos círculos da pesquisa, das artes e da sociedade devido às reformas conciliares que, em regiões católicas da Alemanha despertavam preocupações, mas também expectativas e entusiasmo renovador, o que se refletia também em círculos protestantes. Essa situação vinha de encontro assim ao desenvolvimento das discussões referentes ao Brasil e às interações internacionais que haviam levado em 1981, ao simpósio internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ em São Paulo. (Veja)


Compreende-se, assim que a discussão relativa a uma renovação segundo orientação teórico-cultural da pequisa do Canto Gregoriano - e da pedagogia Ward com êle relacionada - estivesse representada já no início dos trabalhos do Leichlinger Forum, assim como a do resgate da música sacra brasileira do passado coro-orquestral do século XIX na primeira Semana de Música Alemã-Brasileira. As atividades e as reflexões educativo-musicais deram sequência assim  aos debates do simpósio levado a efeito em São Paulo e, em particular, à sessão que se seguiu em Petrópolis. (Veja) Questões de Educação Musical haviam sido discutidas no contexto de relações entre a prática musical de igrejas e a política cultural, tanto no Brasil como na Alemanha, aqui em conferência de Hans Lonnendonker  (1920-2007) da Escola Superior de Música Saarbrücken, considerando-se, em particular, o movimento coral e coros infantís.


Em Petrópolis, aspectos relativos a coros infantís e juvenís e à inserção dos Canarinhos no movimento internacional de coros de meninos na situação de mudança da prática musical litúrgica tinham sido tratados em particular pelo Frei José Luís Prim O.F.M. (1935-2013). (Veja)


A prática coral da Escola de Leichlingen desenvolveu-se assim em continuidade às reflexões e tendências dessas atividades internacionais relacionadas com o Brasil, inserindo-se ao mesmo tempo nas discussões relativas à prática coral no ensino musical da Alemanha e que então se manifestavam em publicações especializadas.


Além do mais, a direção da Kantorei de Leichlingen distinguia-se pela sua orientação musicológica, que levara à redescoberta de obras de compositor caído em esquecimento e que pertencia ao contexto de formação e de primeiras atividades de Martin Braunwieser (1901-1991), vulto da história do ensino musical e da formação de professores de música no Brasil e mentor dos trabalhos euro-brasileiros. (Veja)


Sob diferentes aspectos, assim, a orientação dos trabalhos adquirira uma orientação científica, não apenas no referente às Ciências da Educação e à Musicologia. Aqui, os elos mais estreitos eram com o Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia. Vários musicólogos da Alemanha e do Exterior participaram das atividades de ensino e culturais da instituição, podendo-se aqui salientar Francisco Curt Lange (1903-1997) por garantir a inserção do debate sôbre o ensino e a formação musical na história e no desenvolvimento presente tanto musicológico como educativo nas Américas e no interamericanismo.


A cooperação com o Brasil procedeu-se sobretudo através da Sociedade Brasileira de Musicologia (SBM), constituída em 1981, tornando-se a escola sede da representação da sociedade na Europa. A realização da Semana Alemã-Brasileira foi inaugurada com concerto comemorativo pelo primeiro ano de existência da SBM. Nessas interações entre o Brasil e a Alemanha, atuaram sobretudo pesquisadores, professores e músicos vinculados à SBM e ao debate educativo, entre êles Roberto Schnorrenberg, Cleofe Person de Mattos, Luís Heitor Corrêa de Azevedo e Pe. Jaime Alves Diniz.



Inserção na tradição das Semanas Federais de Música Escolar na Alemanha


Do lado alemão, a Semana de Música Alemã-Brasileira de 1982 foi uma resposta do programa de renovação disciplinar segundo orientação nascida no Brasil à XIV Semana Federal de Música de Escola (Bundesschulmusikwoche) que se realizava em Berlim naquele ano e que tinha como tema „Educação Musical Escolar e Cultura Musical“. (Veja)


Essa semana inseria-se numa longa tradição se semanas de música a nível federal na Alemanha, também ali consideradas como verdadeiras edições de um amplo forum músico-pedagógico, uma vez que as conferências publicadas serviam como orientação à prática de ensino e ao prosseguimento das reflexões nos círculos especializados.


O principal motivo que justificava a realização de uma Semana de Escola de Música Alemã-Brasileira foi a de que a Bundesschulmusikwoche daquele ano tematizava o tema Cultura Musical, empregando assim um conceito que era de central importância no programa de interações internacionais iniciado em 1974 na Europa.


Não sendo assim absolutamente novidade, cumpria trazer à luz o desenvolvimento do pensamento e as iniciativas anteriores, partidas do Brasil para que não houvesse recapitulações ou mesmo retrocessos.


A orientação do programa que estava sendo desenvolvido era fundamentalmente marcada por uma orientação das atenções a processos - não a esferas culturais de erudita, folclórica e popular -, um intento que possuia implicações amplas, pois procurava superar categorizações de objetos na pesquisa e suas aplicações, também no ensino. Entre elas, esse direcionamento colocava em questão também concepções que emprestavam a objetos de atenções cunho de entidade ou de substância, como no caso de qualificações nacionais de música e cultura musical.


Essa discussão era facilitada na Alemanha pelo mal-estar que causava a designação de música alemã no seu sentido qualificador, e que lembrava concepções de tenebroso passado nacionalsocialista. Essa sensibilidade para os problemas relacionados com essa adjetivação - se compreendida de forma categorizadora - não se encontrava ainda no Brasil, fato explicável pelo fato de não ter o país vivenciado de forma tão crucial os problemas do totalitarismo como na Alemanha.


Até mesmo constatava-se no Brasil uma revitalização de concepções do passado nacionalista no âmbito das reformas pós-conciliares, levando a uma procura de linguagem musical própria a partir do emprêgo de elementos formais, melódicos, rítmicos da mais diversa proveniência do folclore.


Se nesse desencontro entre a Alemanha e o Brasil, encontrava-se a primeira mais avançada quanto à sensibilidade para os problemas de qualificação nacional e nacionalista da música como objeto de estudos e de ensino, o Brasil tinha o privilégio de ter reconhecido causas mais básicas e abrangentes dessa problemática, preconizando uma mudança de modos de pensar e de agir que procurasse superar de modo amplo e coerente as dificuldades que se colocavam às áreas culturais relacionadas com a música através da focalização de processualidades.


Sob o pano de fundo dessa discussão e do posicionamento teórico desenvolvido no Brasil relativamente a enfoques dirigidos a processos, compreende-se a atenção dada à recepção musical nas atividades da Escola e na Semana Alemã-Brasileira.


O significado de estudos voltados à recepção musical e sua história no Brasil já havia sido salientado em trabalhos anteriores de relações entre a Alemanha e o Brasil, e que teve a sua expressão em coletânea de textos preparada como ponto de partida de discussões no simpósio internacional de São Paulo. Nas atividades da Escola e na Semana Alemã-Brasil, o complexo temático relacionado com a recepção foi retomado em curso de História da Música no Brasil oferecido aos alunos da Escola de Música e aberto ao público, o primeiro do gênero na Alemanha.


O tratamento do tema, acentuou aqui a reciprocidade de processos receptivos, no caso não só o da música alemã - e européia em geral no Brasil, como o da recepção da música brasileira na Alemanha. Esse curso veio de encontro também à atualidade de questões relativas a uma didática da história da recepção musical no debate educativo alemão da época. (Veja)



Autores em concertos nos seu sentido programático - Villa-Lobos (1887-1959)


Os complexos tratados no curso de História da Música do Brasil sob a perspectiva de processos culturais e da recepção musical puderam ser exemplificados em concertos que fizeram parte da programação da Semana, que a ela precederam e a ela se seguiram. A conferência de abertura do ciclo „Música do Mundo - Brasil“, dedicado a questões históricas no tratamento de processos músico-culturais, foi emoldurada por concerto do violonista japonês Yoichi Sato, formado pela Escola Superior de Música de Colonia e docente da instituição.


Esse concerto trazia à consciência o movimento de valorização desse instrumento e do seu significado simbólico-cultural e importância na prática de ensino já em andamento no Brasil e que tinha sido considerado na Semana da Arte em São Paulo em 1974. O programa apresentado constou de obras de Heitor Villa-Lobos (Estudos 5,7,8,11; Prelúdio 1, Choro 1). Esse concerto foi seguido de colóquio de professores e alunos a respeito de Villa-Lobos e sua obra.


Em comemoração de um ano da fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia, incluiu-se na programação um concerto de Matias de Oliveira Pinto (violoncelo) e Huigiong Suh (piano), com obras de Franz Schubert (1797-1828), Johannes Brahms (1833-1897), e, novamente, Heitor Villa-Lobos. Além da Pequena Suite do compositor, executou-se a Seresta escrita em homenagem a Villa-Lobos por Edino Krieger (1928-).


Transpasse de esferas musicais como preocupação nas reflexões e na prática


Publicações sôbre o ensino musical na Alemanha orientado pela idéia da „proximidade à vida“ davam à época particular atenção à inclusão da música popular e do jazz no ensino. Essa abertura de transpasse de esferas musicais na Educação Musical vinha de encontro à orientação de origem brasileira de direcionamento da atenção a processos.


Esta orientação era muito mais abrangente, implicando não apenas na consideração de música popular da atualidade, mas em visão também dirigida a fenômenos e desenvolvimentos musicais intermediários entre predeterminadas esferas culturais e pouco consideradas na pesquisa histórica e cultural, e muito menos na prática de ensino.


Pela primeira vez, assim, incluiu-se música de salão do Brasil de forma planificada no ensino musical na Alemanha, ao lado de música popular mais recente, em particular de bossa-nova, exemplo por excelência do significado da recepção de música brasileira na Europa da época. A preparação das crianças e jovens alemães para a realização desse concerto ficou a cargo da docente e pianista brasileira Sueli Bispo Steden.


Os autores e as peças apresentadas no recital „Música de Salão e Popular nos Trópicos“ possibilitaram a discussão em sala de aula e em colóquios que se seguiram ao concerto dos alunos de vários aspectos dos estudos da música popular brasileira ou de história da música de condução cultural: a do brilhantismo de obras brilhantes para piano do século XIX (Arthur Napoleão, Estrella Chilena op. 73), de música de dança em elaborações para a prática doméstica (Aurélio Cavalcanti, Garbosa, polka); de modinhas (Luís Júnior, A Flor da Pitangueira); de choro (José Leocádio, Paraquedista), dando-se particular atenção a Ernesto Nazareth (Expansiva, valsa; Você bem sabe, Polka lundú; Fon-fon, tango brasileiro; Odeon, tango brasileiro; Brejeiro, tango) e Zequinha de Abreu (Branca, valsa; Tico-Tico no Fubá, choro sapeca).


Da atualiade, as diferentes correntes do samba e, em particular a bossa nova foram representadas por peças de Antonio Carlos Jobim (É preciso dizer Adeus, samba-canção); João Mello (Sambou...sambou...samba; Chega de saudade, bossa nova); Dorival Caymmi (Doralice, bossa nova); Roberto Menescal (O Telefone, bossa nova); Baden Powell (Deixa, samba); Chico Buarque de Hollanda (Tem mais samba, bossa nova) e Toquinho (Como diza o poeta).


Música para flautas no Brasil na Alemanha: Ernst Mahle e Osvaldo Lacerda


No decorrer dos encontros preparatórios com docentes para a Semana e na procura de possibilidades de inclusão da música brasileira na sua diversidade no ensino dos mais diversos níveis e faixas etárias, lembrou-se não apenas de melodias folclóricas e canções, como também do repertório para flautas-doce de compositores brasileiros.


Essas peças, criadas também no Brasil para fins de ensino musical e, ao mesmo tempo, destinadas a valorizar o instrumento, foram consideradas pela primeira vez na prática de ensino sistemática na Alemanha pelos conjuntos de música antiga da Escola, dirigidos por Inge und Willi Hopstätter. Esses grupos apresentaram-se em apresentação de encerramento da Semana executando peças de Ernst Mahle e Osvaldo Lacerda.


Matinas do Natal do Pe. José Maria Xavier (1819-1887) sob regência de escolar


Ponto alto da programação de encerramento da Semana foi a apresentação, por coro formado por alunos da Escola das „Matinas do Natal de Nosse Senhor Jesus Cristo a quatro vozes e pequena orquestra“ de 1885, do compositor mineiro Pe. Jose Maria Xavier.


O concerto foi dirigido por Andreas Redlin, um jovem dos cursos mais avançados da Escola. Com essa execução, estabeleceu-se uma ponte entre as experiências e os contatos em São João del Rey, em 1970, e que marcaram determinantemente a discussão sobre o repertório submerso do passado musical coro-orquestral brasileiro, assim como relações entre tradição e inovação, entre história da música e estudos culturais, o Simpósio Internacional que se realizara em S. Paulo em 1981 e que incluira a obra na sua programação (Veja), e a consideração do Brasil no ensino musical da Alemanha sob a perspectiva dos estudos de recepção na sua reciprocidade.


A partir dessa obra, todo um complexo de questões pôde ser tratado em cursos e ensaios preparatórios. O caderno do Leichlinger Musikforum publicado por ocasião da Semana incluiu uma reprodução de toda a partitura, originalmente editada em Munique. Essa publicação foi precedida por um texto explicativo:


„As Matinas de Natal do Nosso Senhor Jesus Christo“ do Pe. José Maria Xavier (1819-1887) adquire sob muitos aspectos significado histórico-musical no âmbito da revalorização do século XIX.


O compositor provém de um dos mais importantes centros do cultivo musical do Brasil do século passado, a pequena cidade de São João del Rey no Estado de Minas Gerais, no qual a rica vida musical remontante ao período colonial pôde manter-se.


A obra é uma das raras composições sacro-musicais impressas de autor brasileiro dessa época. Foi, singularmente, impressa em 1885 em Munique.


Como uma matutina, em alemão „Mette“, a composição refere-se à primeira Hora do ofício da Igreja Católica. As antigas designações de Vigiliae e Noturno indicam a sua posição no officium nocturnum. Na noite, ela é celebrada hoje apenas no Natal; nos outros dias é cantada em geral na noite anterior ou na manhã seguinte. As „Matinas de Natal“ é uma das poucas peças conhecidas de Ofício no estilo da música sacra de acompanhamento orquestral, como era de comum uso no século XIX, em particular em países latinos. De interesse é a alternância de uma textura homofônica então comum com o Canto Gregoriana, cuja execução era em São João del Rey marcada por certas singularidades.


Devido à sua relativamente fácil execução e a sua concepção simples, a obra surge como adequada para um coro e orquestra de alunos de Escola de Música. Disso fala a experiência da sua realização recente, em 1981, pela Orquestra Jovem de São Paulo, pelo coro da Universidade Católica de São Paulo em conjunto com o coro do Conservatório Ernesto Nazareth. Os jovens dedicaram-se com entusiasmo a essa tarefa e ocuparam-se assim intensivamente com a música do século XIX, um século que é, ao mesmo tempo, tão próximo e tão distante do homem atual.“


Palavras introdutórias: aproximação de Leichlingen e São João del Rey no Humano


„Prezados alunos,


antes de ouvirmos a última obra do nosso programa e que encerra a Semana Alemã-Brasileira da Escola de Música, gostaria de dizer-lhes porque escolhemos essa composição.


A favor dessa obra fala, em primeiro lugar, o fato de ter sido muito provavelmente a primeira composição brasileira de maiores dimensões publicada na Alemanha, a saber, em Munique, em junho de 1885. Quase um século mais tarde, no ano passado, foi ela novamente publicada na Alemanha, editada pela Escola de Música.


Mais importante porém do que essas razões motivadores é o fato de que essa obra representa um estilo musical de forma exemplar que foi de grande significado para o Brasil: esse meio clássico, meio popular, fortemente italianizado estilo da música sacra com acompanhamento orquestral que marcou a história da música do Brasil dos séculos XVIII e XIX.

Uma música que parece estranha à compreensão atual de música sacra na Europa Central.


Importante é não por último o local de origem dessa composição, assim como a prática de execução e a sua realização sonora.


Aqui gostaria de contar-lhes, para tornar mais viva a imagem, uma vivência pessoal. Há 13 anos, em 1969, visitei a cidade de São João del Rey no Estado de Minas Gerais, há ca. de 700 quilômentros de São Paulo. Queria aproveitar os feriados da Semana Santa para visitar os edifícios históricos dessa cidade. Esta localidade, mais ou menos tão grande quanto Leichlingen, é situada em bonita paisagem e possui muitas igrejas magníficas do passado. No próprio dia da minha chegada, levei uma surprêsa ao ouvir a música que se fazia numa das igrejas que visitei. Essa música, alegre, soava estranha a meus ouvidos, extremamente inadequada para a Semana Santa, sendo além do mais executada aparentemente muito mal, mas apesar de tudo extraordinariamente impressionante na sua ingenuidade e força convincente, resultante de um real entusiasmo em fazer música de músicos e cantores.


Nos dias que se seguiram fiz conhecimento com o maestro e vários músicos da cidade, passando a tomar parte no coro durante as solenidades da Semana Santa. A minha admiração e o meu respeito perante o desempenho dos músicos locais cresceu a cada execução. Os instrumentistas e os cantores, pertencentes a uma associação orquestral bi-centenária, provinham em parte de camadas modestas da população. Alguns não tinham formação escolar, mas sabiam cantar lendo correntemente partituras à primeira vista, e sabiam de cor os textos latinos das solenidades litúrgicas que duravam às vezes 4 ou 5 horas. Cantavam ou tocavam a partir de manuscritos originais ou cópias antigas, liam nas antigas claves e transpunham com facilidade. Alguns tocavam instrumentos reformados por êles próprios. O repertório do coro e da orquestra abrangia obras européias dos séculos XVIII e XIX e, sobretudo, composições de músicos da cidade do passado.


Infelizmente, não tenho nenhuma gravação da composição que hoje vamos ouvir, tenho porém, de outras obras do mesmo compositor, o Pe. José Maria Xavier, falecida pela passagem do século. Vamos ouvir agora um pequeno trecho de sua música da Semana Santa, executada pela orquestra local durante a minha visita à cidade.


O que pode-se supor ser um caos e confusão, não deve, porém, ser visto como resultado de um baixo nível de execução, mas sim como resultado de uma outra concepção musical. Os ensaios que pude assistir demonstraram que a intenção dos músicos não era primordialmente a de uma reprodução exata da partitura ou o cuidado pela afinação e homogeneidade do todo, mas antes a participação viva num estado de espírito, cuja expressão ficava em grande parte entregue a cada indivíduo.


Assim, a música, em cada execução adquiria novas características através de improvisações, cortes de vozes e modificações de texto e parafrases. Importante parecia ser sobretudo que a música não fosse sem vida, aborrecida. O músico como indivíduo surgia em primeiro plano na sua alegria de fazer música, e a imagem sonora total de uma composição resultava consequentemente da comunhão de interpretações individuais.


Como em São João del Rey, também tomam parte na nossa execução de hoje ao lado de professores de música e músicos formados, crianças e jovens da Escola que em parte começaram a estudar música há apenas alguns meses e que nunca antes tomaram parte de um coro ou de uma orquestra.


O que, além do mais, nos une com os músicos de S. João del Rey é a grande alegria do cantar e do tocar e que marcou os nossos ensaios dos últimos dias. Assim, a autenticidade da nossa execução não é alcançada através da aplicação de resultados de investigações científicadas da Prática Histórica de Execução Musical, mas vem de dentro. Pois hoje não vamos ouvir uma composição conhecida e artisticamente exponente de um compositor brasileiro famoso e significativo, assim como não vamos vivenciar uma orquestra alemã de tradição e bem formada tecnicamente. Nós nos revelamos reciprocamente nas nossas fraquezas, nos irmanamos no Humano.“


Orientação científica como princípio e imunização contra ideologias


A Escola de Música de Leichlingen procurava corresponder às diretrizes e normas da legislação a respeito de uma orientação científica de suas atividades, assim como às tendências do debate educativo-musical relativamente à compreensão dessas exigências e à sua realização. Devido à sua direção brasileira, a orientação científica preconizada passou a ser considerada no sentido do desenvolvimento as reflexões remontantes ao Brasil.


A orientação científica vinculou-se, no debate alemão, à formação de uma atitude por parte dos alunos de questionamentos, de uma posição de abertura e de reconhecimento de ideologias na recepção de textos, transmissões e mesmo do ensino concernentes à música.


Esse aguçamento da sensibilidade perante ideologias e Weltanschaaungen explicava-se na Alemanha sobretudo pela situação do país dividido politicamente e consequentemente pela existência de literatura alemã especializada marcada pelo marxismo. Mesmo tendo em geral boas intenções, ideologias levavam a deturpações históricas, não correspondendo, assim, ao princípio científico de primazia da procura objetiva e neutra de conhecimentos.


Na Semana Alemã-Brasileira de Música, o problema evidenciou-se de forma crítica em conferências de cunho etnomusicológico, onde manifestaram-se tendências ideológicas e mesmo propagandísticas na consideração de tradições brasileiras primordialmente mantidas por descendentes de africanos, mas de origem européia. A confusão entre a cor de pele de seus praticantes e a proveniência de danças, cortejos e formas de culto surgia como incompatível com os resultados já alcançados pela pesquisa cultural da linguagem das imagens.


Essa confusão, resultante de hipóteses do passado - em particular da epoca totalitária - e mantidas sem maiores questionamentos em determinados círculos levava a falsas suposições de origens. Ignorava-se nesse procedimento os mecanismos da antiga hermenêutica intrínsecos a essas expressões e que possibilitavam atualizações diversas e relacionamentos com povos e culturas indígenas ou africanas segundo critérios e valores - em geral depreciativos - próprios de expressões lúdicas ou de culto dúlico de remota proveniência transportados pelo Catolicismo.


O não-reconhecimento em tradições brasileiras de antigas expressões do repertório de linguagem de imagens das festas religiosas conhecidas da Europa, em particular da Península Ibérica era sobretudo culpa de um sistema universitário que confiava a professores de Etnomusicologia a formação de pesquisadores mesmo em áreas que desconheciam, como acontecia em Berlim.


Esses professores - e os seus orientandos, mesmo brasileiros, não estavam assim em condições de perceber êrros de interpretação de expressões culturais brasileiras. O uso da pesquisa cultural e musical para fins outros - ainda que de boas intenções - representava porém uma instrumentalização da pesquisa, não correspondendo à orientação científica como princípio tanto da musicologia como daquela preconizada pela Educação Musical.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A..„ Deutsch-Brasilianische Musikschulwoche. Semana Alemã-Brasileira da Escola de Música de Leichlingen de 1982 .Marco da Educação de orientação científico-cultural referenciadas pelo Brasil na Alemanha“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 152/ (2014:6). http://revista.brasil-europa.eu/152/Deutsch-Brasilianische-Musikschulwoche.html