Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 141/16 (2013:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath e Comissão especializada
Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
e institutos integrados
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N°2962
Joinville, a "cidade mais alemã" do Brasil
Distinções em acepções de alemanidade:
do cultivo de modos de vida tradicionais à agitação pangermânica do Alldeutscher Verband
Chile-Alemanha-Brasil. Aproximações à história cultural de relações comerciais e da diplomacia
O livro Weltreisen de Ernst Hengstenberg (1903) oferecido a Ernst von Treskow (1844-1915) II
Alemanha-Brasil
Diálogos de Berlin-Charlottenburg pelos 30 anos do simpósio euro-brasileiro de renovação dos estudos da emigração alemã ás Américas
no ano da Cumbre Unión Europea-CELAC 2013
No ano de 2013, dedicado nos estudos culturais em particular ás relações entre a Alemanha e o Brasil pela passagem dos 30 anos de simpósio dedicado à emigração alemã à América, dá-se prosseguimento, sob novas perspectivas, ao debate desenvolvido em ciclos de estudos recentemente realizados. (http://revista.brasil-europa.eu/141/Brasil-Alemanha-2013.html)
Se a atenção concentrou-se por último no conceito de liberdade no ideal formativo do homem nas suas relações com o liberalismo político-econômico e conceitos de Estado e nação (Veja http://revista.brasil-europa.eu/140/Liberdade-em-debate.html), o foco de interesses extende-se agora ao campo de tensões caracterizado nesse edifício de pensamento pelas relações entre o processo de individualização e concepções e imagens do universal ou geral no homem e na sociedade.
Considerar a imigração e colonização alemã ao Brasil à luz dos questionamentos que aqui se colocam pode contribuir ao aprofundamento dos estudos de relações entre a Alemanha e o Brasil.
A necessidade de reconsiderações teóricas nos estudos da imigração e das relações entre a Alemanha e o Brasil nos seus elos com diferentes perspectivas e acepções de processos coloniais foi novamente salientada no âmbito de debates referenciados pelo conceito de Pos-Colonialismo tratado em seminários universitários na Alemanha e tematizado no Forum Rio Grande do Sul do congresso internacional pelo encerramento do triênio pelos 500 anos do Brasil em 2002.
Temas relativos à história da imigração e da colonização alemã no Brasil, sendo de particular significado para a história regional de Estados sul-brasileiros, tem sido compreensivelmente focalizados sobretudo a partir de um ponto de vista identificado com o contexto receptor brasileiro.
Tem-se dado, ao contrário, menor atenção à história da imigração e da colonização alemã no Brasil nas suas inserções em contextos mais amplos que englobem outros países do Novo Mundo e de outros continentes. A consideração da história global de emigrações européias como, em particular, daquela que nela se insere de alemães às diferentes partes do mundo surge, porém, como pressuposto para a análise de causas, motivos e de mecanismos de processos culturais nas suas dimensões supra-nacionais.
Nesse intento, merece uma particular atenção a intensificação, na Alemanha, de correntes promotoras de uma política de expansão colonial nas últimas décadas do século XIX, pois tiveram influência no processo integrativo de imigrantes e seus descendentes já estabelecidos no Brasil.
Esse movimento, segundo o qual o Império alemão constituído com a vitória da Guerra Franco-Prussiana de 1870/71, seguindo o exemplo de outras potências coloniais européias, devia preocupar-se em adquirir e formar colonias em regiões extra-européias, relacionou-se sob diversos aspectos com convicções de uma alemanidade acima de fronteiras e continentes, ou seja, com concepções que hoje seriam designadas como expressões de uma compreensão essencialística de cultura.
Essas tendências que intensificaram-se nas últimas décadas do século XIX também foram recebidas em comunidades de colonos já estabelecidos no Brasil. Expressões culturais que traziam da terra natal e que eram mantidas e cultivadas antes de forma espontânea e não refletida passaram a ser vistas à luz de tendências político-coloniaiistas, resignificadas e mesmo instrumentalizadas a serviço da recuperação e construção de elos identificatórios.
Ernst Hengstenberg no Rio Grande do Sul: Rio Grande, Pelotas, Porto Alegre
Uma fonte pouco considerada que surge como significativa para estudos relativos às diferenças entre uma alemanidade na fisionomia e na vida colonial no Brasil e o pangermanismo de dimensões globais propagada à época de movimentos político-colonialistas é o livro de viagens de Ernst Ernst Hengstenberg e que inclui relatos de repetidas viagens por êle realizadas pelo mundo. Ainda que publicado posteriormente, baseia-se quanto ao Brasil em notícias de diários que registrou em 1893. (Ernst Ernst Hengstenberg, Weltreisen, Berlin: Dietrich Reimer 1903) (http://revista.brasil-europa.eu/141/Chile-Alemanha-Brasil-Ernst-Hengstenberg.html)
A parte da obra de Ernst Hengstenberg referente ao Brasil tem o seu início no Rio Grande do Sul, por onde entrou no país vindo de navio do Chile. Estava consciente que chegava a uma região marcada já há muito pela presença alemã, contando na época com ca. de um quarto de milhão de habitantes de origem alemã ou de descendentes de alemães.
Diferentemente de outros viajantes que visitaram antes colonias da serra gaúcha, Ernst Hengstenberg teve as suas impressões marcadas pela sua viagem por cidades portuárias, o que explica as expressões antes negativas de seus registros. (Cf. http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Franz-Heiderich-Adrian-Balbi.html)
Para um viajante que, segundo as suas próprias palavras, para além de interesses comerciais procurava manter a sensibilidade aguçada para com as belezas do mundo natural, essas impressões de discreto entusiasmo adquirem particular significado para a leitura adequado do seu relato.
A descrição de Ernst Hengstenberg inicia com a entrada de navio pela barra da Lagoa dos Patos, mencionada como de difícil trânsito devido ao fato de suas águas serem frequentemente baixas. O canal de passagem, estreito, variava constantemente de posição dependendo das areias de aluvião. Navios de calado maior precisavam frequentemente esperar dias até que se tivessem condições favoráveis para a passagem.
Por detrás das costas arenosas, ermas, via-se um farol de dimensões esbeltas, não se podendo ver a cidade de Rio Grande por ser esta encoberta pelas dunas. Essa cidade, então com ca. 20 000 habitantes, é descrita por Ernst Hengstenberg como silenciosa e sem vida. A sua função era a de mediadora na exportação das colonias alemãs às províncias do Norte do Brasil, assim como, em geral, àquela de couros.
A viagem de trem a Pelotas é descrita também por Ernst Hengstenberg com palavras pouco entusiásticas. Salienta a planície cruzada pela ferrovia, designando-a como grande deserto arenoso. Pelotas, cidade que contava com ca. de 25 000 habitantes, ainda que qualificada como simpática pelo viajante, não mereceu dele outro registro do que o fato de ser conhecida sobretudo pelos seus grandes matadouros.
Também não entusiástica é a descrição da viagem marítima a Porto Alegre, num vapor do Lloyd Brasileiro que navegava em vai-e-evem através de áreas rasas. Porto Alegre, então com 45000 habitantes, é descrita como cidade amável pela sua localização entre cinco rios, registrando que a melhor vista da paisagem obtia-se do bairro de Menino de Deus. Aqui constatou que a cidade comprimia-se em estreita faixa do litoral, o que obrigava a extender-se pelas colinas.
A continuação da viagem em direção a Santa Catarina também não despertou maior fascinação em Ernst Hengstenberg. Partindo de Porto Alegre de navio, precisava-se retornar à Barra a sul, através da Lagoa dos Patos, prosseguindo-se então a norte para o mar aberto através de uma longa costa desértica e arenosa.
Em Santa Catarina: Florianópolis, Itajaí, São Francisco do Sul e Joinville
À época da chegada de Ernst Hengstenberg a Santa Catarina, a sua capital tinha há pouco mudado o seu nome de Desterro a Florianópolis. As impressões do viajante são de início muito mais favoráveis do que aquelas que ganhara no Rio Grande do Sul. Florianópolis é descrita como situada de forma encantadora em ilha separada da terra firma por um estreito braço de mar e defendida pela fortaleza de Santa Cruz.
Também aqui Ernst Hengstenberg procurou contemplar a paisagem e a cidade a partir dos altos. Menciona, assim, que a melhor vista da cidade obtia-se do Pau Bandeira. Desse local, há 400 metros de altura, descortinava-se um panorama que Ernst Hengstenberg descreve como magnífico, como um cenário multifacetado marcado pelo mar na sua infinidade e pela exuberante vegetação.
De Florianópolis, Ernst Hengstenberg atingiu Itajaí, ponto de passagem para a ida às colonias Brusque e a Blumenau. Assim como não visitara as colonias mais propriamente alemãs da Serra Gaúcha, também não visitou essas duas cidades, lembrando apenas de passagem que Blumenau, que tinha sido fundada em 1852 pelo Dr. Hermann Blumenau, de Braunschweig, era então uma colonia que muito prosperava, situada em meio a terras muito férteis.
Após curta viagem, Ernst Hengstenberg atingiu São Francisco do Sul, porto do qual não deixa registros positivos, e que no caso não se justificavam tanto pela natureza como pela fisionomia da cidade e de sua população marcada pelo já longínquo passado colonial português.
Dessa forma, Ernst Hengstenberg observa que se o emigrante alemão pisasse o solo brasileiro primeiramente em São Francisco do Sul, necessariamente se assustaria ao ser recebido por policiais de ascendência africana, enchendo-se de temores ao ser controlado por um policial negro:
"Den Einwanderer, der zum ersten Male brasilianischen Boden betritt, mag wohl ein gelinder Schrecken durchfahren, wenn er von dem tiefschwarzen Polizisten gemustert wird und dessen grosse Augen, deren Weiss von der Schwärze des Antlitzes unheimlich absticht, auf ihm ruhen, als ob er ihn mit seinen blitzenden, elfenbeinernen Zähnen anfallen wollte." (op.cit. 146)
São Francisco do Sul serve, assim, no relato de Ernst Hengstenberg, ao contraste que estabelece com o capítulo que se segue na sua obra, onde salienta os privilégios estéticos e culturais de Joinville e que demonstravam as qualidades positivas da colonização alemã comparativamente àquela do passado colonial luso.
O viajante salienta, assim, que felizmente o emigrante que entrava por São Francisco do Sul não precisava ficar nesse porto por longo tempo e que já dele saindo encontrava uma bela região de várzeas coberta de mangues e repleta de aves. Em duas horas de viagem atingia-se a colonia alemã às margens do serpenteado rio Cachoeira.
Uma cidade da Floresta Negra nas florestas do Brasil: Joinville
Ernst Hengstenberg salienta no seu texto a surprêsa gratificante que teve ao encontrar, no interior de regiões ainda então cobertas de florestas de Santa Catarina, uma cidade que surgia como um transplante ao Novo Mundo de alguma amena e idílica localidade da Floresta Negra.
Não apenas a aparência física das pessoas revelavam a sua origem alemã, mas também o seu modo de vestir, os seus hábitos, a sua moradia e, sobretudo, o uso dominante do idioma alemão.
A aparência alemã da localidade resultava também da arquitetura de suas casas e das plantas que cresciam nos jardins.
O visitante acredita ter sido transportado a uma amável estância balneária da Floresta Negra. Crianças de cachos loiros e olhos azuis com faces frescas, avermelhadas, com as suas roupas limpas e claras dão-nos uma impressão altamente simpática. Após ter-se ouvido o horrível som anasalado da língua portuguesa a bordo de um vapor brasileiro por longo tempo, as sonoridades da terra soam duplamente agradáveis. A rua principal, a Rua do Príncipe, Prinzenstrasse, apresenta quase o cunho de um certo luxo de cidade pequena; as casas muito limpas com as suas janelas emolduradas por efeu ou rosas e as varandas ornamentadas com trepadeiras emprestam uma aparência convidativa à cidade visceralmente alemã. Nos jardins florescem lílias, brincos-de-princesa e glicínias; que as redondezas são ricas em palmeiras, isso percebe-se na saborosa salada de palmitos que se recebe no excelente albergue Beckmann. A encantadora cidade-jardim tem 3000 habitantes. Através da mais rigorosa limpeza impede-se a entrada da febre amarela.
Através das fotografias publicadas na obra, o leitor alemão podia confirmar visualmente essa descrição de Ernst Hengstenberg. A imagem da rua principal com as suas casas construídas de forma alinhada e homogêna, com a mesma forma de telhados com queda à frente, em geral com disposição simétrica de duas janelas à direita e à esquerda da porta principal, com o mesmo recuo de rua e jardins fronteiriços, algumas com acréscimos laterais, similares às de muitos povoados alemães, comprovavam uma disposição urbana planejada. O cuidado pelos jardins e as trepadeiras nas paredes documentavam as palavras do autor.
O hotel Beckmann, citado no texto, é apresentado em fotografia para a qual reuniram-se empregados e hóspedes, alguns deles sentados à mesa ao ar livre e que comprova a amenidade da vida colonial. É possível que a atenção dedicada aos serviços de restaurante do hotel Beckmann de Joinville fosse uma expressão de interesses de propaganda comercial do autor, relacionados com a divulgação do vinagre e de conservas de qualidade da firma Hengstenberg e que vinham de encontro a hábitos alimentícios relacionados com o consumo de pepinos, repolhos e mostarda, em particular de Sauerkraut ou "chucrute" em regiões colonizadas por alemães.
Imprensa em Joinville e a presença do Alldeutscher Verband
O quadro oferecido por Ernst Hengstenberg oferece uma impressão de idílica serenidade e paz da vida de Joinville. O seu relato sugere que na pequena comunidade colonial a concórdia era resultante de condições favoráveis que permitiam a liberdade e o desenvolvimento livre de aptidões de seus habitantes. A comunidade alcançava uma individualidade marcada pela paz e que se manifestava na comedição da polêmica política nos seus dois jornais, impressos em alemão.
No sentido de uma cultura do exprimir-se e do debater, Joinville superava aquela da própria Alemanha, cuja imprensa era segundo Ernst Hengstenberg então marcada por um tom polêmico ferino e destruidor.
O que surge como mais significativo no relato de Ernst Hengstenberg é que este menciona a presença do Alldeutscher Verband em Joinville, salientando que mesmo este movimento, caracterizado na Alemanha pelas agitações que promovia, tinha a sua ação temperada sob o clima de moderação que predominava na cidade.
Dois jornais alemães mantém na sua polêmica um idioma tão moderado que podiam servir de exemplos para certas folhas da terra natal. Uma ação abençoada desenvolve também aqui a sociedade escolar. Uma ramificação da Liga Panalemã ("Alldeutscher Verband") evita agitações que não caberiam em país tão hospitaleiro, contribui, porém, a impedir que as características alemãs se percam na cultura brasileira. Joinville é, assim, com exceção do nome, tão originalmente alemã que até os políticos da cidade desenvolvem as suas sessões na língua alemã.
À época da visita de Ernst Hengstenberg em Joinville, o Alldeutscher Verband que menciona na sua obra publicada em 1903 denominava-se ainda Allgemeiner deutscher Verein (Allgemeine Deutsche Verband). É digno de ser salientado que essa associação já possuia uma representação em Joinville em 1893, uma vez que havia sido constituída recentemente, em 1891. Como as palavras do viajante sugere, era conhecida como uma das ligas de agitação na Alemanha, agindo sob o signo de concepções culturais "povísticas" (völkisch).
O registro de Ernst Hengstenberg documenta assim a existência dessas tendências culturais povístico-nacionalistas, pangermânicas na colonia brasileira e que tinham em contexto geral, implicações expansionistas, militaristas e político-colonialistas.
A própria origem da associação inseria-se em contexto colonialista, ou seja, o do acordo Helgoland-Sanzibar de 1890. A colonia brasileira, assim, surgida muito antes, em outro contexto histórico da emigração alemã, era alcançada por movimento militante de defesa de interesses coloniais surgido entre círculos nacionalistas na Alemanha e relacionados sobretudo com a África, sendo um de seus iniciadores Carl Peters (1856-1918), natural de Braunschweig, o fundador da África Alemã do Leste.
Como as palavras de Ernst Hengstenberg indicam, a ação dos "Alldeutsche" ou "Gerais" no Brasil não era tão voltada à agitação a favor da defesa militante de interesses alemães, uma vez que, como salienta, havia liberdade, mas na revitalização de consciência de um patriotismo alemão e, assim, do cultivo de expressões culturais, modos de vida tradicionais e idioma. No Brasil, comportavam-se de forma particularmente mansa, não violenta.
Para as gerações já nascidas no Brasil, esses intentos significavam necessariamente um reforçar de elos com o passado familiar através da memória e de expressões tradicionais, levando a reconstruções e à criação de imagens estilizadas. Uma consciência exacerbadamente patriótica de um "ser alemão" surgia aqui em contraste com o ufanismo afirmativo brasileiro daqueles já nascidos no país.
A situação colonial no Brasil correspondia sob muitos aspectos a uma imagem fundamental para o edifício de concepções dos "Alldeutsche". Como país de florestas virgens, no qual o emigrante tinha que lutar para impor-se na existência, no qual via como um direito defender a sua liberdade de ação no mundo natural marcado pela sobrevivência do mais forte, levado a sempre expandir o seu espaço vital abatendo cada vez mais as florestas que se afastavam e na qual o Estado resumia-se a um mínimo na sua ação controladora, as regiões sul-brasileiras de emigração correspondiam à concepção geral de que o homem se encontra no mundo natural sujeito à luta e marcado pela sobrevivência do mais apto, tendo o direito de agir em liberdade e mesmo egoisticamente na defesa dos seus interesses e ímpetos de expansão. Essas convicções de luta a favor de exigências vitais, confirmadas aparentemente pelas condições existenciais em regiões de floresta, correspondiam também àquelas que, na Europa, levavam a glorificações militaristas e de Guerra.
Liberdade de ação e expansão em ordem, limpeza, diligência e "pureza" racial
Apresentando um susciento resumo da história de Joinville, lembra das circunstâncias do início do projeto colonizador, da explicação da sua designação não-alemã, e das razões que assim explicavam os estreitos vínculos com a família imperial brasileira.
Também lembra de singular episódio da chegada de emigrantes noruegueses que, por mal-entendidos, vieram ao Brasil pretendendo dirigir-se à Califórnia, uma ocorrência que estabelece relações entre a história emigratória alemã ao Brasil e a norueguesa à América do Norte (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Luzes-nordicas.html).
O Príncipe de Joinville - por isso o nome da cidade - o cunhado do Imperador Pedro II, recebeu de presente da nação por ocasião de seu casamento com Dona Francisca uma grande área de terras. Para povoá-lo com imigrantes, fundou-se em 1849 uma sociedade de colonização em Hamburgo. No ano de 1851 chegou o veleiro Colon com 118 alemães e suíços à costa brasileira e dirigiu-se à entrada emoldurada de montanhas do porto da pequena ilha de São Francisco do Sul. Quase ao mesmo tempo, chegando do Rio de Janeiro, a barca Marecco, com 74 noruegueses, entrou no porto, embora estes desejassem ir ao San Francisco na California. Em homenagem à esposa do príncipe de Joinvile, a colonia fundada por esses primeiros imigrantes foi denominada de Dona Francisca.
Após 40 anos dessa fase pioneira da implantação da colonia, a situação modificara-se totalmente. Os resultados obtidos demonstravam segundo Ernst Hengstenberg as virtudes vistas como tipicamente alemãs ou prussianas dos pioneiros e seus descendentes. Para salientá-las, transmite um quadro dos primeiros anos obtido de informações orais, pintado com cores particularmente negras e que serve de lição para aqueles que desejassem emigrar.
Recordando essa fase pioneira da colonização de quatro décadas atrás, Ernst Hengstenberg considera as consequências que as múltiplas dificuldades iniciais trouxeram para a emigração alemã e para as relaçõs entre a Alemanha e o Brasil. As circunstâncias e as condições vivenciadas pelos imigrantes no Brasil, conhecidas na Europa, co-determinaram não apenas um negativização do empenho emigratório como da imagem do Brasil, levando a medidas oficiais coibitivas.
"O que a energia persistente do alemão consegue alcançar e como é mantida até mesmo nas mais difíceis condições isso testemunha a história da colonia. (...)
Quem hoje desejar assentar-se na florescente colonia, apenas precisa empurrar a civilização mais a dentro da natureza livre da floresta, não fazendo porém um idéia das grandes dificuldades com as quais os primeiros colonos tiveram que lutar e como é boa a situação em que se encontram. Os colonos aportaram à época mais quente do ano e encontram apenas uma clareira (...) cercada como que com uma densa muralha de floresta numa planície pantanosa cercada por colinas. (...) Uma transformação radical de todas as condições encontrava-se à sua frente. Decisões erradas de todo tipo, falta de previsão e cuidado da sociedade de colonização foram de graves consequências e levaram ao Reskript von der Heydt, que hoje já não é mais adequado sob qualquer forma.
A derrubada da floresta custou indizíveis esforços. Como um dilúvio choveu logo de início durante seis semanas; se o sol conseguia sair, os seus raios queimavam tanto que fervia literalmente na caldeira abafante da floresta. Muitos imigrantes morreram com febres, mulheres e crianças viviam em contínuo pavor de cobras e de animais selvagens, e precisavam temer também na época os índios. (op.cit. 150-151)
interpretação em retrospectiva das saudades da terra natal dos pioneiros
Significativo é o fato do autor estabelecer uma relação entre essas informações negativas transmitidas à Europa com as condições psíquicas do imigrante. Defrontado com as imensas dificuldades que tinha de enfrentar na luta existencial no mundo natural, o colono conscientizava-se da terra que abandonara, sendo tomado por saudades e sentimentos de lealdade.
Ernst Hengstenberg salienta essa intensificação nostálgica de sentimentos pátrios e de saudades por familiares e por situações de vida e de cultura da terra abandonada da geração dos pioneiros.
Só agora o imigrante conscientizava-se do pêso da tarefa que se impunha para criar uma nova existência sob infinitas insuficiências. Como tornou-se logo claro para êles como o homem está preso com todas as fibras do seu coração com a sua pátria e ao local onde passou a sua juventude. (loc.cit.)
Recomendações do Primeiro Congresso Colonial Alemão de 1902
Ainda que remontantes a viagens que realizara ao Brasil na década de 90, a obra de Ernst Hengstenberg indica atualizações realizadas à época de sua publicação em 1903. Como testemunho das condições positivas, até mesmo idílicas de Joinville, adquire relevância no âmbito da melhoria da opinião alemã relativamente à emigração ao Sul do Brasil pela passagem do século.
Ernst Hengstenberg cita explicitamente resolução do Primeiro Congresso Colonial Alemão, de 1902, e que recomendou o empenho colonial e empreendedor alemão no Brasil.
Queira a resolução tomada pelo "Primeiro Congresso Colonial Alemão" de 1902 trazer consequências para o bem dos imigrantes: "O assentamento de colonos alemães no Sul do Brasil pelo espírito empreendedor alemão, com capital alemão e política comercial alemã deve ser ativamente fomentado."
Significativamente, von Hengstenberg procura corrigir o retrato da emigração ao Brasil e do próprio país na Europa, criado pelas informações dos primeiros imigrantes.
Apesar de sempre exigir muitos esforços e renúncias, os colonos conseguiram alcançar uma boa situação, e aqueles que ainda desejassem vir não teriam mais que lutar contra dificuldades similares. Já encontrariam uma cidade estabelecida e tão amena quanto uma cidade de veraneio na Alemanha, apenas necessitando participar na sua ampliação, abrindo terras de cultivo nas matas circundantes, agora já afastadas do núcleo inicial.
Ernst Hengstenberg salienta as condições positivas da fertilidade do solo e do próprio clima. Flores e folhas sêcas exportadas de Joinville já estavam até mesmo presentes na Alemanha em forma de decorações. Nesse contexto, lembra do nome de um dos principais empreendedores de Joinville, proprietário de uma usina açucareira e canaviais bem instalados.
Quem desejar emigrar algum dia, precisa estar consciente que os primeiros anos exigem esforços e trabalho pesado de forma muito mais intensa do que em casa, e que vai encontrar condições totalmente diversas do que as da terra natal.
Após alguns anos de muita diligência e persistente constância, aqueles que se decidiram algum dia a emigrar e que não estavam em claro para onde, podem contar que alcançarão uma boa situação nessa colonia. A terra virgem tem no terreno uma vez preparado uma enorme força produtora; os raios do sol que aqui tão potentemente atuam contribuem para que o trabalho pesado não fique sem frutos. Para muitos milhares de povoadores há ainda lugar nos arredores de Joinville.
Os alemães que agora vivem na colonia progrediram bem, pois, com intenso trabalho, o clima e a terra nada deixam a desejar. Os colonos produzem principalmente mandioca, cana de açúcar, milho, feijão preto, tabaco, arroz, café, cera e mel; também exportam flores e folhas sêcas para decorações Makart para a Alemanha.
Um dos alemães mais excepcionais de Joinville é o Sr. Brüstlein; como representante do Duque de Aumale, filho de Louis Philipp, administra a sua fábrica de açúcar em Pirabeiraba e as plantações que a ela pertencem, cortadas por vias férreas de campo.
Viagem em direção ao Paraná: São Bento do Sul através do "Rio Doce dos Botocudos"
Para além de sua descrição de Joinville e da vida de seus habitantes, o texto de Ernst Hengstenberg adquire significado também por documentar a situação das regiões que atravessou na sua viagem de Joinville a Curitiba.
Essa parte do seu relato oferece um retrato das condições ecológicas da região após mais de 35 anos da abertura da estrada, documentando a existência ainda de trechos com exuberante e densa floresta e, sobretudo, referências a indígenas na região, hoje de interesse histórico-etnológico.
A estrada da serra, imponente com os seus 158 quilômetros de comprimento e ca. 1000 metros de altura nos leva através do vale do Itapocú à província Paraná. Com a construção da estrada aberta com arte nas montanhas e que tem inclives de até 15 pCt., iniciou-se já em 1857. Ela foi estalada no meio da floresta, cujas árvores gigantescas são cobertas com rêdes de cipós, bromélias e parasitas. Bambús e samambaias são tão densos que nem mesmo um camundongo pode atravessá-los. (op.cit. 152)
Os seus dados relativos aos indígenas, já então desaparecidos de Joinville, indicam que estes sentiam-se obrigados a recuar das áreas colonizadas, procurando refúgio nas florestas que iam sendo cada vez mais derrubadas. Designados como bugres pelos colonos, deviam a sua denominação portuguesa de botocudos, também depreciativa, ao botoque utilizado nas suas faces, o que é registrado por Ernst Hengstenberg.
A colonia São Bento, estabelecida pela sociedade colonizadora de Hamburgo em 1873 em área alta, saudável e fértil, prospera excelentemente. Passamos pelo território do Rio Doce dos Botocudos, em parte ainda inexplorado, e que são chamados de bugres pelos colonos. Característico é o pedaço de madeira que lhes deforma o rosto, através do qual aumenta-se o lábio inferior, que se desenvolve em forma de um prato. Com ajuda da madeira podem imitar perfeitamente sons de pássaros e outros animais. Já nas crianças faz-se um furo no lábio inferior, através do qual se coloca um botoque de dentro para fora; com os anos, é substituído por um maior, de modo que o lábio rebaixa-se cada vez mais. Alguns colocam também placas de madeira nas orelhas. Os botocudos são extremamente tímidos e reservados; na sua nudez, raramente ousam sair das florestas; de cor de pele amarela, brilhante, têem cabelo longo, rígido e negro, e irradiantes dentes brancos. Vivem de caça e pesa; os peixes são atirados com o arco.
Através das florestas densas de Erva mate (Ilex paraguayensis) chegamos a cavalo em Rio Negro e também no nosso tão almejado local de pernoite.
Quando se pergunta a um brasileiro um caminho, ouve-se quase sempre um é perto. Por fim, ganha-se a impressão que o é perto é uma forma de consolo cortês. Isso prova uma outra resposta: "é longinho, mas é pertinho. (loc. cit.)
Necessária análise de concepções e imagens vigentes em processos culturais
O caminho para a continuidade dos estudos culturais no contexto Alemanha-Brasil não pode ser guiado pelos critérios e concepções que se depreendem de uma leitura de textos como o de Ernst Hengstenberg.
Torna-se necessário rever posições e convicções do passado sob uma perspectiva mais distanciada e que traz necessariamente uma relativação de visões ufanistas e encomiásticas, de orgulho pelo alcançado na luta existencial sem dirigir a atenção à destruição, em pouco tempo, de imensas regiões cobertas de florestas pujantes e seculares, de riquíssima fauna e flora, e da assimilação obrigada ou do extermínio cruel de indígenas.
Uma ocupação crítica com o passado no sentido de uma "Vergangenheitsbewältigung" torna-se necessária também no âmbito dos estudos da imigração e da história teuto-brasileira.
Como vem sendo discutido, não se trata na coincidência da situação brasileira com uma visão do mundo socialdarwinista, uma vez que os fundamentos do edifício de concepções são anteriores a Darwin, de remotas origens no pensamento filosófico-natural.
Nesses fundamentos do sistema de noções do mundo e do homem residem os problemas derivados dessas convicções e que se manifestam da forma mais crua à medida em que o mundo natural é crescentemente destruído pelo homem em processo que se extende ao interior do Brasil.
Os direitos de liberdade de ação, de expansão, de defesa de interesses pela luta pela sobrevivência no mundo natural, em sentido figurado na floresta da vida, surgem como expressão de uma visão do mundo geocêntrica e antropocêntrica, que exige ser repensada a partir de uma perspectiva mais distanciada.
Círculo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo
Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Joinville, a "cidade mais alemã" do Brasil. Distinções em acepções de alemanidade:
do cultivo de modos de vida tradicionais à agitação pangermânica do Alldeutscher Verband. Chile-Alemanha-Brasil. Aproximações à história cultural de relações comerciais e da diplomacia
O livro Weltreisen de Ernst Hengstenberg (1903) oferecido a Ernst von Treskow (1844-1915) II". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 141/16 (2013:1). http://revista.brasil-europa.eu/141/Joinville-e-alemanidade.html