Do algodão e tabaco à cana de açúcar
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 171

Correspondência Euro-Brasileira©

 
St Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

St Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

St Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

St Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

St Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

St Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 171/7 (2018:1)



Do algodão e tabaco e à cana de açucar - St. Kitts
agricultura e processos interculturais nas Antilhas e na América do Norte
em paralelos e referências com o Brasil

Reflexões em Wingfield, St. Kitts. Pelos 30 anos da morte de Gilberto Freyre (1900-1987)


 
St Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
Se pela própria etimologia o conceito de cultura é estreitamente relacionado com a cultura da terra, uma orientação dirigida a processos culturais exige a consideração de desenvolvimentos agrícolas nas suas relações com processos econômicos, comerciais, industriais e da história do trabalho.

Esse significado da atenção voltada à produção agrícola e suas transformações nas suas inserções em contextos internacionais revela-se sobretudo no caso de países de formação colonial como o Brasil.

Compreende-se, assim, que nos estudos culturais referentes ao país dê-se particular atenção a desenvolvimentos e fases da história do cultivo da terra que marcaram épocas e regiões, tais como aquela da cana do açúcar ou do café.

Relacionando-se o processo colonizador com o cultivo da terra e a exportação de seus bens, o seu desenvolvimento e suas mudanças se inserem em contextos internacionais. Torna-se necessário, assim considerar desenvolvimentos agrícolas e econômicos nas suas implicações sociais e culturais não apenas a partir de posicionamentos de regiões que posteriormente se tornaram países independentes como também globais.

Neste sentido, tem-se procedido a estudos de relações e paralelos de situações e desenvolvimentos no Brasil e em outras regiões do mundo. Assim, considerou-se com particular atenção questões relacionadas com uma „cultura do açúcar“ nos seus diferentes aspectos tanto em contextos brasileiros como naqueles de outras regiões marcadas pelo cultivo da cana. Abriram-se aqui perspectivas para estudos de processos culturais entre regiões que numa primeira aproximação não apresentam elos históricos mais estreitos, como por exemplo entre o Brasil e ilhas do Pacífico e do Índico. (Veja)

Engenhos, usinas e casas grandes no Brasil e no Caribe

Guadeloupe. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
Entre as regiões do globo mais marcadas pelas plantagens de cana e suas produções encontra-se o Caribe. Em vários países e territórios dessa esfera insular americana existem museus, engenhos históricos, casas de engenho e centros de estudos dedicados à história e ao presente do cultivo da cana e da produção dela derivada. Este é o caso de museus de plantações de cana e de rum de Guadeloupe, alguns deles de projeção internacional.

Se no Brasil pode-se visitar antigas casas de engenho e suas instalações históricas, também no Caribe existem construções e relitos do passado que fazem parte do patrimônio histórico de diferentes ilhas. Um exemplo de particular relevância arquitetônica e histórico-cultural é a Rose Hall Great House de Jamaica, que até mesmo representa um dos mais valiosos edifícios do país. (Veja)

Nesses e em outras áreas e edifícios históricos da esfera caribenha pode-se considerar a história e o modo de vida e de trabalho nos canaviais e na produção do açúcar e derivados sob diferentes aspectos,ganhando-se novos conhecimentos e abrindo-se perspectivas determinadas pelos respectivos contextos nas suas singularidades. Alcança-se assim como num mosaico um panorama global no qual também a história agrícola do Brasil se inscreve. Surge assim como oportuno reconsiderar os muitos estudos realizados no Brasil, em particular aqueles relativos à cultura da cana, da produção açucareira e seus derivados sob o pano de fundo dos correspondentes desenvolvimentos em outras regiões, em particular, no caso, nas Índias Ocidentais.

Da vasta literatura sobre a cana e o açúcar no Brasil, as obras de Gilberto Freyre assumem particular relevância para os estudos culturais, também pelo fato de terem marcado já há décadas o pensamento e o procedimento de outros autores. Transcorridas três décadas do seu falecimento, pareceu assim ser oportuno lembrá-lo em diversos contextos de importância histórica para os estudos da cultura da cana e de seus produtos no Caribe. Considerando o seu particular interesse pela influência inglesa no Brasil, a recepção da literatura inglesa na sua obra e mesmo a sua anglofilia, oferecem-se como especialmente adequados os contextos antilhanos mais marcados pelos elos com a Grã-Bretanha.

Neste sentido, a atenção deve ser dirigida em primeiro lugar a St. Kitts, a antiga ilha de São Cristóvão. Essa ilha, a „Mãe das Antilhas“, surge como pioneira sob muitos aspectos, tanto na história da colonização inglesa e francesa, como na de processos agrícolas, populacionais e culturais. As experiências ali feitas e os sucessos econômicos alcançados com a exportação tiveram consequências para outras regiões, sofrendo por sua vez efeitos recíprocos de desenvolvimentos.

Por terem ali se assentado tanto colonos ingleses como franceses, que vivenciaram momentos de convivência mais ou menos pacífica de início, mas que determinaram uma história marcada por tensões e conflitos em extensão daqueles seculares entre a França e a Inglaterra, S. Cristóvão/St. Kitts oferece condições ideais para a consideração das relações entre a implantação e o desenvolvimento da agricultura e da produção do açúcar e derivados com a história da concorrência de poder econômico e de político, com a história mercantil, manufatureira e industrial das potências européias.

Monumento da história canavieira, do açúcar e derivados: Wingfield Estate St. Kitts(1625)

A mais importante área histórica da cultura canavieira em St. Kitts é a do antigo engenho e usina do rio Wingfield. A propriedade agrícola, fundada em 1625, e assim nos primeiros anos do assentamento inglês inicialmente com colonos vindos da Guiana por Sir Thomas Warner (1580-1640), é das mais antigas da ilha. Foi de importância para a economia da ilha por séculos, estando em funcionamento até a década de 20 do século XX.

Considerada hoje como um dos principais pontos de interesse histórico-cultural do país, nela se conservam em estado arruinado do antigo moinho, aqueduto, muros de pedras e outras estruturas. A área é tratada como sítio arqueológico e museu ao ar livre, com informações a respeito da vida dos escravos que ali trabalhavam na produção de açúcar, seus derivados, aqui sobretudo de rum. As informações ali obtidas podem ser complementadas com dados e materiais oferecidos em outros centros, em particular no museu da fortaleza de Brimstone Hill.(Veja)

A localização da usina explica-se pelas condições naturais de St. Kitts, uma ilha caracterizada pelo grande número de rios e córregos que descem de suas montanhas cobertas de matas ao mar. Pela suas águas, a antiga S. Cristóvão já tinha sido pelos espanhóis para o abastecimento de suas naves. Foram, assim, as qualidades naturais próprias da ilha que explicam o papel que cabe a St. Kitts na história da implantação e do desenvolvimento do cultivo da cana e da produção do açúcar na esfera do Caribe.

Com o início da colonização inglesa, a usina foi instalada nas encostas das montanhas centrais a fim de que a água do rio Wigfield, que nasce nas alturas das florestas, pudesse mover os moinhos e outras máquinas. O maior nível das águas é nos meses de inverno, época do ano na qual os trabalhos de moagem eram feitos. Um reservatório possibilitava a contenção da água e, assim, o controle de pressão e de saída da água, transportada por uma série de canais e canalizações. Assim, toda a área adquire significado para a história da tecnologia e da arquitetura industrial.


Mudanças na preponderância de bens de exportação e suas implicações populacionais

Em Wingfield, o observador é lembrado do processo econômico que levou à predominância da cultura canaviera e de suas relações com mudanças na configuração populacional da ilha. 

Salienta-se, em primeiro lugar, o significado do cultivo e da exportação de algodão e do tabaco, em particular deste último. Em ambos os casos, tratou-se de prolongamento e intensificamente de plantas já cultivadas e usados pelos indígenas anteriormente aos Descobrimentos.

O algodão, plantado e usado pelas populações indígenas, passou a ser objeto de exportação dos primeiros colonos. Na Europa, onde o seu cultivo era limitado, houve a procura que possibilitou a exportação lucrativa e assim o desenvolvimento dos primeiros assentamentos europeus na ilha. Plantação, beneficiamento e exportação não exigiam grandes capitais dos colonos que viviam em meio à população indígena e que, de início, bem os recebeu.

Com as restrições na Europa quanto à importação do algodão para a proteção de sua própria produção, a exportação do algodão perdeu gradativamente em significado para os colonos. O algodão continuou a existir na ilha, desaparecendo porém virtualmente como objeto de cultivo em meados do século XVIII, sendo apenas reintroduzido muito mais tarde.

Tabaco entre os indígenas e na exportação de colonos - de S. Cristóvão a Virginia

O tabaco, plantado e usado pelos indígenas e aproveitado pelos colonos para a exportação, representou uma das mais significativas contribuições indígenas para a cultura do quotidiano europeu, tornando-se o fumo prática social elegante e privilegiada pelo seu custo. Assim como o algodão, também o tabaco não requeria dos colonos grande capital para o seu plantio, crescimento e exportação. 

O tabaco cresce bem nos solos vulcânicos de St. Kitts e esse fato foi de significado para o desenvolvimento do seu plantio nos assentamentos ingleses em Virginia, promovido através de plantas enviadas das Indias Ocidentais. A transmissão de conhecimentos quanto a instalações e procedimentos obtidos na ilha de S. Cristóvão favoreceu a sua implantação na terra firme norte-americana.

Também nessa região a planta desenvolveu-se bem, produzindo tabaco de boa qualidade. Nessa viagem, modos de trabalho e de vida relacionados com o tabaco no Caribe não podiam deixar de influenciar aqueles de Virginia. Concomitantemente, porém, a intensificação do comércio de tabaco norteamericano com a Inglaterra e consequente perda de lucratividade em St.Kitts determinou mudanças econômico-agrícolas nas Índias Ocidentais e uma profunda transformação de modos de trabalho, de vida e da demografia.

As razões para a perda de significado do algodão e do tabaco na economia dos colonos de St. Kitts foram diferentes, levaram porém, juntas, a uma situação que obrigou os europeus locais a procurarem outras formas mais lucrativas de uso da terra.

Perda da lucratividade do algodão e do tabaco, tensões e extermínio de indígenas

Se o algodão e o tabaco, já conhecidos pelos indígenas, marcaram uma primeira fase no assentamento colonial em meio ainda marcado pelo predomínio dos nativos, a sua crise procedeu-se paralelamente às tensões entre europeus e indígenas.

Não é sem significado a concomitância entre os desenvolvimentos econômicos causados pela perda de lucratividade do algodão e do tabaco e a intensificação da insatisfação dos indígenas para com aqueles que cada vez mais se apropriavam da ilha.

Esse desenvolvimento atingiu a sua culminância trágica com a a exterminação ou expulsão dos indígenas em 1629, um ano também marcado por conflitos entre colonos ingleses e franceses e por ataques de espanhóis. A esse ano negro seguiu-se uma década marcada pela decadência do comércio do tabaco.

A cana de açúcar e a procura de mão-de-obra - africanos para S. Cristóvão

A perda da lucratividade do tabaco na década de 1630 com a concorrência de Virgina e consequente queda de preços é vista como a principal causa da introdução da cultura canavieira e da produção de açúcar nas Indias Ocidentais na década de 1640.
A cana, nativa da Ásia, já tinha sido trazida por Colombo em 1493, o seu cultivo sistemático, porém, foi impulsionado por comerciantes holandeses que passaram os seus conhecimentos aos colonos ingleses e franceses do Caribe.
Essa reorientação agrícola teve  grandes consequências para o meio ambiente e para a população de St. Kitts. Florestas foram derrubadas para a abertura de campos para canaviais.

Os pequenos plantadores de tabaco e de algodão tiveram que dar lugar às grandes plantações.Muitos colonos assim deslocados emigraram para colonias na América do Norte ou tornaram-se bucaneiros, aumentando a pirataria na região. As plantações exigiam grandes capitais e produziam imensas riquezas, dando origem nas ílhas a grandes proprietários e gerando, na Europa, capital para expansões mercantís, técnicas e industriais.

Já não mais existindo mão-de-obra indígena, intensificou-se a procura de escravos africanos. A transformação agrícola foi acompanhada assim por uma profunda modificação na constituição da população, levando a uma extraordinária africanização das ilhas. Se em 1664 a população de ingleses era de 7000 europeus e 3000 africanos, em 1775 ali viviam 1900 europeus e 23000 africanos e seus descendentes.

Desencadeou-se assim um processo que marcou profundamente a história, a cultura e a identidade de ilhas do Caribe como St. Kitts.

Se na fase anterior a vida colonial tinha experimentado crescentes tensões com os indígenas, após a sua exterminação passou a conhecer sublevações e fugas de africanos, assim como formação de comunidades de maroons. Também aqui pode-se constatar paralelos com desenvolvimentos conhecidos do Nordeste do Brasil, tanto do ponto de vista histórico-documental como consequência de processos similares, como do ponto de vista literário-narrativo recriador e imaginativo mitologizante.

Já em 1639 houve uma grande revolta entre os escravos pertencentes aos franceses; o líder, tenso sido preso e fuzilado nos bosques do Monte Miseria (hoje Monte Liamulga), tornou-se para a sociedade atual quase que um herói mítico da história local.

De estudos euro-brasileiros no Caribe em 2017
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Do algodão e tabaco e à cana de açucar - St. Kitts. Agricultura e processos interculturais nas Antilhas e na América do Norte em paralelos e referências com o Brasil“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 171/7(2018:1).http://revista.brasil-europa.eu/171/Tabaco_e_cana_nas_Antilhas.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne




 

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