„Derecho de las Gentes“ e Calendas
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 171

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Alcazar de Colon/Sto.Domingo.Foto A.A.Bispo 2017.Copyright
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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.
 


N° 171/3 (2018:1)




Os Dominicanos nos estudos culturais do Caribe
Do „Derecho de las Gentes“ do Sermão de Advento de 1511 a Jean-Baptiste Labat OP (1663-1738)
- calendas na linguagem de imagens nas suas relações com o Brasil -


Estudos euro-brasileiros no Caribe, 2017. Sala dedicada aos Dominicanos no Alcázar de Colón, Santo Domingo

 
Alcazar de Colon/Sto.Domingo.Foto A.A.Bispo 2017.Copyright
Nos trabalhos euro-brasileiros levados a efeito em 2017, tanto no Sudeste Asiático como no Caribe, considerou-se com particular atenção o papel desempenhado pela Ordem dos Dominicanos em processos culturais da história colonial no mundo extra-europeu. (Veja)
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A própria denominação de um país - República Dominicana - e de sua capital, S. Domingos de Guzmán -, a mais antiga cidade de europeus no Novo Mundo, lembra permanentemente a Ordem dos Pregadores e seu fundador.

Essa designação, que dá testemunho da veneração de S. Domingo,s valeu no decorrer da história colonial para toda a ilha de Espanha, Hispaniola. Esta conheceu uma divisão entre uma parte espanhola, Santo Domingo - a atual República Dominicana - e outra, francesa, Saint Domingue, o atual Haiti.

No Alcázar de Colón, uma sala lembra o vulto do Pe Bartolomé de las Casas OP (ca. 1484-1566) que, em 1509, deu início à missão dos dominicanos na América Latina.

Continuidade de reflexões: os Dominicanos nos estudos euro-brasileiros

Na consideração do papel dos Dominicanos em processos culturais, deve-se considerar a época e o contexto do início da ordem e as correntes de pensamento que a marcaram. O mesmo vale para o início de sua ação no Novo Mundo.

Sendo os espanhóis que chegaram ao continente profundamente marcados por concepções religiosas  da Idade Média tardia, ainda que os impulsos de reforma católica já se faziam sentir, tem-se um complexo de desenvolvimentos marcados por permanências e transformações que deve ser analisado de forma diferenciada. Nesse processo os Dominicanos exerceram papel relevante, como testemunha a participação de Dominicanos no Concílio de Trento.

Uma consideração mais atenta da Ordem dos Pregadores (Ordo fratrum Praedicatorum, OP) fundada no século XIII por S. Domingos justifica-se já pela importância nela concedida aos estudos, estando ela ligada à história universitária e da Inquisição. Foi ela assim particularmente estudada nos estudos euro-brasileiros desenvolvidos na universidade de Colonia e instituições dominicanas centralizadas nessa região da Alemanha desde meados de 1970.

Já nessa época reconheceu-se que em muitos países - também no Brasil - os estudos que consideram a ação de missionários em processos culturais concentram-se quase que exclusivamente na ação da Companhia de Jesus - explicável pela quantidade de fontes existentes. Em muito menor escala tem-se considerado a ação de outras ordens com as suas diferentes culturas religiosas, história, modêlos de vida e concepções teológicas e missionárias.

O significado da ação dos dominicanos revela-se em diferentes regiões e contextos do mundo que entrou em contato com os europeus na época dos Descobrimentos, com amplas consequências que podem ser reconhecidas até o presente, como estudado tanto no Sudeste Asiático, em particular em Timor Leste, e no Caribe. (Veja)

Bastaria lembrar a prática do Rosário e da veneração mariana fomentada sobretudo pelos Dominicanos, lembrando segundo a tradição o combate a heresias e que foi de fundamental significado na prática missionária, em particular também de africanos. Irmandades do Rosário foram através dos séculos, em diferentes contextos - também no Brasil - principais confrarias de africanos e seus descendentes. (Veja)

Também na República Dominicana lembra-se sobretudo das atividades dos Jesuítas e do seu papel na história universitária. A antiga igreja da Companhia é hoje mausoléu nacional. Entretanto, a atenção à atuação dos Dominicanos dirige a atenção à época precedente da história colonial e, assim, a fundamentos de processos então desencadeados.

Alcazar de Colon/Sto.Domingo.Foto A.A.Bispo 2017.Copyright

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O „Sérmon de Advento“ de 1511 de A. de Montesino (ca.1476-ca.1540) e o „Derecho de Gentes“

A igreja e o convento dos Dominicanos em Santo Domingo é um edifício de importância histórica para todas as Américas devido ao fato de, iniciado ao redor e 1510, ser uma das construções mais antigas do Novo Mundo.

Já anos antes, em construção, foi moradia e religiosos. Em 1531/32, foi aberto com a resença dos fres Reginaldo de Montesino, Bartolomé de las Casas, Antonio de Montesino e Pedro de Córdoba. Nesse convento iniciou-se o Studium generale em 1534, transformando-se, segundo o modêlo de Salamanca na primeira universdade das Américas - Universidad de San Thomás de Aquino, hoje Universidad Autónoma de Santo Domingo.

Ali teve lugar o „Sermón de Advento“ de 1511 de Antonio de Montesinos, onde este repreendeu a sociedade devido ao tratamento dispensado aos índios.

A discussão sobre os Derechos de Gentes foi um dos temas que mais marcaram, de forma controversa e até mesmo polêmica, os debates no século XVI.

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Esse sermão adquire, e com razão, extraordinário significado não apenas histórico nos estudos relativos aos indígenas e a seu tratamento pelos europeus, como também para o presente. É lembrado em muitos textos e celebrado em diferentes ocasiões pela sua relevância atual perante situações de injustiças, falta de liberdade e opressões. Trata-se assim de um documento de significado para os Direitos Humanos em geral e para a Ética.

Não se deve esquecer, porém, sobretudo sob a perspectiva dos estudos culturais, que se tratou de um sermão de Advento, pregado por um Dominicano.

A própria cultura da Ordem dos Pregadores, na sua tradição então já secular de inquirição de fatos e tendências não coadunantes com o ensinamento eclesiástico, de sua denunciação pelos „cães do Senhor“ e julgamento inquisitório torna compreensivel o ato destemido do apontamento e crítica de iniquidades, de repreensão e da exortação à consciência dos espanhóis em Santo Domingo e que causou compreensivelmente celeuma nos homens de poder da sociedade.

Não apenas a coragem de Montesinos deve ser porém considerada à luz da tradição da Ordem dos Pregadores. É sobretudo os sentidos do tempo do Advento que explica a temática por êle tratada nas suas repreensões.

Não só aproximações teológicas e pastorais do presente podem explicar o conteúdo do sermão, mas também aquelas dos estudos culturais.

São os conhecimentos adquiridos de análises da linguagem visual de expressões tradicionais do ciclo do ano que abrange o Advento, Natal, Reis e que se extende até o carnaval que trazem à luz com maior evidência a permanência da tradição da exortação e da catequese ou pastoral da Idade Média, vigentes ainda à época das Descobertas. Aproximações interdisciplinares tornam-se aqui indispensáveis.

Neste contexto, não se pode esquecer o significado de concepções marianas, uma vez que uma das mais importantes festas da veneração de Maria, a de 8 de dezembro e sua oitava, cai no período do Advento, com êle relacionando-se e interagindo sob diferentes aspectos.

Como a análise de fontes e da linguagem visual de tradições festivas demonstram, uma fundamental concepção encontra-se no canto de Maria, no Magnificat: Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles.  (Veja)

É essa concepção e a segurança doutrinária que dela emana que podem auxiliar a compreensão do destemor com que os poderosos e portentosos da sociedade da Hispaniola foram repreendidos e os humildes, os pobres e os oprimidos indígenas exaltados na sua índole.

Essas relações e o significado dessa fundamental concepção foram discutidas sob diversos aspectos nos estudos desenvolvidos em vários contextos e instituições do Caribe no Advento de 2017, entre outras, na catedral e seu museu, assim como refletida em visita à Academia de Ciencias da República Dominicana (ACRD). (Veja)

Nesta, a atenção foi dirigida a um outro dominicano da história cultural do Caribe: ao Pe. Jean-Baptista Labat OPO (1663-1738), uma vez que uma de suas expressões tornou-se nos últimos anos quase que como idéia condutora e emblemática de estudos culturais, a de uma „paixão dançária“ do homem dominicano ou mesmo do Caribe em geral (La Pasión Danzaria: Música y baile en el Caribe a través del merengue y la bachata de Darío Tejeda, Santo Domingo: ACRD, 2002, ISBN: 99934-0-267-2), como também a publicação de textos que a valorizam (La pasión danzaria de Darío Tejeda, Santo Domingo: ACRD, 2003, ISBN: 99934-959-0-5).

Retomando estudos sobre o Pe. Jean-Baptiste Labat OP (1663-1738) e sua obra

Nos estudos do papel desempenhado pelos dominicanos em processos culturais desenvolvidos nas últimas décadas, uma atenção especial tem sidoi dedicada ao Pe. Jean-Baptiste Labat OP pelo fato de ter deixado relato de suas viagens e estadias às Ilhas Ocidentais portadores de pormenorizadas informações e dados.

O relato de sua viagem e estadia nas Antilhas é enriquecido com as suas observações, tratando acuradamente do solo, árvores, plantas, frutas e ervas, as manufaturas então existentes e considerando meios para um maior desenvolvimento da agricultura e do comércio.

A adequada consideração de sua obra e de opiniões nela emitidas vem exigindo uma consideração mais ampla do século e das circunstâncias de sua formação, assim como da sua inscrição em desenvolvimentos eclesiásticos e missionários em contextos globais.

Jean-Baptiste Labat entrou na ordem Dominicana em 1684, tendo professado em 1685. Após completar os seus estudos filosóficos e teológicos, passou a lecionar filosofia a estudantes de Nancy. Com sólida formação geral - correspondendo à tradição de estudos da Ordem - a vida de Labat direcionou-se a seguir a caminho da pregação.

Essas duas vertentes de suas atividades, a de estudioso e a de pregador marcaram a sua vida e explicam muitos aspectos de sua obra, a de estudioso, erudito e cientista, naturalista de grande capacidade de observação, assim como a de crítica a costumes e vida religiosa, de inquirição e denúncia na tradição dominicana.

Essas atividades devem ser estudadas tanto relativamente à tradição do pensamento dominicano - de estudos, dos conhecimentos e da luta pela pureza e defesa da doutrina em combate a inimigos da fé e a heresias - assim como o do movimento de reforma católica remontante ao Concílio de Trento (1545-1563) de tanta importância para a França do século XVII.

Foi uma época em vários países da Europa de proibições de antigas práticas derivadas da catequese medieval, de coibição pelo clero de folguedos que já não mais entendiam no seu significado e linguagem visual e no qual viam riscos de atitudes contrárias à moral e de crítica social e de rebelião contra as autoridades.

Como missionário, movido pelo desejo  de atuar em missão indígena, obteve permissão e viajou em 1694 às Índias Ocidentais. A atenção dos Dominicanos franceses pela missão nas Antilhas, contava ali com já longa tradição, podendo-se lembrar de Raymond Breton OP (1609-1679), que atuara entre os Garifunas ou „caraíbas negros“.

Labat permaneceu 13 anos na esfera do Caribe, percorrendo várias ilhas, atuando em época marcada pela cultura canavieira e, em consequência, pelo trabalho escravo. Percorreu muitas ilhas, de São Domingos a Grenada. Foi eleito superior da missão e nomeado vice-prefeito em Martinique.

Em 1705, retornou à França a fim de denunciar os problemas com religiosos colocados sob a sua responsabilidade. Em 1708, autoridades se opuseram a seu retorno às ilhas. Vindo a Paris em 1709, foi exilado a seguir em Toul. Revoltando-se, partiu para a Itália.

Após atender a um encontro da ordem em Bologna, apresentou ao General um relato da sua obra, preparando-se para retornar. Sem obter permissão, deteu-se em Roma durante vários anos. Posteriormente, tornou-se Procurador Geral da missão dominicana nas Índias Orientais. Em 1709, esteve a serviço da ordem na Espanha e na Itália (Les voyages du P. Labat en Espagne et en Italie, 1732)

Em 1716, voltou ao convento da rue Saint-Honoré de Paris, onde, de 1727 até a sua morte, atuou ao lado do Mestre Geral da Ordem. De 1716 a 1722, dedicou-se a colocar as suas anotações feitas no Caribe em forma de livro. O Nouveau Voyge aux isles de l‘Amérique foi publicada em 6 volumes em 1724, com muitas ilustrações por êle mesmo feitas. Em 1742, a obra foi reeditada, revista, completada e aumentada.

Labat também merece ser considerado como compilador de obras de outros missionários sobre regiões por êle não visitadas. Nesse sentido, particularmente relevantes são obras sobre a África: Les nouvelles relations de l‘Afrique ocidentale, Paris, 1728 e Relation historique de l‘Ethiopie occidentale (Congo, Angola, Matamba, do italiano Pe. Cavazzi (Paris 1732); Les voyages du chevalier des Marchais en Guinée, îles voisines et Cayenne, faits en 1725, 1726 et 1727.

Labat considerou também dados e estatísticas tiradas de fontes portuguesas, razão pela qual as suas obras foram particularmente consideradas nos estudos de processos culturais no mundo extra-europeu marcado pelos portugueses.

Oferecimento da obra ao português Diogo de Mendonça Corte Real (1658-1736)

O Nouveau Voyage aux isles de l‘Amérique foi oferecido a Diogo de Mendonça Corte Real (1658-1736), tesoureiro de Barcelos e plenipotenciário do rei de Portugal junto aos Estados Gerais das Províncias Unidas. Nela, o dominicano menciona as frotas vindas do Brasil e a magnificência da corte portuguesa da brilhante época de D. João V (1689-1750).

Os elos com essa notável personalidade e o fato de Labat ter utilizado fontes portuguesas merecem estudos mais pormenorizados quanto a suas relações com Portugal e com o Brasil. A sua dedicação auxilia a compreensão de sua obra no contexto de uma época do século XVIII na qual os desenvolvimentos coloniais no Brasil foram de excepcional importância.

O seu relato da chegada à Martinique oferece um quadro da presença de africanos na ilha, que imediatamente sobem a bordo e, que com as suas vestimentas sumárias, nele despertaram compaixão. Significativamente, na Martinique, a casa conventual do Fonds Saint Jacques perpetua a sua memória.

Essa atenção e mesmo empatia para com os escravos e sua situação - e que também se expressa em outros pontos de sua obra - não surgia em contradição com o seu empenho pelo desenvolvimento agrícola, econômico e social, por assim dizer com um processo desenvolvimentista e civilizatório que exigia aquisição de capitais através dos grandes plantações de cana com mão de obra africana.

O calenda como folguedo predileto dos escravos

Labat salienta a importância da dança na vida dos escravos nos lugares que visitou e onde atuou. Para êle, a dança constituia uma verdadeira paixão, acreditando não haver povo no mundo que mais a ela se dedicava. Quando não tinham permissão de dançar na habitação, ou seja, na senzala, iam, após o término do trabalho nos engenhos, dançar em lugar mais afastado à meia-noite de sábado, reunindo-se em qualquer lugar onde sabiam que havia dança.

La danse est leur passion favorite, je ne crois pas qu‘ol  ait Peuple au monde qui y soit plus attaché qu‘eux. Quand les Maitres ne leur permettent pas de danser dans l‘Habitation, ils feront trois ou quatre lieues après qu‘ols ont quitté le travail de la Sucrerie le Samedy á minuit, pour se trouver dans quelque lieu où ils çavent qu‘il y a une danse. Nouveau Voyage aux isles de l‘Amerique...Tome I, La Haye, 1724, 52)

É essa menção de Labat sobre a paixão pela dança dos africanos que é tomada, de forma generalizada no presente, como expressão histórica que testemunharia um fenômeno cultural do Caribe e que seria uma „paixão dançária“. (Veja)

Essa paixão pela dança valia sobretudo para o calenda, que era, entre todas, aquela que mais gostavam e a que era mais comum.

O Calenda nos estudos de tradições portuguesas e brasileiras

O Calenda foi já há muito conhecida e considerada nos estudos de tradições de Portugal e do Brasil. Mencionando Leite de Vasconcelos (Revista Scientifica, 587), Teófilo Braga, no seu estudo das festas do calendário popular, lembra que as „Quendas (Calendas) designam os doze dias antecedentes e seguintes ao Natal, nos quais os supersticiosos vêem os representantes dos doze meses do ano. Chamam-se Requendas os dias observados com o mesmo intuito em outros meses (Baião). Há nos Açores esta crença localizada nos últimos dias de Dezembro“. (O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições II, Lisboa: Dom Quixote, 1986, 225, 1a. ed. 1885)

A proveniência do calenda para Labat - confusão entre proveniência e origem

Para Labat, esse folguedo era proveniente da Costa da Guinea. Segundo êle, tudo indicava mais particularmente que vinham do reino de Arda. Essa sua opinião foi, no século XX, repetida por vários autores.

Essa sua afirmação não deve ser porém entendida como de origem da dança no sentido do local onde seria autóctone, mas sim como da transposição para o Novo Mundo de práticas lúdicas já seculares da Costa da Guinea. Estas eram remontantes à época do início das interações com europeus em fins do século XV, quando o ciclo do ano religioso do hemisfério norte com os seus respectivos folguedos foram introduzidos.

Labat, pela sua formação e na época em que viveu já não conhecia folguedos mais antigos do populário europeu e resultantes de tipo de catequese já não em uso no século XVII. Somente assim pode-se compreender a sua constatação de que espanhóis a dançavam em toda a América do mesmo modo do que os africanos.

Para Labat, esses espanhóis da América teriam aprendido a dançados africanos, o que é absolutamente improvável. Antes deve-se partir de uma confluência a partir de bases comuns de práticas seculares transmitidas ao Novo Mundo por diversos caminhos, um diretamente através dos europeus, outro pelo caminho indireto da África.

Celle qui leur plait davantage, & qui leur est plus ordinaire est le calenda, elle vient de la Cote de Guinée, & suivant toutes les apparences du Royaume d‘Arda. Les Espagnols l‘ont apprise des Negres, & la dansent dans toute l‘Amerique de la même maniere que les Negres. (loc.cit.)

A „indecência“ do calenda e tentativas de sua interdição

Labat menciona no seu relato tentativas de coibição do calenda devido à imoralidade que alguns viam nas posturas e nos movimentos da dança. Os mestres - capatazes - „que viviam de modo ordenado“ a teriam proibido, tomando cuidado que ela não fosse dançada. Isso não era fácil, pois ela era tão a gosto dos escravos que até mesmo as crianças que mal podiam ainda ficar em pé procuravam imitar os seus pais e mães, passando dias inteiros exercitando.

Comme les postures & les mouvements de cette danse sont des plus déshonnetes, les Maitres qui vivent d‘une maniere reglée, la leur défendent, & tiennent la main afin qu‘ils ne la dansent point; ce qui n‘est pas une petite affaire; car elle est tellement de leur gout, que les enfans qui n‘ont presque pas la force de se soutenir tachent d‘imiter leurs peres & meres à qui ils la voyent danser, & passeroient les jours entiers à cet exercise. (loc.cit.)

Essas tentativas de coibição do calenda registradas por Labat correspondem às proibições e restrições de folguedos tradicionais pelo clero em várias regiões da Europa nos séculos XVII e XVIII. Com um espírito do tempo marcado por correntes de reforma católica em sequência ao Concílio de Trento, as autoridades viam nas práticas lúdicas do ciclo do ano, e que já não eram mais entendidas no seu sentido, como ocasiões para atos atentativos à moral. Não só a menção a proibições, como também as próprias palavras de Labat sobre a desonestidade dessas danças revelam como nesse século já não se entendia o sentido mais profundo da linguagem visual de antigas práticas.

Os instrumentos do calenda em paralelos com aqueles dos batuques no Brasil

A descrição de Labat assume particular interesse também pelas menções que faz aos instrumentos utilizados e que permitem reconhecer paralelos com tradições brasileiras dos batuques.

Êle descreve dois tambores, uma maior e outro menor, feitos de troncos de árvores e colocados de forma cruzada um sobre o outro. Um dos orifícios desses tambores era aberto, o outro coberto de couro liso, sem pelos, de carneiro ou cabra.

O maior desses dois tambores era chamado simplesmente de grande tambor - o tambú do Brasil - podendo ter três a quatro pés de comprimento a quinze ou dezesseis polegadas de diâmetro.

O pequeno tambor, chamado de baboula, teria mais ou menos o mesmo comprimento, mas oito ou nove polegadas de diâmetro. Os tocadores ou os colocavam entre as pernas ou se sentavam sobre êles, os percutindo com a palma de quatro dedos de cada mão.

Aquele que tocava o grande tambor o fazia com compasso, determinando o metro, mas aquele que tocava o baboula o percutia tão vivamente quanto podia. Como o som produzido era mais agudo e mais suave, segundo êle apenas produzia ruído, sem servir ao metro e aos movimentos daqueles que dançavam. O baboula corresponde, segundo a descrição, ao tambor designado como quinjenge, ou mulemba no Brasil. Já Labat registra modos de percussão e a diferença de toques dos dois tambores que foram observados por pesquisadores brasileiros.

Pour donner la cadence à cette danse, ils se servent de deux tambours faits de deux troncs d‘arbres creusez d‘inégale grosseur. Un des bouts est ouvert, l‘autre est couvert d‘un peau de brebis ou de chevre sans poil, gratée comme du parthemin.

Le plus grand e ces deux tambours qu‘ol s‘appellent simplement le grand tambur, peut avoir trois à quatre pieds de long sur quinze à seize pouces de diamettre. Le petit qu‘on nomme le baboula a à peu près la même longueur, sur huit a neuf pouces e diamettre. Ceux qui battent les tambours pour regler la danse, les mettent entre leurs jambes, ou s‘assoyent dessus, & les touchent avec le plat des quatre doigts de chaque main. Celui qui touche le grand tambour, bat avec mesure & posément; mais celui qui touche le baboula bat le plus vîte qu‘ol peut, & sans presque garder de mesure, & comme le son qu‘il tend est beaucoup moindre que celui du grand tambour, & fort aigu, il ne sert qu‘à faire du bruit, sans marquer la cadence de la danse, ni les mouvements des danseurs. (loc.cit.)

Essa descrição de Labat corresponde àquela de Rossini Tavares de Lima do batuque paulista:

„O Tambú é um tambor de tronco de árvore escavado, em geral, de um metro e vinte ou trinta, que, em uma das aberturas tem pregado um pedaço de couro (...). O Quinjengue é um tambor feito também de tronco de árvore de menor diâmetro que o anterior, medindo cerca de oitenta centímetros ou mesmo um metro de comprimento (....).  E então o tocador de Tambu, também conhecido por maderêro, monta no instrumento (....) e começa a batê-lo com as mãos espalmadas. (...) O tocador de Quinjengue descansa o instrumento, em sentido vertical, sônre o Tambu, atrás do maderêro (...). (Rossini Tavares de Lima, Folclore de São Paulo, S. Paulo: Ricordi, 2a. ed., 1954, 67).

Disposição os participantes do folguedo e a „umbigada“

Labat oferece uma pormenorizada descrição do calenda, o que é de extraordinário significado para o reconhecimento de paralelos com tradições conhecidas no Brasil.

Os dançantes eram dispostos em duas filas, uns à frente dos outros, os homens de um lado e as mulheres de outro. Aqueles que não dançam e os espectadores formavam um círculo ao redor dos dançantes e dos tambores. O mais hábil dava início entoando uma melodia que era criada na hora com um motivo que parecia vir a propósito. O refrão era cantado por todos os espectadores, sendo acompanhado por fortes batidas de mãos.

Os dançantes levantavam os braços, um gesto que para Labat era semelhante ao daqueles que, na Europa, dançavam tocando castanholas. Davam saltos, faziam viravoltas, aproximavam-se a dois ou três pés uns dos outros, recuavam em cadência, assim procedendo até que o tambor os incitasse a bater as coxas uns nos outros, ou seja, homens e mulheres. Ao vê-los, parecia ao observador que davam batidas com os ventres, embora os dessem com as coxas. Afastavam-se, fazendo piruetas, para recomeçar o mesmo movimento com gestos lascivos, prosseguindo até que o tambor desse o sinal, repetindo-se tudo muitas vezes. De tempo em tempo entrelaçavam os braços e faziam umas ou três voltas esfregando as coxas.

Les danseurs sont disposez sur deux lignes, les uns devant les autres, les hommes d‘un côté, & les femmes de l‘autre. Ceux qui sont las de danseer & les spectateurs font un cercle autour des danseurs & des tambours. Le plus habnile chante une chanson qu‘il compose sur le champ. sur tel sujet qu‘il juge á propos, dont le refrain qui est chanté par tous les spectateurs, est accompagné de grands battemens de main. A l‘égard des danseurs, ils tiennent les bras à peu près comme ceux qui dansent en joient des castagnettes. Ils sautent, font des virevoltes, s‘approchent à deux ou trois pieds les uns des autres, se reculent en cadence jusqu‘à ce que son du tambour les avertisse de se joindre en se frapant les cuisses les uns contre les autres, c‘est-à dire, les hommes contre les femmes. (loc.cit.)

Essa descrição de Labat corresponde àquela de Rossini Tavares de Lima do batuque paulista:

„A disposição dos dançadores é sempre o de filas frente a frente, com uns dez ou doze metros de separação ficando de um lado as mulheres e do outro os homens.(...) // O elemento esencial da coreografia é a umbigada, chamada batida por alguns, e esta se dá com a aproximão muitas vezes violenta do ventre dos dançadores, que para baterem certo devem voltar o tronco para trás. Comumente, os dançadores dão uns passos arrastados para a direita e para a esquerda ou vice-versa antes de realizarem a umbigada. Os melhores dançadores, no momento da umbigada, levantam os braços e batem palmas, acima da cabeça. (...) Na coreografia há diversas ‘vesagnes‘ ou ‚micagens‘: o dançador ajoelha-se, joga-se ao chão e depois se levanta para executar a umbigada“. (loc.cit).

Mal-entendidos: indecência para Labat e o sentido respeitoso da dança

Para Labat, já essa descrição demonstrava que o calenda seria contrária ao pudor. Mesmo assim, ela seria e tal modo a gosto dos espanhóis creolos da América e tão em uso entre êles que era parte de seus divertimentos.

O Calenda era até mesmo dançada pelos religiosos na noite de Natal. Faziam-no sobre um palco levantado no coro. O povo podia participar da alegria que era assim expressa pelo nascimento do Salvador. Ela era então dançada apenas por homens. Labat até mesmo acreditava que o fizessem com intenção pura, mas outros espectadores poderiam ser menos condescendentes do que êle próprio, causando assim escândalo, o que precisaria ser evitado.

A les voir, il semble que ce soient des coups e ventre qu‘oils se donnent, quoiqu‘ol n‘y ait cependant que les cuisses qui suportent ces coups. Ils se retirent dans le moment en pirouettant, pour recommencer le même mouvement avec des gestes tout_à fait lascifs, autant de fois que le tambour en donne le signal, ce qu‘il fait souvent plusieurs fois de suite. De tems en temps ils s‘entrelassent les bras, & font deux ou trois tours en se frapant toujours les cuisses, & se baisans. On voit assez par cette description abregée combien cette danse est opposée à la pudeur. Avec tout cela, elle ne laisse pas d‘être tellement du gout des Espagnols Creolles de l‘Amerique, & si fort en usage parmi eux, qu‘elle fait la meilleure partie de leurs divertisses, & à leurs Processions, & les Religieuses ne manquent guère e la danser la nuit de Noel sur un theâtre élevé dans leur Choeur, vis-à vis de leur grille, qui est ouverte, afin que le Peuple ait fapart de la joye que ces bonnes ames témoignent pour la naissance du Sauveur. Il est vrai qu‘elles n‘admettent point d‘hommes avec elles pour danser une danse si devotte. Je veux même croire qu‘elles la dansent avec une intention toute pure, mais combien se trouvent - ils de spectateurs qui n‘en jugent pas si caritablement que moi?

Esse registro de Labat foi interpretado por pesquisadores que não podem conceber uma dança com essas características em recinto sagrado na noite de Natal como tendo sido um mal-entendido do dominicano, explicável por alguma semelhança de termos (!?). (Robert Stevenson, Caribbean Music History: A Selective Annotated Bibliography with Musical Supplement, Inter-American Music Review IV/1, 1981, 46).

Nas trocas de idéias com esse musicólogo, salientou-se, ao contrário, a confiabilidade do testemunho de Labat. Na noite de Natal, a antiga tradição da linguagem de imagens pastoril salientava a participação do homem do povo, dos rústicos e de seus instrumentos e danças, sendo aqui um importante exemplo a gaita de foles.

A prática do calenda - termo utiizado liturgicamente nas leituras do Natal - era entendida como respeitosa, apesar da aparência atentatória aos bons costumes que podia causar em observadores que não compreendiam o seu sentido mais profundo.

Coibições da dança por motivo do perigo de reuniões de escravos

Labat menciona que as ordens dadas nas ilhas de proibição calendas visavam não apenas coibir gestos e posturas indecentes ou lascivas, mas sim também para não dar ensejo a ajuntamentos de escravos que, unidos na alegria e muito frequentemente embebedados, podiam fazer revoltas, sublevações ou formar grupos para fazer arruaças e roubos. Apesar das ordenações e de todas as precauções que os mestres pudessem tomar, seria porém quase impossivel de os impedir, porque o calenda era a dança que mais gostavam de todos os seus divertimentos.

On a fait des Ordonnances dans les Isles, pour empêcher les calendas non seulement à cause des postures, indecentes, & tout_à-fait lascives, ont cette anse est composée, mais encore pour ne pas onner lieu aux trop nombreuses assemblées des Negres, qui se trouvant ainsi ramassez dans la joye, & le plus souvent avec de l‘Eau de Vie ans la tête peuvent faire des revoltes, des soulevemens, ou des parties pour aller voler. Cependant malgré ces Ordonnances, & toutes les précautions que les Maitres peuvent prendre, il est presque impossible de les en empecher, parce que c‘est de tous leurs divertissements celui qui leur plait davantage, & auquel ils sont plus sensibles. (loc.cit.)

Essas tentativas de coibir folguedos resultantes da antiga catequese e cujo sentido já não se comprendia correspondia também a similares medidas na Europa. Folguedos do ciclo de Natal, Reis e Carnaval, transmitindo em linguagem de sinais o grotesco do homem portentoso e altivo, cheio de amor a si e compenetrado do seu poder, ou seja do homem terreno ou carnal, possuia um sentido de valorização do homem simples. A coibição dessas práticas na Europa resultava do fato de serem esses folguedos, pelos seus sentidos, crítico-sociais relativamente a poderosos e portentosos, possuindo assim potencialidade revolucionária.

Diferenças de danças de africanos vindos da Guiné e daqueles do Congo

Relativando o sentido hoje entendido por demais genericamente de uma „paixão dançária“, Labat registra que as danças de africanos provindos do Congo eram totalmente diferentes do calenda.

Os homens e as mulheres congoleses se colocavamm em roda, sem sair do lugar, não fazend outra coisa que levantar os pés no ar e mexer a cabeça em cadência, tendo o corpo semi curvado uns em frente aos outros, murmurando alguma história que um dos participantes contava, à qual os dançantes respondiam com um refrão enquanto que os espectadores batoam as mãos. Essa dança não tinha nada que chocasse o pudor, mas também era muito menos divertida.

Também os escravos vindos da Mina dançavam em roda, com a face dirigida para fora do círculo. Aqueles do Cabo Verde e da Gambia tinham danças especiais, mas não havia em geral outra a que mais se acomodassem do que o calenda

Les Negres de Congo ont une danse tout-à fait opposée a celle-là. Les danseurs hommes & femmes se mettent en rond, sans bouger d‘une place, ils ne font autre chose que lever les pieds en l‘air, & en fraper la tette avec une espece de cadence, en tenant le corps à demi courbé les uns devant les autres, marmorant quelque histoire qu‘un de la compagnie raconte, à laquelle les danseurs répondent par un refrain, pendant que les spectateurs battent des mains. Cette danse n‘a rien qui choque la pudeur, mais aussi elle est grès-peu divertissantes, Les Negres Mines dansent en tournant en rond, le visage hors du cercle qu‘ils décrivent. Ceux du Cap-Verd & de Gambie ont encore des danses particulieres, mails il n‘y en a point dont tous en general s‘accommodent mieux que du calenda. Les gouts sont differents, & il n‘es pas permis d‘en juger. (op.cit.53)

Essas distinções constatadas por Labat podem ser explicadas pelos diferentes estágios de processos cristianizadores e de transformação cultural na África. Tanto no reino do Congo como na Mina havia uma atividade missionária mais continuada, na qual os religiosos já tinham procurado coibir os antigos folguedos no sentido do movimento de reforma católica. Uma das medidas tomadas foi aquela de substituir o calenda por danças de roda. Explica-se, assim, a decência registrada por Labat nas danças provenientes do reino do Congo.

Substituição do calenda por outras danças européias - ensino de dança e música

Esse mecanismo de substituição de danças teve continuidade no Caribe. Labat testemunha o empenho dos religiosos no sentido de substituir o calenda por danças francesas.

Para que os escravos perdessem o gosto pelo calenda por êles considerado como infame haviam passado a ensinar a seus subordinados várias danças francesas ou „à francesa“. Estas eram mais comedidas e exigiam mais controle e recato, como o minueto, a corrente e o passepied.

Os religiosos também passaram a ensinar outras danças como branles e danças de roda, uma vez que estas possibilitavam que muitos dançassem a uma só vez, dando assim uma ocupação a maior número de escravos. Assim ocupando-os, evitavam-se situações que favorecessem confusões, rebeliões e arruaças.

Labat afirma que êle próprio vira como muitos escravos tinham-se  dado muito bem a esses exercícios de danças. Muitos tinham já o ouvido tão educado e realizavam passos tão comedidos como europeus que se prezavam de dançar bem.

A menção ao ensino de branles é significativo, uma vez que incluiam imitações de atividades de trabalho ou de animais - por ex. de lavadeiras, de cavalos, do urso ou de tochas.

Pour leur faire perdre l‘idée de cette danse infame, on leur en a appris plusieurs à la Françoise comme le minuet, la courante, le passepied & autres aussi bien que les branles & danses rondes, afin qu‘ils puissent danser plusieurs à la fois, & sauter autant qu‘ils en ont envie. J‘en ai vu quantité qui s‘acquittoient très bien de ces exercises, & qui avoient l‘oreille aussi fine, & le pas aussi mesurez, que bien des gens qui se piquent de bien danser. (loc.cit.)

A prática de instrumentos entre escravos músicos

Labat dá testemunho da prática instrumental de escravos, registrando tanto instrumentos europeus como africanos. Havia africanos que tocavam muito bem violino e que ganhavam dinheiro tocando em reuniões e em festas de casamento.

Entre os instrumentos africanos, Labat cita uma „espécie de guitarra“ feita com uma metade de cabaça cortada e coberta de couro fino, com um braço bastante longo. Possuia não mais do que quatro cordas, preparadas com óleo e elevadas por meio de um cavalete bem mais do que uma polegada sobre a pele da cabaça. Era tocada pinçando ou percutindo.

Para Labat, a música produzida com esse instrumento soava pouco agradável e os acordes eram pouco encadeados. Havia, entretanto pessoas que a apreciavam, lembrando Labat aqui os campôneos espanhóis e italianos que tanto gostavam de guitarras. Pela sua descrição, parece que Labat registra aqui o uso do Djeli Ngoni, o que poderia talvez ser visto como um antepassado do banjo.

Il y en a parmi eux qui jouent assez bien du violon, & qui gagnent de l‘argent á jouer dans les assemblées, & aux festins de leurs mariages. Ils joent presque tous d‘une espece de guitarre, qui est faite d‘une moitié de callebasse couverte d‘un cuir raclé em forme de parchemin, avec un manche assez long. Ils n‘y mettent que quatre cordes de soye ou de pitte, ou et boyaux d‘oiseaux fechez, & ensuite préparez avec de l‘huile de palma christi. Ces cordes sont élevés d‘un bon pouce au sessus de la peau qui couvre la callebasse, par le moyen d‘un chavalet. Ils en joiient en pinçant, & en battant. Leur musique est peu agreable, & leurs accords peu suivis. Il y a cependant de gens qui estiment cette harmonie autant que celles des paisans Espagnols & Italiens qui ont tous des guitarres, & en jouent très-mal. Je ne içai s‘ils ont raison. (loc.cit.)

A „paixão dançária“ a serviço da manutenção da ordem e da segurança

Labat volta a salientar a vantagem que representava o gosto de dançar dos escravos para os seus senhores. Êle próprio preferia permitir a seus escravos que dançassem todo o tipo de danças - com exceção do calenda -, uma vez que era melhor deixá-los assim dançando do que desocupados. Labat tomava até mesmo frequentemente o violino e distribuindo aguardente, possibilita que se divertissem todos juntos.

Com isso, evitava que saíssem e andassem pelas redondezas, com todos os perigos daí resultantes, como o fazer fogo com o risco de incêndio de canaviais, ou de ir a vizinhos cometer qualquer desordem.

Entretanto, sabia que os escravos, apesar de todas as precauções, logo que achavam que não iam ser descobertos iam dançar o calenda com todo o entusiasmo.

Repetindo, Labat salienta que a paixão por essa dança era para além de toda a imaginação: de velhos, jovens e mesmo crianças que mal sabiam ficar em pé. Estas pareciam que já haviam dançado no ventre de suas mães.

Ils est très - à -propos d‘avoir toujours aux accidens du feu qui peut s‘allumer dans les Cannes, ou pour les empecher de courir chez les voisins, & y commettre quelque desordre. J‘aimais mieux permettre aux notres de danser toutes sortes de danses, excepté le calenda, que de les lasisser aller dehors. Je payois assez souvent le violon, & je leur faisois donner quelques pots d‘Eau-de-Vie pour se divertir tous ensemble. Je crois bien que malgré toutes mes précautions, ils sansoient le calenda e toutes leurs forces, losqui‘ils ne craignoient pas d‘etre découverts. Leur passion pour cette danse est aux ela de l‘imagination; les vieux, les jeunes, & jusqu‘aux enfans, qui a peine se peuvent soutenir. Il semble qu‘ils l‘ayent dansée ans le ventre de leurs meres. (op.cit.54)

O „bater“ na organologia, a „umbigada“, batuques e calendas

Para os estudos de tradições brasileiras, o texto de Labat assume particular relevância, pois permite reconhecer o batuque na sua inserção na tradição dos calendas. O termo batuque é uma denominação genérica que se refere ao ato de bater, não só instrumentos como de corpos. A própria umbigada é conhecida como batida. Explica-se, assim, que o batuque também seja conhecido como tambu, designação do grande tambor.

Na simbologia dos instrumentos de antiga proveniência na sua interpretação cristã, como pode ser estudada em tratados da Idade Média, os membranofones adquirem particular significado e, com êles o do bater nos seus sentidos físicos e espirituais. Esse significado era estreitamente relacionado com aquele do „toque“ na mística. Nos estudos relativos aos fundamentos dessa linguagem simbólica na Antiguidade, foram consideradas as bases filosófico-naturais dessas concepções nas suas relações com o ciclo do ano natural.

O movimento ascendente do ano a partir da sua parte mais inferior em fins de outono e inverno do hemisfério norte, fria e úmida, da matéria sem forma, apenas pode ser explicada pela ação de uma força externa que nela age, que agita os elementos e possibilita o movimento de subida que levará ao cume do monte do ano no mês de junho.

Esses conhecimentos derivados da observação da natureza, tinham a sua expressão mitológica em Hera/Juno que, tendo-se afastado de Zeus, foi por êle procurada no fundo dos oceanos, por êle amada em longos atos sexuais - e que correspondia às batidas no sentido de mudança interna de Hera, de superação de altivez e amor-próprio ferido, possibilitando o seu retorno às alturas em reconciliação nas grandes festas de junho.

A „batida“ revela-se assim um duplo sentido: aparentemente um ato sexual, no seu sentido mais profundo o da superação na alma da altivez, do orgulho, do amor a si próprio em amor a Deus. Compreende-se, assim, as relações na linguagem visual dos calendas tanto com as festas de passagem do ano como com aquelas do mês de junho, assim como, no Brasil, as designações que fazem referência a São João Baptista, o Preceptor que clamava pela conversão das almas.

Essa antiga linguagem visual torna compreensível que a umbigada também tenha sido praticada na Europa, como a tradição do pingacho trasmontano da Península Ibérica testemunho. O termo porém mais genérico é aquele que se refere ao „bater“ na complexidade de seus sentidos e que explica o termo batuque. (A.M. Mourinho e J. R. dos Santos Júnior, Coreografia Popular Trasmontana, Extracto do fascículo V do vol. XXIII dos Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Porto 1980,. Est. XV, Fig. 11)


De estudos euro-brasileiros no Caribe em 2017
Antonio Alexandre Bispo

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Os Dominicanos nos estudos culturais do Caribe. Do „Derecho de las Gentes“ do Sermão de Advento de 1511 a Jean-Baptiste Labat (1663-1738) - calendas na linguagem de imagens nas suas relações com o Brasil.“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 171/3(2018:1).http://revista.brasil-europa.eu/171/Dominicanos_no_Caribe_e_Calendas.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
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