Hotentotes e Índios na literatura evangélica

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 173

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Swellendam. Foto A. A. Bispo 2018. Copyright

Sendinggestig Museum. Foto A. A. Bispo 2018. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 173/14 (2018:3)




Missões da Comunidade dos Irmãos ou dos
Herrnhuter na tradição da Boêmia e Morávia
em ultrapassagem de fronteiras:
Hotentotes e Índios na literatura evangélica missionária
e sua influência na Historiografia e Etnografia

I) Georg Schmidt (1709-1785) na África do Sul


Estudos no The South African Sendinggestig Museum da Cidade do Cabo
após 25 anos de pesquisas hinológico-etnomusicológicas em Roraima

 

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Os estudos euro-brasileiros levados a efeito na África do Sul, em 2018, trouxeram mais uma vez à consciência a necessidade de perspectivas interdisciplinares na consideração de processos culturais.

Sendo um país marcado pela problemática racial devido ao Apartheid da história mais recente, a sua superação e a consequências que levam a uma concentração das atenções a questões étnicas nos debates culturais, impõe-se o estudo de suas razões históricas. Este estudo de causas salienta o significado da história da colonização e, com ela, dos processos desencadeados pela ação de europeus desde a época dos Descobrimentos.

Estudos etnológicos - que não podem deixar de focalizar mudanças culturais - e estudos históricos interagem-se: a Etnologia não pode deixar de ser conduzida sob uma perspectiva histórica e a historiografia não pode deixar de considerar questões que dizem respeito convencionalmente à área etnológica ou antropológico-cultural.

Nessa consideração de processos desencadeados pelos europeus, a cristianização não pode deixar de ser focalizada com especial atenção. Em particular a ação de missionários merece ser analisada, uma vez que decorreu de forma dirigida e através de métodos e procedimentos de natureza formativa ou educativa, de propagação e ensino através do próprio exemplo, de pregações e escolas. A aproximação inter-disciplinar na consideração de processos culturais inclui necessariamente perspectivas da história religiosa e da Missiologia e, em geral, da Ciência das Religiões.

História missionária protestante e história colonial na África do Sul

No caso da África do Sul, são as missões protestantes que exigem ser focalizadas com mais atenção.

Se os primeiros europeus que pisaram terras sul-africanas foram portugueses e, assim católicos, a sua história colonial foi determinada pela ação e domínio de holandeses e ingleses, e, consequentemente, pelo Protestantismo nas suas diferenciações e contextos.

A África do Sul coloca outros pesos nos estudos da história missionária e suas consequências do que o vizinho Moçambique e outros países africano-ocidentais mais marcados pelos portugueses como Angola, S. Tomé e Príncipe ou Cabo Verde.

A consideração dos condicionamentos culturais dos missionários que agiram na África do Sul e que orientaram as suas atividades tem como pressuposto o estudo do movimento reformador na Europa nos seus fundamentos ideais, nas tensões com a Igreja, na sua expansão e na sua ação missionária.

Como considerado sob diferentes pontos de vista na década que precedeu ao „Ano Lutero“, a Reforma é de grande relevância também para os estudos de contextos marcados pelo Catolicismo na Europa e fora dela. (Veja) Esse significado explica-se já pelo fato de ter sido também o Catolicismo imbuído de anelos de reforma interna, assim como por ter reagido aos desenvolvimentos na Contra-Reforma - justamente em época marcada pelos Descobrimentos de regiões extra-européias.

Significado dos estudos das missões para o Brasil - aproximações musicológicas

Um dos aspectos despertaram já há muito a atenção para esse significado de estudos da Reforma também naqueles voltados a contextos católicos disse respeito à música, em particular à hinologia.

A promoção de cantos comunitários em vernáciulo em decorrência das mudanças desencadeadas pelo Concílio Vaticano II levou, na década de 1970, a uma intensificação do significado dessa área de estudos, assim como a novas aproximações interdisciplinares, em particular aquelas de natureza etnológica.

Essas preocupações constituiram escopo do „Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos“, fundado na Alemanha pela organização pontifícia de música sacra, em 1977, e cujos trabalhos etnomusicológicos estiveram até 2002 a cargo do editor.

Se até então os cantos religiosos em vernáculo, no âmbito dos estudos musicais, eram considerados sobretudo na área voltada à cultura popular tradicional européia („Volkskunde“), passaram desde então a ser tratados sobretudo em relações com processos culturais em regiões extra-européias.

Os cantos comunitários em português da era pós-conciliar constituiram um dos temas do I Simpósio Internacional de Música Sacra e Cultura Brasileira realizado em São Paulo, em 1981 (Veja). As preocupações pelo desenvolvimento de uma hinologia de orientação cultural em contextos globais culminaram no IV simpósio dessa série, realizado no âmbito do encerramento do triênio pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil, em 2002. Levado a efeito na Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, esse evento esteve sob o signo do Ecumenismo. (Veja)

Questões como a da vigência e difusão de cantos religiosos em vernáculo que antecederam a Reformação, as suas relações com desenvolvimentos da linguagem musical, recepções e interações recíprocas do repertório católico e protestante e os caminhos de sua difusão foram levantadas e tratadas em diferentes contextos.

Um dos principais aspectos desses estudos disse respeito ao uso de cantos religiosos nas ações missionárias do passado e que mantiveram-se em práticas populares tradicionais.

Cantos de proveniência missionária protestante na cultura indígena

No âmbito dos trabalhos desenvolvidos no projeto internacional relativo às culturas musicais indígenas no Brasil, iniciado no congresso internacional dedicado aos fundamentos de desenvolvimentos músico-culturais realizado no Rio de Janeiro por ocasião da passagem dos 500 anos do Descobrimento da América, em 1992, processos desencadeados pelas missões do passado foram considerados em diferentes regiões e sob vários aspectos.

Nas observações e entrevistas em grupos indígenas do Norte do Brasil, em particular no Estado de Roraima, entre êles entre os Macuxís, registrou-se a permanência de cantos conhecidos e estudados na área da Hinologia. Esses cantos revelavam a sobrevivência, ainda que com modificações, de hinos transmitidos por missionários protestantes em remoto passado em regiões fronteiriças e trazidos para o território brasileiro por diferentes caminhos, contatos e migrações. (Veja)

Essa constatação trouxe à consciência a necessidade de estudos mais atentos da ação missionária protestante nas Guianas, tanto a holandesa - Suriname - como a inglesa.

Retomada dos estudos na África do Sul - releituras das literatura missionária

Esses estudos tiveram continuidade nos trabalhos levados a efeito na África do Sul, em 2018, uma vez que também esse país foi marcado - como as Guianas - pelos holandeses e pelos ingleses na sua história colonia. Ali tomou-se consciência de que as atividades missionárias nesse contexto da ação comercial e colonial dos Países Baixos e da Grã-Bretanha inscreveram-se em processos da Europa Central que levaram ao início da assim-chamadas „missão de pagãos“ da história evangélica.

Nas reflexões encetadas em centros da região do Cabo, deu-se particular atenção à influência da literatura missionária na historiografia e na etnografia do século XIX, assim como na perpetuação de visões e interpretações no presente.

Constata-se, na literatura missionária protestante, a existência de idéias condutoras de exposições e interpretações de fatos e decorrências apesar das diferenças de contextos, seja na África do Sul seja nas Guianas. Informações contidas nessa literatura foram utilizadas em outras publicações, constatando-se até mesmo reproduções de conteúdos e cópias literais de textos.

Através de obras de autores influentes e respeitados em meios acadêmicos, essas visões e interpretações remontantes à literatura missionária tiveram entrada na esfera científica, marcando áreas de estudos e mantendo-se como de aceitação comum de forma pouco refletida até a atualidade.

„Hotentotes“ e índios na „História Evangélica das Missões“ de 1858


A principal obra que demonstra esse desenvolvimento é o livro, publicado em 1858, que trata de pioneiros da „missão entre pagãos“ da „Comunidade dos Irmãos“ (Brüdergemeinde, Unitas fratum). Trata-se do livro dedicado às missões da África do Sul e da América do Sul de Reinhold Vormbaum, pastor de Kaiserswert no Reno, localidade próxima de Düsseldorf.

Essa obra foi parte, como quarto volume, da História Evangélica das Missões em Biografias do mesmo autor. A obra foi dedicada ao A.G. Jaspis, Superintendente Geral da Província da Pomerânea em Stettin, designado pelo autor como „amigo paternal“ em intenso amor, o que sugere ter sido este o seu mentor. (Georg Schmidt, Missionar der Brüdergemeinde unter den Hottentotten Süd Afrika‘s und seine nächsten Nachfolger. Theoph. Sal. Schumann, Missionar der Brüdergemeinde unter den Indianern Süd-Amerika‘s, und seine Mitarbeiter, Düsseldorf: W. H. Scheller, 1858 = Evangelische Missionsgeschichte in Biographien IV, primeiro e segundo cadernos).

Missões da „Brüdergemeinde“ em duas latitudes - pressupostos históricos

Os dois missionários pioneiros, seus sucessores e colaboradores tratados na „História Evangélica das Missões em Biografias“, sendo membros da „Brüdergemeinde“, trazem à consciência o significado das comunidades ou „famílias“ evangélicas livres no início da missão entre os „pagãos“ do século XVIII, um movimento que se compreendia como sendo supra-denominacional.

Esse fato permite que essas atividades sejam enquadradas em determinado contexto histórico e geográfico europeu e o reconhecimento dos pressupostos culturais dos missionários e as concepções e modos de vida que os orientaram.

A Brüdergemeinde, também conhecida como Unitas Fratum - no sentido de unidade evangélica ou renovada de irmãos -, Herrnhuter ou, na esfera de lingua inglesa de morávios, dirige a atenção à Europa Central, mais particularmente à Boêmia e, assim, a uma tradição que remonta à Reformação nessa região, aos „irmãos da Boêmia“.

Essa região da atual Tchequia experimentou uma expansão do movimento reformador nos séculos XVI e XVII, estendendo-se a regiões vizinhas do sul da Alemanha e à Áustria, o que levou à intensificação da ação contra-reformista da Igreja em esforços recatolizadores que marcaram a cultura religiosa, a arquitetura, as artes, a música e os modos de vida dessas regiões.

As várias denominações dificultaram até hoje o reconhecimento dos traços comuns que marcaram a ação dos Herrnhuter em regiões extra-européias, em particular na África - onde alcançaram o seu maior sucesso - e nas Américas. Nos Estados Unidos, assim como na esfera de língua inglesa em geral, a comunidade de irmãos é tratada antes sob o nome de morávios, o que indica a sua origem na Morávia.

A história da Reforma na Boêmia e causas da aversão ao Catolicismo

O movimento reformador nessas regiões da Europa Central é marcado pelo vulto do boêmio Jan Hus (1369-1415), queimado no contexto do Concílio de Constancia, em 1415. Entre os Hussitas, os seus seguidores, havia aqueles de tendências mais rígidas ou fundamentalistas (Taboritas) e aqueles que procuravam caminhos mais realistas e pragmáticos para a sobrevivência da comunidade e sua expansão (Utraquistas), uma dissidência que marcou tensões na comunidade através do tempo. Sob a influência de pregador que sucedeu a Hus em Praga e que defendia a convicção de que a palavra de Deus, se necessário, também poderia ser propagada com o uso da força, a comunidade passou a usar de meios militares.

Designados como „irmãos boêmios“ por aqueles não pertencentes ao movimento, foram alvo de opressões e perseguições por parte de autoridades civís e eclesiásticas, culminando com bula de cruzada do Papa Martim V (1369-1431), de 1420, e, em consequência, com a eclosão das guerras hussitas no combate aos católicos. Compreende-se, nesse contexto, a profunda animosidade para com o Catolicismo dos irmãos e da ação missionária que desenvolveriam no mundo extra-europeu.

A concepção da igualdade de todos os cristãos e suas consequências

No debate teológico interno da comunidade, contrariando a convicção da legitimidade do uso da força na propagação do Evangelho, desenvolveu-se, em continuidade à tradição de John Wyclif (1330-1384) uma corrente de cunho pacifista que condenava o serviço militar obrigatório e que era guiada pelo ideal de um retorno ao Cristianismo original dos primeiros séculos. Nela salientava-se a virtude da pobreza, se voluntária, assim como a igualdade de todos os cristãos.

A essa comunidade concedeu-se como sede a propriedade de Kunwald, em 1457, que se tornou centro de irradiação de um movimento que rapidamente cresceu. Nessa comunidade, onde também havia aqueles mais fundamentalistas - o assim chamado „pequeno partido“ - passou a predominar tendências menos severas e mais pragmáticas do „grande partido“ -, constituindo-se sob este signo a união de irmãos: Unitas Fratrum.

Sobretudo essa concepção de igualdade de todos os cristãos teria consequências nas atividades missionárias na África e nas Américas, uma vez que fomentava uma auto-consciência entre subalternos não bem vista por classes dominantes.

O significado do ensino, expansão e translocações na Europa Central

Dessa época, e em estreito relacionamento com os anelos de propagação, as atividades passaram a ser marcadas pela preocupação de ensino, sobretudo a partir do primeiro bispo da comunidade, o pedagogo Johann Amos Comenius (1592-1670).

A Guerra dos 30 anos marcou profundamente a história da comunidade dos irmãos, sendo a sua existência na Boêmia fundamentalmente abalada, levando à emigração de seus membros, entre outros locais à Polonia e à Hungria.

Outro movimento migratório deu-se por força da Contra-Reforma, que levou à vinda de irmãos da Morávia à propriedade do conde Nikolaus Ludwig von Zinzendorf (1700-1760) na aldeia Berthelsdorf região do Oberlausitz. Nessa região, fundaram Hernhut, uma denominação segundo a qual passaram a ser conhecidos. No edifício do Vogtshof construido pelo proprietário, instalou-se em 1756 a sede do diretorio da Unitas Fratrum.

Já esse crescimento e solidificação institucional surgiu como ameaçadora à unidade protestante, o que levou à expulsão dos Zinzendorf pela Saxõnia. Os irmãos transferiram-se em 1737 para a região de Berlim (Böhmisch-Rixdorf) e o conde Zinzendorf encontrou asilo no burgo Ronneburg em Wetterau, condado de Ysenburg e Büdingen, onde fundou as comunidades Marienborn e Herrnhaag.

Os desenvolvimentos seguintes foram marcados por uma aproximação ao Luteranismo. A comunidade dos irmãos diferenciava-se nas suas concepções teológicas daquelas de Martinho Lutero (1483-1546), alcançando-se uma aproximação - assim como com os reformados - com a Confessio Bohemica, de 1575.

O conde Zinzendorf realizou viagens como pregador na Alemanha, nos Países Baixos, na Suíça e na Escandinávia, atuando nos países bálticos, na Inglaterra, Rússia, nos Estados Unidos, e no Caribe, aqui sobretudo em Saint Thomas.

Os Países Baixos e a Companhia Holandesa das Índias nas missões dos Herrnhuter

Os Países Baixos desempenharam decisivo papel como ponto de partida dos missionários. Para irem aos Estados Unidos e a regiões extra-européias da esfera colonial de nações não-católicas, partiam sobretudo dos portos holandeses.

A presença nos Países Baixos favoreceu a ida a regiões de atuação da Companhia Holandesa das Indias Orientais, o que explica a atividade missionária na África do Sul.

Essas atividades pioneiras desenvolveram-se antes da fase principal da „missão dos pagãos“ dos evangélicos livres e que se daria a partir de Christiansfeld na Dinamarca, fundada em 1771 com o apoio da Casa Real.

Georg Schmidt na Europa e na África do Sul - hinos e missão

A biografia de Georg Schmidt de Vormbaum trata da sua vida na Europa e das suas atividade missionárias na África do Sul.

A exposição parte do grande desenvolvimento da evangelização no sul da África: ali, onde viviam antes „pagãos decaídos e ignorantes“ haviam siurgido comunidades cristãs bem organizadas e muitas almas que até então tinham vivido sem esperancas, passaram a experimentar a paz que seria sinal dos „filhos de Deus“.

Nascido na Morávia em época atribulada devido às perseguições na propagação do Evangelho que, segundo Schmidt, seriam demoníacas, foi levado a que se transferisse, em 1726, à propriedade do conde von Zinzendorf.

Em Herrnhut trabalhou  como  empregado doméstico das família. Juntamente com um companheiro - Milchior Nitschmann -, imbuído de fervor missionário, viajou com ímpetos juvenís à católica Salzburg, onde via a necessidade de seu empenho reformador. Já essa migração foi expressão da profunda religiosidade de Schmidt: a saída de Herrnhut era feita não por vontade, mas sim na consciência de que um cristão deveria morrer para a sua própria vida, sacrificando-se para Cristo. Como salientado na História das Missões, nada mais desejavam do que a „expansão do império de Cristo“ e a salvação dos homens (op.cit. 4)

O significado da prática de hinos religiosos na comunidade revela-se na menção de que, quando de sua parrtida para Salzburg, o próprio conde Zinzendorf, da galeria da casa, entoara cantos com textos bíblicos.

No seu caminho, atingiram a Boemia, onde receberam apoio de irmãos. Denunciados às autoridades católicas, foram presos e levados para Schuldberg, nas proximidades de Brünn, onde permaneceu durante seis anos. Nela, de celas diferentes, correspondiam-se através de cantos. (op.cit. 6) Ali foi visitado frequentemente por um Jesuíta, com o qual manteve disputas, solidificando as suas convicções.

Em 1734, pôde retornar a Herrnhut. Os sofrimentos passados contribuiram a que tomasse a determinação de oferecer um exemplo de testemunhar a fé que fortalecesse os irmãos. Dirigindo-se novamente à Boêmia, atingiu a Suíça, retornando em 1736 a Herrnhut.

Pouco depois, a comunidade recebeu o pedido de dois irmãos de Amsterdam para que fossem enviados missionários para os hotentotes es da África do Sul. Com uma carta de recomendação de von Zinzendorf dirigida à Companhia das Índias Orientais, Georg Schmidt dirigiu-se a Amsterdam, onde teve que superar várias dificuldades e se submeter a exames por teólogos. Estes o advertiam, salientando que a língua doa hotentotes era muito difícil de ser aprendida e que um europeu não podia viver entre eles - a sua alimentação consistia em raízes e não cultivavam a terra.

Em 1737, Georg Schmidt atingiu a Cidade do Cabo, onde, travou contato com hotentotes que sabiam um pouco de holandês. Acompanhado por dois deles, Afriko e Kibbodo, penetrou no interior do país, dando início às suas atividades suas atividades no rio Zonderend. Estabeleceu-se em Baviaanskloof e fundou Genadental na região Overberg do Cabo, aos pés do Riviersonderendberg, em 1738. A sua memória é mantidas no museu local, o Moravian Mission Museum, instalado no prédio da primeira escola para professores da África do Sul, criada em 1837.

A ação missionária como risco da ordem instituída da sociedade colonial

Georg Schmidt foi expulso em 1744. Uma razão dessa expulsão foi a de não ser ordenado e de que o sino da sua igreja perturbava a comunidade vizinha de Stellenbosch.

Esse argumento é considerado hoje como pretexto para encobrir a verdadeira razão das dissidências, explicáveis antes pelo fato de que, com a atividade de ensino de Schmidt junto aos nativos (hotentotes, Khoikhoi)  e escravos fugidos, estes adquiriam mais conhecimentos do que os lavradores de ascendência européia da região.

Na realidade, as causas residiam nos fundamentos teológicos da ação missionária: a concepção de igualdade de todos os cristão segundo um modêlo visto no Cristianismo original levava a uma maior auto-consciência desses grupos subalternos, pondo em risco a ordem social e a política estabelecida.

Tudo indica que sobretudo mulheres possibilitaram a permanencia de conhecimentos e práticas resultantes das alfabetização, da leitura e do canto de textos bíblicos. Sobretudo os hinos contribuiam à memorização e, assim, à permanência de textos. Assim, quando as as atividades missionárias puderam ter prosseguimento em 1792 com a atuação de pastores devidamente ordenados: ali encontraram uma mulher Khoikhoi - Vehettge Tikkuie („mãe Lena“), que ainda lia a bíblia deixada por Schmidt há muitos décadas.

Panorama histórico e etnográfico - os „hotentotes“ nas suas qualidades positivas

Para dar uma noção mais clara aos leitores das condições em que as atividades de Schmidt se desenvolveram, Vormbau oferece um panorama da história do descobrimento do sul da África. Menciona em primeiro lugar Bartolomeu Dias e a mudança de nome de „cabo dos totos tormentos“ (sic!) para cabo da Boa Esperança.  Segundo o historiador, os portugueses não se teriam interessado em fixar-se na região, pois ali não viam riquezas. A tentativa de Francisco de Almeida (1450-1510) falhara devido à inimizade dos nativos. Ao contrário, depois de um século, esses teriam sido ganhos em amizade e fechado um contrato com os holandeses.

Nessa exposição, o acento dado ao não interesse dos portugueses já denota a crítica à ambição material que tanto marcavaas convicções dos Herrnhuter. Também a menção da inimizade dos nativos responsável pelo insucesso de Almeida revela uma idéia fixa que se manifesta em outros pontos da história das missões evangélicas. Essa visão pode ser explicada pela animosidade aos católicos decorrente da história dos Herrnhuter e da própria experiência de vida de Georg Schmidt. Essa interpretação histórica tinha como consequência uma valoração positiva dos nativos.

O fomento ao trabalho como anelo da missão evangélica em combate à letargia

Passando a tratar da época marcada pela Companhia das Indias Orientais e do estabelecimento da colonia, o autor da „História Evangélica das Missões“ apresenta
um panorama positivo dos nativos sul-africanos, salientando as boas qualidades daqueles que, pelos holandeses, eram chamados de hotentotes.

O seu relato pormenorizado - de grande relevância sob o ponto de vista histórico-etnológico -  apresenta os Khoikhoi como povo pacífico de pastores e homens bem conformados fisicamente pela natureza. Crítica é feita apenas à preguiça que teriam por natureza e a sua imoderação no comer, falta de virtudes que compreensivelmente mais contrariavam a ética de trabalho e o modo de vida da comunidade dos irmãos.

Constituindo a riqueza dos nativos o gado e vivendo sobretudo do leite e, em casos extremos, da carne, os missionários precisaram com o sue próprio exemplo mostrar o que conseguiam tirar da terra com trabalho.

Uma outra crítica dos Herrnhuter dizia respeito aos divertimentos noturnos dos hotentotes e que se relacionavam com a sua preguiça. Não trabalhando durante o dia, tinham energia para passar noites divertindo-se em danças que, para Georg Schmidt, eram rudes, sem forma e acompanhadas por música monótona e cantos:  „Es ist das ein roher, unförmlicher Tanz, der von einer eintönigen Musik und mit Gesang begleitet wird.“ (op.cit. 15)

A pouca vontade de trabalhar dos nativos, correspondia, para os missionários, à pouca vontade de pensar e à falta de necessidades espirituais.  Haveria poucos pagãos que tivessem tão deficientes concepções religiosas do que os hotentotes. Tinham noção de um ser supremo, mas não se preocupavam com ele, sendo o único traço de religiosidade a veneração de um inseto, Matins.

A degradação e letargia dos „hotentotes“ como resultado da colonização


A interpretação das decorrências na ótica dos Herrnhuter era marcada em princípio por uma simpatia aos nativos, vendo nas suas qualidades negativas consequências de seus contatos com os europeus. Eram, segundo o historiador evangélico, em princípio hospitaleiros e confiáveis, sendo que traições e procedimentos escusos os teriam aprendido com os europeus. Devido às más experiências, mantinham-se distantes do mundo civilizado, mas o contato com os europeusjá os tinham levado à decadência, tornando-se cada vez mais degradados e insensíveis.

Se no início da colonização as relações eram pacíficas, o aumento dos colonos tinha levado a dissidências e a tratamentos cruéis dos nativos por parte dos europeus. Os hotentotes então se tinham dividido: alguns tinham permanecido como serviçais no Cabo, outros dirigiram-se às montanhas do norte e ao deserto, passando a ser os chamados Buschmänner. Com o aumento da necessidade de serviçais, os holandeses passaram a procurar esses fugidos, praticando atos de violencia e escravizando-os. Desde 1774 tinha havido até mesmo intuitos de sua extinção através de comandos para o assassinato de homens e escravização de mulheres. Podia-se assim entender que no coração desses „homens do mato“ crescesse a amargura e o ódio, transformando-os em perigosos inimigos dos colonos europeus. (op.cit. 19)

Os muitos nativos que preferiram trabalhar para os lavradores europeus tinham um destino pior do que os fugidos para o mato. A sua situação era mais negra do que a da escravidão. Assim, um após outro, foram desaparecendo os nativos livres da colonia, sendo as suas terras ocupadas pelos colonos.

Não era surpreendente, assim, que o caráter e a capacidade espiritual desse povo decaíssem, dando lugar a uma sinistra letargia e falta de coragem. Em última hora, a ação dos missionários tirava-os do abismo. (op.cit. 20)

Aversão dos nativos ao Cristianismo - vantagens de missões eclesialmentem livres

Como Reinhold Vormbaum salienta, os hotentotes tinham sido de início avessos às pregações, fato compreensível por verem no Cristianismo a religião dos seus opressores. Tinha-se visto, nesta atitude, uma falta de receptividade dos nativos que impedia toda e qualquer missão.

A Companhia das Indias tinha-se empenhado por todos os meus de cristianizá-los, mas os missionários da Igreja Reformada Holandesa não tinham tido sucessso. Reconheceu-se, então que apenas uma missão que não tivesse elos com a sociedade colonial e sem interesses materiais poderia levar a bom termo a ação missionária e esta teria sido a razão do pedido dierigido à Brüdergemeinde.

Tratando da atividade missionária de Schmidt, o historiador salienta os esforços que este fez no sentido de acostumar os hotentotes ao trabalho através do seu próprio exemplo. Logo o missionário construiu uma cabana e criou uma pequena horta. Nesse empenho, baseava-se no ensinamento bíblico (Jes.54,2).

Se o dia dedicava ao trabalho, as noites eram voltadasd ao ensino dos nativos, tendo o seu auxiliar Afriko como tradutor, uma vez que os seus esforços em aprender a língua tinham sido em vão. Chegara à conclusão que seria mais fácil que os hotentotes aprendessem o alemão do que êle o seu idioma, passando assim a ensiná-los. (!) Também aqui, o aprendizado da língua estrangeira era facilitado pelo canto. Tudo indica que Georg Schmidt também tenha reconhecido a necessidade de que os nativos aprendessem antes o holandês através de hinos nessa língua. Assim, em carta a seu amigo Isaak Lelong, em Amsterdam, datada de 15 de maio de 1742, pedia o envio de cantos em holandês para os seus hotentotes (op.cit. 47).



De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „Missões da Comunidade dos Irmãos ou dos Herrnhuter na tradição da Boêmia e Morávia
em ultrapassagem de fronteiras: Hotentotes e Índios na literatura evangélica missionária e sua influência na Historiografia e Etnografia I) Georg Schmidt (1709-1785) na África do Sul“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 173/142018:3).http://revista.brasil-europa.eu/173/Missionarios_evangelicos_Georg_Schmidt.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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