Os Sakalava no Madagáscar Olodum
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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154/19 (2015:2)



Os Sakalava no
Madagáscar Olodum de Luiz Caldas/Margareth Menezes
discutido em Nosy Be


Pesquisa da Música Popular em Processos Transculturais e World Music 2015


Pelos 450 anos do Rio de Janeiro


 

No „Madagáscar Olodum“ (Margareth Menezes), o cantor Luiz César Pereira Caldas, natural de Feira de Santana (BA), considerado como o criador da música „Axé“, popularizou vários aspectos da história e da cultura de Madagáscar no Brasil.

Essa consideração do país malgache na música do cantor baiano foi alvo de reflexões em estudos promovidos pela A.B.E. em janeiro e fevereiro de 2015 no próprio Madagáscar. A escolha dessa grande ilha do Índico para estudos culturais em ano no qual se comemora o Rio de Janeiro pelos seus 450 anos explica-se primeiramente pelas comparações que sempre se constatam entre a baía da Guanabara e a também grande baía de Diègo-Suarez, também ali
Nosy Be. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
existindo um Pão de Açúcar. (Veja)

Essa aproximação às relações Madagáscar/Brasil são assim de início de natureza visual. Sob o ponto de vista musical, ganham em atualidade com o „Madagáscar Olodum“, que torna presente a grande ilha do Índico no Brasil.

Para a consideração do seu texto no Madagáscar surge como particularmente adequada a ilha de Nosy Be. Como o „Madagáscar Olodum“ decanta em particular os Sakalava, essa ilha oferece possibilidades para observações relativas à conservação da memória, à consciência histórica e à identidade desse grupo populacional.

Museu junto à árvore sagrada - culto a ancestrais e edifício cultural

Um local de especial significado para os Sakalava é aquele da „árvore sagrada“ situada não muito distante de Hell Ville, a capital da ilha.

Nosy Be. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Trata-se de uma gigantesca árvore, de quase dois séculos, que teria sido plantada em homenagem à rainha sakalava Tsiomeko, vinda em 1837 pela baía de Ampassindava.

Através de um sombrio corredor natural entre os galhos, atinge-se o nicho que contém oferendas, testemunho da enraizada crença em espíritos e do culto de ancestrais no Madagáscar.

Nosy Be. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
Os panos que envolvem esse corredor natural o dividem em duas esferas, simbolizadas por tecidos vermelho e o branco, com possíveis associações a ouro e prata, entre outras correspondências. Essas cores oferecem possibilidades para a análise do edifício cultural de concepções e imagens, sugerindo a representação de forças elementares ou princípios. O pesquisador brasileiro não pode deixar de pensar na organização visual de tradições brasileiras em duas alas, filas ou cordões, em geral simbolizadas pelas cores vermelha e azul. Esses paralelos abrem perspectivas para análises culturais mais aprofundadas e que devem dar continuidade às reflexões atuais.
Nosy Be. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
Na área adjacente a essa árvore sagrada há um pequeno museu onde se encontram expostas fotografias históricas relativas aos Sakalava, além de objetos e instrumentos de sua cultura tradicional. Ali também se encontram fotografias e trajes de apresentações do carnaval Donia, o principal festival de música e cultura do Índico. (Veja)

Essa exposição de documentos da história dos Sakalava, em particular de seus reis e rainhas no contato com autoridades coloniais francesas, ao lado daquelas do carnaval Donia, favorece a consideração, no Madagáscar, de uma música que tematiza o país no Brasil, uma vez que é ligada ao nome do criador da „música Axé“, conhecida sobretudo a partir do carnaval da Bahia.

Continuidade do debate sobre música popular no estudo de processos culturais

A „música Axé“, que adquiriu popularidade também no Exterior, evidencia a intenção de relacionar múltiplas tendências da música pop, elementos  - em particular rítmicos - de diferentes tendências, origens e conotações, brasileiros, tais como samba e frevo, ou do Caribe, como reggae. Desses combinações e interações, o cantor baiano desenvolveu um estilo que passou a ser conhecido como de „deboche“ ou de „fricote“.

Este último termo designou uma das suas produções que, com o seu sucesso comercial, contribuiu para que o autor marcasse um desenvolvimento da música popular da década de 80 que teve influência na mudança ou diferenciação da imagem do Brasil, de sua música popular e do seu carnaval no Exterior. 

Esse desenvolvimento foi acompanhado nos trabalhos do I.S.M.P.S. e da A.B.E. e considerado em cursos e seminários em universidades alemãs que se inseriram em programa de interações euro-brasileiras iniciado em 1974 com o apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) (Veja).

Esse programa remontava ao movimento de renovação dos estudos culturais relacionados com a música constituído em sociedade em 1968 e que fora originado da constatação de que, no sistema de áreas disciplinares, de pesquisa e ensino institucionalizado,  significativos desenvolvimentos músico-culturais do passado e do presente não encontravam lugar, entre êles também os da música popular.

Em época de grandes festivais, marcados pela extraordinária popularidade de artistas, por diferentes tendências, também de implicações políticas, essa situação fazia-se premente e exigia a discussão das bases metodológicas adequadas para a sua solução. Em época também marcada pela difusão de obras voltadas à teoria da comunicação e da então chamada cultura de massas, essas preocupações faziam-se sentir em várias esferas da pesquisa e da prática musical.

Posições, perspectivas e iniciativas surgiam como contraditórias nas suas orientações e inserções culturais e mesmo políticas, fosse em textos de afirmação nacional de um José Ramos Tinhorão, fosse em tentativas de superação de esferas de músicos eruditos como Diogo Pacheco, Damiano Cozzela e Paulo Herculano. (Veja)

Se o primeiro - e outros autores - participavam antes de discussões com pesquisadores de folclore então preocupados com a atualização da área, os regentes e músicos de formação musical  contribuiam não só com os seus conhecimentos técnicos para arranjos, mas traziam experiências da vida musical para o ensino em instituições livres e oficiais de nível médio e superior.

Um momento relevante nesse desenvolvimento foi o show Blow up que, em 1970/71, após longa temporada em São Paulo e várias apresentações Rio de Janeiro e em Brasília, percorreu várias Estados brasileiros. Esse show, que reuniu músicos de formação musical como Rogério Duprat e muitos cantores de grande popularidade como Juca Chaves e Jorge Ben, era marcado pela interação de estilos e esferas, tematizando a criação de imagens e de stars ou ídolos pela mídia no exemplo da sua figura central: Rita Lee.

Essa temática foi discutida em encontros realizados em universidades e instituições de ensino e pesquisa de vários Estados por ocasião das estadias, salientando-se aqui, entre outras, na Universidade Federal da Bahia e no arquivo de gravações do conservatório Alberto Nepomuceno em Fortaleza.

No âmbito dos estudos superiores, a música popular passou a ser considerada em cursos instrumentais, de composição e de Licenciatura em Educação Musical e Artística, o que se manifestou na Semana das Artes realizada em São Paulo, em 1974. (Veja)

A música popular nas iniciativas voltadas à institucionalização da musicologia no Brasil

Na fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia, em 1981, reafirmou-se a necessidade do desenvolvimento adequado de uma pesquisa científica da música popular, conduzida de forma atualizada segundo o movimento renovador dirigido a processos. Salientou-se, porém, a exigência de uma implantação da área no âmbito universitário adequado das ciências culturais ou humanas de uma faculdade de Filosofia, não na área da música prática e do seu ensino, ou seja, em cursos superiores de conservatórios, escolas superiores de música ou faculdades de Artes e Comunicações.

No primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado em São Paulo, em 1987, que considerou a situação da pesquisa e dos estudos musicológicos no Brasil, dedicou-se uma sessão específica a essas questões, tratadas interdisciplinarmente por vários pesquisadores, salientando-se aqui uma análise semiológica da Música „Língua“ de Caetano Veloso por Severino do Ramo Gomes de Lima da Faculdade Mozarteum de São Paulo.

Nas discussões, lembrou-se que a divisão pragmática das sessões do congresso segundo áreas convencionais não deveria reafirmar concepções de esferas categorizadas da cultura segundo o erudito, o popular e o folclórico, cuja superação tinha estado à base do movimento de renovação há muito iniciado.

Defender a institucionalização de uma área disciplinar especificamente voltada à música popular em estudos superiores representaria uma contradição, retrógrada e contraprodutiva, pois implicaria na retomada de concepções marcadas pela diferenciação de esferas do popular, do folclórico e do erudito, correspondendo em consequência à manutenção ou reintrodução convencial de disciplinas como Folclore musical ou de uma história da música voltada especificamente a uma esfera considerada como culta, artística ou erudita da música.

O tratamento de fenômenos e desenvolvimentos compreendidos como músico-populares, de evidente necessidade, devia ser fomentado segundo concepções teoricamente refletidas da musicologia de orientação cultural e da música nos estudos culturais no seu todo, sendo para isso dirigir a atenção primordialmente a processos e processualidades, não a concepções de cultura como entidade ou essencializadoras de esferas - também a de uma pré-definida „música popular“.

Atenção dirigida a processos e música na era da globalização - „Worldmusic“ em debate

No desenvolvimento assim sumarizado inseriu-.se a consideração de desenvolvimentos musicais mais recentes como os do carnaval baiano a partir dos anos 80 em colóquios e seminários realizados em universidades européias.

Entre esses eventos, salientaram-se cursos dedicados à música em processos históricos de relações internacionais no encontro e interações culturais nas universidades de Colonia e Bonn, assim como mais especificamente no seminário dedicado à música e globalização sob o signo da „Worldmusic“ nesta última, em 2003/4.

Questões afins foram tratadas em seminários voltados à Estética e Migrações, quando, entre outros aspectos, tratou-se de diferentes aproximações teóricas de problemas relativos a interações e processos inter-e transculturais nas suas relações com questões de identidade, integração e diferenciação, entre outros da problemática de conceitos como hybridism.

Outro aspecto particularmente discutido foi o das relações entre a Worldmusic e, em geral, da música em processos de globalização no presente com a problemática indígena. Em continuidade a projeto de levantamento do saber sobre culturas indígenas remontante à introdução da Etnomusicologia em São Paulo em 1972, a perspectiva tornou-se cada vez mais abrangente, considerando primeiramente a problemática indígena nas suas dimensões continentais e, a seguir, em outros continentes, no Norte da Europa entre os hiperbóreos (Veja) ou na Austrálía e Oceania (Veja).

Também na produção musical do autor baiano de „Madagáscar Olodum“ coloca-se o problema da cultura indígena no contexto da globalização, fato demonstrado em 2009 com uma produção com textos em Tupi dedicada aos povos indígenas.

Misturas, interações e referências musicais e processos históricos

Foi no sentido desse desenvolvimento relacionado com expresão genérica de Worldmusic mas orientado à análise de processos culturais que se considerou o complexo de questões malgache-brasileiras que sugere o „Madagáscar Olodum“, uma vez que o seu cantor nela continua a manifestar o sen empenho em relacionar ou „misturar“ diferentes estilos, tendências e impulsos, tais como do hard rock, do pagode, forró e arrocha.

As referências históricas no texto indicam de forma puntual a recepção de informações sobre a história do Madagáscar, sem, porém, poder entrar nas dificuldades e incertezas da pesquisa, marcada por suposições e hipóteses.

Elas iniciam-se com a menção dos Merina (Imerina) nas regiões altas e centrais da ilha e o processo de configuração de um estado na diversidade de povoados que se teria intensificado no século XVII. O texto lembra também de Ralambo, considerado como fundador do reino que se centralizaria em Antananarive com uma série de fortificações para a defesa do território. A discutida questão do edifício religioso marcado por concepções de sacralidade real e que se manifesta nas 12 colinas sagradas da capital do Madagáscar, é mencionada na menção de Ivato, hoje uma das localidades periféricas dessa cidade e conhecida pelo fato de ali localizar-se o aeroporto.

Criaram-se vários reinados
O ponto de Imerinas ficou consagrado
Ranbosalama, o vetor saudável
Ivato, cidade sagrada

O texto não entra aqui no problema da constituição de um sistema social marcado pela distinção entre a nobreza dos descendentes de Ralambo, a casta dos comuns e dos escravos. Após um período de desintegração, coube a Andrianampoinimerina em fins do século XVIII alcançar a unificação e consolidação do poder central.

Sem citar porém essa figura de central importância na história e na memória malgache, o texto passa a lembrar do seu filho Radama I e, com isso, fase da história da ilha do início do século XIX marcada pelo confronto de interesses franceses e britânicos nas suas relações com as decorrências políticas na Europa, preparando a expansão do poder dos Merina por toda a ilha. No contexto da situação política no Índico, esse reinado foi marcado não só pela europeização, sobretudo conduzida pela missão protestante britânica, pela conquista de reinados vizinhos no planalto, dos Betsileo no sul, subjugando os Betsmisaraka e os Sakalava.

O texto de „Madagáscar Oludum“ passa de imediato dos primórdios da consolidação do reino à época da rainha Ranavalona I, marcada pela reação cultural, por uma política de isolamento e, ao mesmo tempo, de procura de auto-suficiência, que entrou na história também pelo clima de repressão, pela proibição do Cristianismo e pelas atrocidades cometidas, o que não é lembrado no texto, decantando apenas ter-se destacado „na vida e na mocidade, majestosa negra... soberana da sociedade.“

Ao contrário, o seu sucessor, Radama, que novamente abriu o país ao comércio mundial e permitiu o Cristianismo, marcando uma fase de transformações que culminaria com a instauração do regime colonial francês, é mencionado como „alienado pelos seus poderes“, „que levava seu reino a bailar“.

A rainha Ranavalona destaca-se na vida e na mocidade
Majestosa negra...soberana da sociedade
Alienado pelos seus poderes
Rei Radama foi considerado um verdadeiro Meji
Que levava seu reino a bailar
Bantos, indonésios, árabes
Integram-se a cultura Malgaxe
Raça varonil alastrando-se pelo Brasil
Sankara vatolay faz deslumbrar toda nação
Merinas povos tradição
E os mazimbas foram vencidos pela invenção


Elementos históricos na transmissão de uma mensagem - a imagem do arco-íris

Aquele que canta no texto define-se como „arco-íris de Madagáscar“, sugerindo a diversidade, ou talvez a diversidade na unidade e a unidade na diversidade. Essa imagem do arco iris justificaria a afirmação constantemente repetida de „Madagáscar ilha, ilha do amor“.

Essa afirmação, que não encontra na história e talvez mesmo no presente fundamentos, marcada que foi a ilha no passado por conflitos, tensões, atrocidades e escravizações, na atualidade por grandes problemas econômicos e sociais, pela situação de empobrecimento e de desesperadora falta de perspectivas, apenas parece justificar-se como estando a serviço de uma mensagem, para isso utilizando-se de elementos da história, desintegrados porém de processos.

Essa mensagem abre caminhos para que se compreenda que nesse quadro apresentado da história do Madagáscar dê-se de repente vivas ao Pelourinho como patrimônio da humanidade, designado como palco da vida, de protestos e manifestações de Olodum contra Apartheid, unindo-se assim ao Madagáscar na evocação em liberdade da igualdade.

Singular no texto é que os Merinas são mencionados positivamente como „povos tradição“ e, ao mesmo tempo os Sakalava são repetidamente decantados: „lhê lhê lhê, Sakalavas oná ê“. Essas menções podem sugerir relações harmoniosas que não correspondem à história de séculos de tensões entre esses dois povos e que podem ser ainda hoje constatadas na memória e em expressões de ressentimentos.

Esse peso dado aos Sakalava no texto do „Madagáscar Olocum“ exige uma consideração mais atenta desse  povo - ou conjunto de grupos étnicos - que habita sobretudo a costa ocidental do Madagáscar.

O complexo histórico dos Sakalava e o comércio de escravos

Apesar dos Sakalava terem sido frequentemente mencionados nas fontes, na literatura de viagens, de geografia e de etnografia do passado e do presente, permanecem pouco elucidados muitos aspectos relativos à sua origem, história, e sobretudo sobre o papel que exerceram no comércio e escravos.

Por vários motivos é um grupo populacionais que exige considerações globais de transmigrações e contatos entre povos. A sua língua surge como um dos varios dialetos do malgache, que é um ramo do grupo malaio-polinésio derivado de língua falada em Borneo. A expressão é em geral explicada como indicando uma situação geográfica da área por êles habitada („do longo vale“), sendo explicada porém também como derivada por caminhos árabes do termo escravo do latim (ar. Saqaliba), o que já sugere uma das principais problemáticas do passado desse grupo populacional.

Em identificação própria, os Sakalava se consideram como sendo povo de pastores de gado, ou seja, como „boiadeiros“. Com essa menção, os Sakalava se relacionam não só com uma atividade que marcou secularmente a economia da ilha - já registrada pelos europeus quase que como emblema da ilha no século XVI e XVII -, como também com uma imagem de amplo espectro de significados, relacionados com concepções espirituais, com práticas sacrificiais e funerárias, com crenças relativas à morte e ao mundo das sombras. Significativamente, a exposição de Nosy Be inclui entre os vários documentos e materiais da cultura Sakalava uma figura de boi, assim como representações de boi em instrumentos musicais. (Veja)

Também a própria consciência histórica apresenta-se como complexa e apta a ser considerada sob diferentes perspectivas. Segundo a tradição, os seus fundadores remontariam a Maroseranana, cognominado de „dominador de muitos portos“, senhor de Fiheranana (Toliara). Como fundador do império Sakalava guarda-se a memória de Andriamisara e seus filhos, que teriam ampliado o poder a outras áreas. Na Idade Média, os seus régulos teriam aumentado o seu poder com o comércio escravo com povos do Índico e da África do Leste. tendo como centros principais Menabe (atual Morondava). A sua área de poder estendia-se também a Antsiranana (Diégo Suarez). (Veja)

Particular atenção merece a hipótese de serem descendentes de Zafiraminia, possivelmente resultantes de miscigenações com povos de origem árabe. Neste caso, menções nas fontes mais antigas, em particular na História do Madagáscar de Étienne de Flacourt (1607-1660) (Veja), abre caminhos para uma elucidação de questões de povos mestiços e do comércio de escravos no Madagáscar. De europeus que resgatavam escravos, recebiam armas, com as quais subjugaram régulos vizinhos.

Até o século XIX possuiam dois grandes reinos, o de Menabe na parte sul da costa ocidental, com a capital Morondava, e o dos Boina no norte, com a capital Boeny. Esta deu lugar ao porto de Mahajanga, por ser este o principal local do comércio de escravos, uma atividade que marcou a história dos Sakalava, tendo nas proximidades - Marovoay - a sede do reino.

A história dos Sakalava foi marcada sobretudo pelas guerras com os Merina, o que torna questionável o panorama histórico apresentado no „Madagáscar Olodum“. Pelo que se supõe, os Salakava teriam já no século XVI atacado aldeias dos Merina, conflitos que se prolongaram nos séculos seguintes; por fim, no século XVIII, submeteram-se ao poder de Andrianampoinimerina.

No quadro histórico assim traçado, com a crescente influência britânica no Índico, intensificada após a derrota das forças de Napoleão na Europa, e com o consequente empenho britânico no término do comércio de escravos e abolição da escravatura, os Sakalava teriam perdido importante base de seu poderio, e isso em época de expansão dos Merina.



Os Sakalava, elos com o mundo árabe e tratos com franceses

Sob essa perspectiva, torna-se compreensível o papel de importância desempenhado pelos Sakalava de Boina (Mahajanga) no processo de colonização francesa do Madagáscar na segunda metade do século XIX. Esse passado de relações com os franceses é documentado no pequeno museu de Nosy Be com fotografias históricas, uma delas mostrando a recepção da rainha dos Sakalave por autoridades militares coloniais da França.

Outro complexo de questões que apresenta obscuros aspectos, mas que surge como de especial interesse para a análise de relações entre os Sakalava, os Merina, a história do comércio de escravos e o seu papel na colonização do Madagáscar diz respeito à religião islâmica.

Vulto histórico lembrado no museu é o de Andriantsoly (ou Tsy Levalou), líder à época da Independência do Brasil, de antiga tradição real de Boina, e que se convertou ao Islão. Entre 1822 e 1824 foi vencido pelos exércitos do rei dos Merina, Radama I, que contou com o apoio britânico. Dando continuidade à sua luta contra os Merina, dirigiu-se, por fim, ao Zanzibar, onde procurou ajuda junto a autoridades muçulmanas. Com a morte de Radama I, as forças de Ranavalona I conseguiram manter a predominância dos Merina na região. Refugiando-se em Nosy Be, posteriormente em Maiote, Andriantsoly ali criou em 1831 a tradição de centro real Sakalava, fato ainda hoje recordado. Posteriormente, casou-se com uma parte do sultão de Maiote, lutando pela sua causa em guerras contra rivais e piratas. A história de Andriantsoly relaciona-se aqui estreitamente com aquela das ilhas comorianas. Perdendo o apoio do sultanato e em tensão secular contra os reis do planalto do Madagáscar, apoiados que eram pela Grã-Bretanha, esse líder procurou o apoio dos franceses.

Como exposto no museu, Tsimiharo I (1832-1883) e autoridades Sakalava, no combate aos Merina, então em expansão dominadora da ilha, solicitaram também auxílio ao sultão de Zanzibar, incluindo no trato a proposta de tornaram-se muçulmanos. O sultão enviou um navio de guerra, e a família real e círculos da população livre assumiram o Islão, continuando a praticá-lo nas décadas seguintes. Tsimiharo solicitou também o apoio dos ingleses de Maurício, mas estes se encontravam mais ligados aos Merina. Por essa razão, dirigiu-se aos franceses de La Réunion, assinando em 1841 um tratado no qual concedia direitos sob o território, o que causou tensões com outras lideranças.

Ter-se-iam assim dado passos fundamentais a caminho da colonização francesa. Paralelamente, porém, a influência francesa intensificou-se também entre os Merina, ali também fundamentando-se em acordos, o que levaria por fim à instauração do regime colonial francês no Madagáscar.

Esse quadro histórico, ainda que aqui apenas sumariamente esboçado, é complexo, pois demonstra interações entre problemas internos de conflitos entre grupos populacionais em diferentes fases de procura de predominância e relações com a França, surgindo o regime colonial paradoxalmente como fator de unidade na diversidade étnico-cultural da ilha.

Para garantir o poder, a França concedeu, em 1896, poderes políticos e em assuntos religiosos e internos a líderes indígenas, o que perdurou por décadas, o que explica alguns dos atos históricos registrados em fotografias no museu de Nosy Be.

O Madagáscar na história da música em contextos globais - século XIX

A consideração dos documentos fotográficos da história dos Sakalava expostos em Nosy Be possibilitou a retomada dos estudos de história da música em contextos globais desenvolvido nos últimos anos, em particular aqueles relativos ao século XIX e tratados em curso na Universidade de Bonn, em 2002/3. A interpretação de referências históricas pode ser aprofundada e diferenciada no contexto político e de processos transculturais considerados. As reflexões partiram de uma representação de músicos em cortejo da rainha Binao na data nacional francesa de 14 de julho de 1893.

Em primeiro plano, vê-se grupo de instrumentistas precedendo a multidão constituida por mulheres. O instrumental compôe-se sobretudo de instrumentos europeus, de arco e percussão. Estes últimos indicam que não só entre os Merina, mas também entre os Sakalava a influência da música militar foi determinante. No caso dos primeiros, sabe-se que o significado da prática musical de banda no Madagáscar explica-se pela vinda de maestro europeu e pela atividade de ensino por êle desenvolvida. A recepção da música européia entre os Sakalave precisaria aqui ser vista em outro contexto, antes francês do que britânico, antes relacionado com práticas tradicionais francesas do que com a música de bandas militares. Constata-se, entre os músicos em segundo plano, o emprêgo de instrumentos tradicionais, entre êles idiofones. Tudo indica tratar-se de uma parte instrumental de um contexto musical e músico-coreográfico maior, possivelmente com implicações rituais, ouvida com atenção pela multidão presente, acompanhada com bater de mãos.

Essa representação de cortejo real na data comemorativa da Revolução Francesa documenta o papel da música na política Sakalave no início da instauração do regime colonial francês no Madagáscar.

Madagáscar em cursos universitários de Worldmusic, Salegy e o Madagáscar Olodum

O papel relevante desempenhado pelo Madagáscar no âmbito da assim-chamada Worldmusic foi tratado em curso desenvolvido no Seminário de Musicologia da Universidade de Bonn em 2003. Esse curso, sob orientação brasileira, inseriu-se no acima mencionado movimento de renovação dos estudos musicológicos segundo a sua orientação a processos - inter-e transculturais.


A atenção dirigiu-se não tanto a aspectos do passado em contextos globais com base em fontes históricas, mas a desenvolvimentos do presente no contexto da globalização. Os trabalhos desenvolvidos, apresentados e discutidos no âmbito do seminário consideraram a diversidade de expressões musicais e de dança na atualidade do Madagáscar e de artistas malgaches residentes e atuantes no Exterior.


Instrumentos tradicionais de diferentes proveniências, instrumentos ocidentais e improvisados a partir de materiais reciclados, manifestações de dança de diferentes grupos culturais tradicionais e do teatro malgache, música instrumental e de banda remontantes ao século XIX e início do XX, gêneros e estilos recebidos da música popular internacional de diferentes épocas, foram alguns dos temas considerados a partir de grupos atuais.


Estes evidenciam diferentes relações com a música tradicional ao redor de artistas líderes como Dama e Erick Manana, ou de grupos como Mahaleo e Feo-Gasy, este marcado pelo flautista Rakoto Frah. Uma atenção especial foi dada em trabalhos acadêmicos a Erick Manana, líder do grupo Lolo Sy Ny Taniry e da música tradicional do planalto malgache em geral (ba-gasy), comparando-o com artistas similarmente identificados com a música popular de cunho tradicional de outros países.


Das tendências mais recentes de recepção de música rock internacional considerou-se o grupo Ambondrona.  Entre os cantores conhecidos na Europa, em particular na Alemanha, considerou-se no seminário Eusèbe Jaojoby, representante de música de dança de regiões do litoral malgache.


Sobretudo conhecido em Paris, Jaojoby, um cantor Sakalava de Diègo-Suarez, ganhou renome como motor e principal representante da corrente estilística músico-popular ou gênero denominado de Salegy. Tem-se procurado revelar no Salegy uma proveniência da música tradicional africana e nela ver um documento da influência africana no litoral do Noroeste do Madagáscar. Uma consideração mais aprofundada dos elos histórico-culturais dos Sakalava com o litoral africano, em particular com Zanzibar, impõe aqui maiores diferenciações, para que não se parta nas reflexões de estereotipos de música africana. Abrir-se-ia assim perspectivas para a compreensão da influência árabe que nela se tem constatado nas suas inserções em tradições culturais de mais profundos significados.


Problemas: luta contra Apartheid e obscuridades do passado escravocrata


As reflexões sobre o „Madagáscar Olodum“ no próprio contexto do povo decantado dos Sakalava traz à consciência mais uma vez a problemática de reconstruções históricas insuficientemente diferenciadas em referenciações africanas no Brasil. Como o texto explicitamente menciona, o Olodum coloca-se ao lado de Madagáscar em protestos e manifestações contra Apartheid, evocando igualdade e liberdade.


Ao mesmo tempo, porém, apesar de expor em breves traços a complexa história interna do Madagáscar, decanta os Sakalava. Uma consideração mais aprofundada da história dos desenvolvimentos internos do país no século XIX e dos complexos caminhos que levaram à instauração do regime colonial traz à consciência não apenas os conflitos internos dos povos da ilha como também as suas relações com os países europeus, em particular com os franceses e os ingleses, estes empenhados no combate ao comércio de escravos.


Apesar das muitas obscuridades, os indícios de envolvimentos com comerciantes árabes e europeus que resgatavam escravos fazem com que se tornem questionáveis quadros históricos artificialmente construidos. Correr-se-ia, aqui, o risco que já se constatou em muitos casos referentes à costa ocidental africana: interpretações que distorcem desenvolvimentos históricos, não contribuindo ao esclarecimento e à reconscientização crítica do próprio passado, em detrimento dos objetivos preconizados.


E viva Pelô, Pelourinho, patrimônio da humanidade
É Pelourinho, Pelourinho
Palco da vida e nas negras verdades
Protestos, manifestações
Faz Olodum contra Apartheid
Juntamente com Madagáscar
Evocando igualdade liberdade a reinar

Ihê ihê ihê, Sakalavas oná ê (várias repetições)
Madagáscar... ilha, ilha do amor (várias repetições)



De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo





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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Os Sakalava no Madagáscar Olodum de Luiz Caldas/Margareth Menezes
discutido em Nosy Be“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 154/19 (2015:02).http://revista.brasil-europa.eu/154/Sakalava_no_Madagascar_Olodum.html


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