Sem fronteiras! Fraternidade Ártica e Brasil

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 157

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 157/10 (2015:5)





„O homem do Acre, por outros caminhos, é igual ao homem da Califórnia“ (Abguar Bastos)

Sem fronteiras! Fraternidade Ártica e Brasil
Transepocalidade do bandeirantismo
e Maçonaria em regiões de
rush



100 anos de nascimento de Manoel Rodrigues Ferreira (1915-2010), presidente da „Ordem Nacional dos Bandeirantes“
e 20 anos de falecimento de Abguar Bastos (1902-1995)


 

O museu da estação do White Pass and Yukon Railway e o Centro de Visitantes do Klondike Gold Rush Historical Park em Skagway no Alasca apresentam documentos históricos de interesse para estudos culturais comparados de regiões que experimentaram o fenômeno do rusch de homens à procura de ouro, riquezas e prosperidade em fins do seculo XIX e início do seculo XX. (Veja)

O rush do ouro de Klondike decorreu à época do boom da borracha no Brasil, também marcado historicamente pela construção de uma ferrovia „do ouro e da morte“, a Madeira-Mamoré. Esta tinha sido concebida originalmente há décadas para o alcance do ouro e outras riquezas da terra na Bolívia, até então apenas atingíveis atraves da difícil subida dos Andes. Pode-se ver, assim, às bases de intentos que levaram ao projeto ferroviário um direcionamento aos altos e um intento de superação dos obstáculos colocados por altas montanhas. Esta perspectiva na história do projeto ferroviário não pode ser esquecida, embora a sua realização posterior dirija a sua atenção ao boom da borracha pela passagem do século. (Veja)

Esse direcionamento ao alto pode ser entendido no seu sentido metafórico, como ímpeto às alturas no sentido de avanço à procura da prosperidade e de sucesso na realização de desejos do homem. Uma síndrome de ascensão ter-se-ia manifestado na corrida à procura de riquezas em duas latitudes.

Esse ímpeto merece ser considerado em análises de razões e fundamentos demopsicológicos, de condicionamentos culturais que possam explicar mais profundamente essa eclosão febril que marcou a história de regiões, identidades e mesmo mentalidades.

Madeira-Mamoré, Rondônia, Acre e a „Ordem Nacional dos Bandeirantes“

Em ano da passagem do centenário de Manoel Rodrigues Ferreira (1915-2010), o historiador da ferrovia Madeira-Mamoré, cumpre lembrar que foi êle também Presidente Executivo da „Ordem Nacional dos Bandeirantes“. Esta instituição, com „Ordem Mater“ em São Paulo, teve como „Cabo Mor da Bandeira“ o historiador Títo Lívio Ferreira (1894-1988). A Ordem foi fundada a 23 de Fevereiro de 1962, no 430° anos da bandeira de Pero Lobo, a primeira das bandeiras, constituída por ordem de Martim Afonso de Souza (1490/1500-1571). (Veja)

Os estudos da ferrovia e de sua época na região amazônica revelam assim não só uma proximidade àqueles das entradas e bandeiras de séculos atrás, como também indicam que a própria pesquisa histórica, nas suas perspectivas, foi impregnada por um espírito de orgulho e glorificação daqueles que, no passado, à procura de ouro e pedras preciosas, transpassaram limites, ampliando o Brasil para além da linha separadora de esferas de influência espanhola e portuguesa, conferindo-lhe as dimensões territoriais que hoje possui.

Transpassagem de linhas divisórias na formação histórica do Acre

AB-Skagway. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
Também a época muito posterior do boom da borracha que levou à realização do velho projeto de implantação da Madeira-Mamoré foi marcada por uma transpassagem de fronteiras por parte de brasileiros, criando fatos que levaram à expansão territorial do Brasil com o surgimento do Estado do Acre.

O significado da linha leste-oeste no passado, o do ouro na integração do território, o do significado da borracha, a „linha verde“ na diplomacia e pioneirismo e o lema condutor „ordem e progresso“ foram  pormenorizadamente considerados na obra clássica de Leandro Tocantins, Formação Histórica do Acre (3 vols., Rio de Janeiro: Conquista, 1961).

Os estudos da ferrovia Madeira-Mamoré na atual Rondônia - e da época do apogeu da borracha na Amazônia em geral - não podem deixar de considerar essa transpassagem de linhas divisórias por homens imbuídos de um ímpeto de procura de avanço material e da consequente expansão territorial com a integração do Acre como definida no Tratado de Petrópolis de 17 de novembro de 1903. (op.cit. III, 626 ss.)

Conceitos de entradas e bandeiras na literatura missionária e nos estudos culturais

Os conceitos „entrada“ e „bandeirantes“ surgem significativamente de forma expressa em reflexões e estudos referentes à Rondônia e ao Acre, também sob a perspectiva missionária.

Vitor Hugo, no seu fundamental livro Desbravadores, de 1959 e que experimentou outras edições (2 vols, 2a. ed. 1991, Rio de Janeiro: Edição do Autor/Banco do Estado da Rondônia-BERON), denomina os primeiros capítulos da história elesiástica no panorama social, político e geográfico do Rio Madeira, seus afluentes e formadores, com os termos „entradas missionárias“ (op.cit.I, 15 ss.) e „Bandeirantes de Cristo“. (op.cit.I, 39 ss.).

Consequentemente, nos trabalhos desenvolvidos na região e no Exterior desde fins da década de 70, questões referentes à história e ao presente de missões e a fenômenos religiosos no presente foram particularmente consideradas, sobretudo no âmbito das atividades do Instituto de Estudos Etnomusicológicos e Hinológicos da organização pontifícia de música sacra. (Veja)

De forma pioneira, Julieta de Andrade tratou do „Santo Dai-Me“ como ponto de partida de debates no Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira, em 1981. („Música e dança na Miração o Santo Dai-Me“, A.A. Bispo et alii, Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Musices Aptatio 1981, Roma: Urbaniana 1981, 299 ss.)

Missões em processos culturais e a Maçonaria no Amazonas

Sobretudo devido à obra de Vitor Hugo, os estudos referentes à religião e à história missionária, desenvolveram-se sobretudo em cooperação com estudiosos e instituições salesianas.

Sendo conduzidos sob a perspectiva de análises de processos de mudanças culturais, deu-se particular atenção ao significado da Maçonaria na história de localidades de regiões que se desenvolveram à época da borracha, uma vez que o seu papel fora salientado por Vitor Hugo.  Para o autor, a Maçonaria „não era um brinquedo de criança para gente grande, definida por Feijó, e sim, (...) um grosso caldo de cultura de idéias liberais, atéias, inimigas da influência religiosa e da ação do clero“ (op.cit. I, 177).

Vitor Hugo interpreta o ambiente propício ao desenvolvimento de idéias liberais devido à Dom Pedro II, relacionando assim a expansão da Maçonaria no Amazonas nas suas tensões com o movimento de restauração católica de fins do século XIX: „Todas aquelas ideologias saiam das metrópoles, perpassavam as florestas, pelo rio Amazonas e pelo Madeira.“ (op.cit. I, 180)

Este autor, tratando do bispo D. Frederico Benício de Souza Costa (1875-1948) menciona a oposição por êle experimentada por parte da Maçonaria: „(...) A Maçonaria sobretudo não ficou inerte. À calúnia e à vil perseguição seguiu o atentado à vida física. (....)“.

Como Vitor Hugo lembra, o próprio bispo refutou as acusações a êle de falta de patriotismo, designando os maçons como hipócritas:

„Hipócritas! Inimigos da Pátria os bispos brasileiros?! Não! Com a fronte erguida para o céu e a mão sobre o peito, protestamos altamente contra tão atroz quanto ignobil injúria! Quando os nossos acusadores houverem suportado as penas e misérias que havemos suportado em benefício da nossa Pátria querida, (...) para levar a luz da civilização aos nossos irmãos perdidos nas nossas florestas, só então lhes daremos o direito de chamar-nos traidores (...)“ (op.cit. I, 238-239).

As acusações de hipocrisia também eram feitas ao Bispo do Amazonas por parte dos maçons relativamente a condutas que não correspondiam às normas morais pregadas. Em declaração datada de Sena Madureira, de 1910, o bispo refuta essas acusações de hipocrisia publicadas em periódicos protestantes do Nordeste e republicadas no Amazonas, especificamente o Norte Evangélico, de Garanhuns, Pernambuco, e o Delta e a Prancha Maçonica. (op.cit I, 240)

Encontro na Secretaria de Estado da Cultura do Acre, Rio Branco, 1993

Em encontros realizados na Secretaria de Estado da Cultura e na Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, em 1993, levantou-se a questão da permanência ou não, de transformações ou recuperações de um ethos cultural assim determinado e que marcaria a memória e identidade cultural acreana de forma que sugeria similaridades àquela do bandeirantismo paulista.

Ao mesmo tempo, considerou-se com particular atenção à situação religiosa, à maçonaria e a fenômenos religiosos do presente, em particular a „União do Vegetal“  (A.A.Bispo, „Zur Situation der Forschung in den einzelnen brasilianischen Bundesstaaten: Acre“, Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens, Musices Aptatio 1994/5 I, Roma 1997, 24 ss.)

Abguar Bastos: „O homem do Acre (...) é igual ao homem da Califórnia“

As citações que abrem a obra clássica de Leandro Tocantins apresentam idéias condutoras que justificam a sua retomada no estudo de condicionamentos culturais de processos de corridas e febres à procura de progresso material em diferentes contextos.

O autor cita em primeiro lugar Euclides da Cunha (1866-1909) (À Margem da História, ed.1909) que, tratando da migração nordestina à região, viu na ida e presença de sertanejos do Nordeste o cumprimento de uma das maiores empresas da época. Com as suas „almas simples, a um tempo ingênuas e heróicas, disciplinadas pelos reveses“, alcançavam triunfo na campanha formidável, dilatando o Brasil.

A essa opinião, Leandro Tocantins ajunta palavras de Abguar Bastos (1902-1995) (A Conquista Acreana, 1960) que, seguindo-se às anteriores, estabelecem explicitamente relações entre desenvolvimentos no Brasil e nos Estados Unidos:

„O homem do Acre, por outros caminhos, é igual ao homem da Califórnia. (...) Acreano e californiano identificam-se melhor quando, no tumulto da terra, transmitem, indelèvelmente, um sinal de humanidade. Ou quando, depois da luta, podem dizer ao mundo: - Eis que demos um destino a esta solidão!“

Necessidade de um posicionamento distanciado na análise de paralelos

Como refletido em ocasiões posteriores, a consideração supra-regional de tais similaridades transepocais e internacionais em diferentes contextos pressupõe um posicionamento distanciado do observador, uma perspectiva dirigida a processos e um esforço de êle próprio libertar-se de condicionamentos culturais.

Somente através desse esforço o estudioso pode tornar-se analista de ímpetos e complexos emocionais e mentais que se manifestam em orgulho de intrepidez, audácia no alcance de interesses, prosperidade e progresso nas suas diferentes expressões contextuais e epocais.

A afirmação de Abguar Bastos, para ser comprovada e compreendida de forma diferenciada, exige esse posicionamento distanciado na análise de um fenômeno que ultrapassa fronteiras de tempo e espaço.

Torna-se oportuno, assim, após 20 anos do seu falecimento, considerar desenvolvimentos e fatos dos anos do rush do ouro de Klondike no Alasca, ocorrido à mesma época daquele transpassador de fronteiras no Brasil.

O AB Hall do Camp N° 1 da „Ordem Secreta da Fraternidade Ártica“ em Skagway

Não distante da estação da White Pass and Yukon de Skagway encontra-se a sede do primeiro „camp“  da ordem secreta da „Arctic Brotherhood“ (AB) do Alasca, principal testemunho de um espírito que impregnou desenvolvimentos aos quais a construção da ferrovia serviu.

Essa construção traz à consciência que não a ferrovia em si, mas os ímpetos, condicionamentos culturais e mentais, concepções e imagens que a precederam e acompanharam deveriam estar no foco das atenções em análises culturais, o que valeria também para o caso brasileiro da Madeira-Mamoré.


Essa sede da AB em Skagway revela-se, neste contexto, como o principal ponto de partida para estudos de processos culturais em paralelos Norte-Sul das Américas, uma vez que abre portas para a compreensão de desenvolvimentos em outras situações do continente e mesmo globais.

O significado dessa construção para a história de Skagway e do Alasca no seu todo é hoje reconhecido, tendo-se há pouco procedido, com muitos esforços, a uma cuidadosa restauração dos elementos construtivos de sua fachada.

A casa foi ocupada após o término da Ordem pelo artista local Vic Sparks. Na década de 50, o fotógrafo Paul Sincic ali instituiu o Trail of 98 Museum, transferido posteriormente para o City Hall. Hoje, a casa abriga o Convention & Visitor‘s Center, procurado por quase 900.000 visitantes por ano.

Trata-se de uma construção que já pelas características de sua fachada surge como de interesse para estudos de arquitetura e linguagem visual, sendo considerado um exemplo único de „arquitetura rústica vitoriana“. É considerado, hoje, como sendo o mais fotografado edifício do Alasca.

A rusticidade que nela é sentida explica-se pelo uso de ripas de madeira e de trançado de galhos nas balustradas e na ornamentação da fachada, o que sugere construções conhecidas de outros contextos pioneiros, de cercas artesanais e cabanas do meio rural e de áreas indígenas.Segundo a interpretação local, o uso de ripas de madeira reflete técnica conhecida de cabanas de estilo apalachiano do Leste, popular na segunda metade do século XIX.

O entrelaçamento de galhos lembra construções de parques e jardins do paisagismo inglês que se espalhou pelo mundo - também no mundo de língua portuguesa como no jardim de Camões em Macau (Veja) ou em parques brasileiros - e que revelam no seu bucolismo concepções relativas ao homem nos seus elos com o mundo natural de remotas origens retomadas no Romantismo.

Essas características estilísticas correspondem à idéia de „camp“ na designação das sedes da ordem em localidades e nas áreas de garimpo e mineração no Alasca. Ela reflete, assim, uma interpretação idealizada, pastoral e campestre da vida nas áreas de exploração das riquezas da terra e das águas no interior do Alasca.

O cunho vitoriano que é registrado na fachada da AB de Skagway explica.-se pela própria arquitetura, pelas portas, janelas, sua distribuição simétrica com elevação central, molduras, batentes, pórticos e telhados conhecidos da Inglaterra, das coloniais britânicas e dos Estados Unidos.


A leitura dessa fachada não pode limitar-se a aspectos superficiais estilísticos, mas a seus sentidos simbólicos que abrem perspectivas para a compreensão de concepções subjacentes da própria instituição. Não só as letras AB emolduras por um trançado de madeira, como também ferramentas de mineiros fixadas na fachada indicam sentidos da „Fraternidade Ártica“.

O trançado de ripas, lembrando tecelagem artesanal, sugere as redes de confraternização, de apoio mútuo entre os operários da obra a que se propunha a obra. Essa ornamentação da fachada - que não tem significado construtivo - representa não só um „emprêgo de folclore“, mas sim uma leitura de sentidos e uma compreensão metafórica da técnica de tecelagem artesanal.

A fachada foi configurada em 1900, um ano após a construção da sede da ordem, em 1899, como registrado acima de sua porta principal. Essa data testemunha a intensidade com que desde os seus inícios o rusch do ouro de Klondike foi acompanhado por preocupações sociais, culturais e mesmo filosóficas. A fachada é atribuída a Charles Walker, que também atuou em outras construções de Skagway, entre elas o Pantheon Saloon.

Origens e fundamentos na esfera marítima, na vida e cultura de navegantes

A historia da fraternidade relaciona-se estreitamente com a vida e a cultura naval de marinheiros - o Alasca esteve por décadas sob a égide da US Navy - e de migrantes que, audaciosamente, vieram por mar à procura de ouro e decididos a enfrentar todos os obstáculos na consecução de seus sonhos de riqueza e prosperidade.

A história da Fraternidade é relatada como tendo-se iniciado na viagem do vapor „City of Seattle“, que chegou a Skagway em 1899 trazendo centenas de homens de diferentes nações atraídos pela notícia da descoberta de ouro.

O seu mentor teria sido o Capitão William Connell que, em reuniões de convívio cordial e alegre à mesa, acompanhadas de bebidas, o que lhe garantia a simpatia de tripulantes e passageiros, propusera a criação de uma sociedade fraternal do Norte, aberta a homens de todas as partes do mundo. Essa idéia foi aceita com entusiasmo, criando-se a fraternidade com 11 membros.

Essa proposta de William Connell, apresentada como espontâneamente gerada, pressupõe concepções e ideais já existentes, pois só assim explicam-se os objetivos e as características simbólicas da ordem secreta. O entusiasmo de seus membros levou à procura imediata de uma sede própria, possibilitada por contribuições de maior monta como aquela do Cap. Earwin W. Johnston.

A ordem experimentou em poucos anos um extraordinárío aumento de irmãos entre aqueles que iam para o Norte e tinham de enfrentar a subida de montanhas para atingir os passos de Chilkoot. Ela não englobava apenas garimpeiros, mas também pessoas de influência da política e dos negócios, banqueiros, advogados e profissionais liberais.

O objetivo era o de encorajar e promover o intercurso social e intelectual e a benevolência entre os seus membros, assim como para auxiliar a realização dos interesses e daqueles da seção noroeste da América do Norte. À ordem podiam pertencer maiores de 18 anos e brancos.

Também com surpreendente rapidez criou-se uma rêde de camps da Fraternidade em povoados, cidades e áreas de garimpo. Entretanto, com o fim do rush e a diminuição do significado econômico do ouro, o número de irmãos diminuiu.

Importante é constatar os elos entre o cultivo da alegria, da jovialidade de homens do mar e daqueles homens decididos à procura do ouro, uma vez que esse estado de espírito teria marcado a vida social e cultural dos camps.

Dimensões políticas - Liberalismo econômico, Republicanismo e Progressivismo

A liberalidade dos encontros e a atmosfera marcada por alegria e culto à liberdade pessoal em apoio mútuo devem ser consideradas nas suas dimensões políticas. A liberalidade jovial dos encontros correspondiam ao liberalismo econômico da época do rush do ouro e da política partidária dos Estados Unidos.

Significativamente, já em 1900 nomeou-se a membro honorário o Presidente William McKinley (1843-1901), vulto do Partido Republicano e representante do progressismo do século XIX. A presença de personalidades dos partidos Republicano e Progressivo manteve-se nas décadas seguintes, contando-se entre êles Theodore Roosevelt (1858-1919). Um dos últimos políticos que foram admitidos na ordem foi, em 1923, o Presidente Warren G. Hardin (1865-1923).

Transpassagem de fronteiras - No boundaries line here!

Os materiais expostos na sede do primeiro camp da Fraternidade Ártica em Skagway permitem o reconhecimento de um dos mais importantes aspectos políticos da ordem secreta, aquele relacionado com os limites entre as esferas territoriais dos Estados Unidos e do Canadá britânico.

Encontrando-se as regiões auríferas em situações limítrofes, a transpassagem dessas linhas divisórias era vista como necessária e defendida, dando ensejo a interpretações de sentidos mais amplos sob o signo da confraternização americano-britânica.

Significativamente, um diploma de associação vitalícia expedido em Dawson traz ao alto os dizeres „No boundaries line here“ e, como emblema, as bandeiras entrelaçadas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.

Dessa forma, o motivo do trançado da fachada assume uma conotação política e de não-consideração de limites divisórios por parte de homens que defendiam a sua liberdade na procura de ouro e realização de seus interesses.

Compreende-se, assim, que juntamente com o Presidente William McKinley também o rei Eduardo VII (1841-1910) foi nomeado a membro honorário da ordem secreta em Skagway, em 1900. Quando príncipe, Eduardo VII foi o primeiro membro da família real britânica que visitou o Canadá e os Estados Unidos. Era conhecido pela sua jovialidade e alegria de viver, pelos seus contatos com meios de artistas e de divertimentos, o que vinha de encontro à alegria e à jovialidade dos trabalhadores à procura de ouro do Alasca.

A Ordem Secreta da Fraternidade Ártica e a Maçonaria

O rei Eduardo VII (1841-1910 não foi só o primeiro príncipe britânico que visitou os Estados Unidos e o Canadá, mas também um dos maiores representantes da Maçonaria e um dos principais fatores da sua popularidade em fins do século XIX e início do XX. 

As referências que se conhecem a respeito de ritos e discursos proferidos em camps do Alasca revelam similaridades com a Maçonaria e mesmo o cunho maçônico da ordem secreta da Fraternidade Ártica.

Como demonstrado em fotografia exposta no AB Hall de Skagway, os irmãos trajavam hábitos brancos com capuzes, havendo outros de outras cores, de acordo com o grau e a função exercida. Reunidos à frente do estandarte, o próprio recinto em que se realizavam os ritos sugeria um templo.

Ainda que os seus objetivos imediatos fossem de apoio mútuo em caso de dificuldades, de doenças e de enterro de irmãos falecidos, de possibilitar melhores condições de vida e assistência nos campos de mineração, além de fomentar a sociabilidade e a alegria através almoços, encontros, bailes e apresentações musicais, as concepções que fundamentavam a ordem secreta justificaram o seu combate por religiosos. Estes, por sua vez, eram considerados como hipócritas.

Os textos conhecidos de cerimônias de iniciação revelam concepções de cunho maçônico, invocando-se de início Jehová como Criador e governador do universo, supremo diretor dos destinos da Fraternidade Ártica. Orava-se por proteção e por interpridez e coragem para que os garimpeiros e mineiros pudessem transpor todos os obstáculos e dificulades a caminho das alturas montanhosas dos campos auríferos do Norte.

Nessas orações ou invocações, utilizavam-se de imagens e emblemas americanos, britânicos e árticos..

Pedia-se ao Supremo Criador que os garimpeiros tivessem olhos tão claros e penetrantes como o da águia americana para que pudessem descobrir ouro. Pedia-se também fortaleza e o poder do leão britânico para que aquele que achasse tesouros pudesse guardá-los e mantê-los em segurança para o seu benefício pessoal. Pedia-se que o garimpeiro tivesse a força e persistência do urso polar.

Os membros da Fraternidade eram visto como apóstolos da América e da era contemporânea, na qual, diferentemente da época de Jesus, todos começavam com mais condições para alcançar prosperidade e felicidade, com maiores oportunidades do que no passado bíblico.

Eram, nessa „teologia da prosperidade“, apóstolos que proclamavam a boa nova do ficar rico, a alegria do agir em liberdade na consecução de seus interesses e na realização de seus sonhos, o direito quase que divino de procurar sucesso material, ao mesmo tempo, porém, a modéstia em atitudes e a união fraternal com aqueles que também procuravam achar ouro.

Como apóstolos da sua era e o continente, eram enviados, águias no achamento do ouro, leões na sua defesa. Eram, antes de mais nada, missionários de um americanismo fundamentado no culto à liberdade pessoal do alcance de sucesso em entusiasmo e alegria.

Papel social e cultural dos ritos e das festividades da Fraternidade Ártica

As festividades por ocasião de iniciações e trabalhos dos camps representavam principais momentos da vida social e cultural das áreas e localidades de garimpagem e mineração.

Assim, notícias de Dawson, de 1901, documentam almoços e jantares fartos e elegantes, com recitações, leituras de histórias, cantos e danças. Ali já existia uma orquestra, explicitamente denominada de orquestra da Fraternidade do Ártico, considerada como sendo a melhor da localidade.

Essa orquestra da AB de Dawson executava durante as festas marchas que contribuiam ao entusiasmo reinante nessas ocasiões. Ao som dessas marchas os garimpeiros membros da Fraternidade levantavam-se e marchavam em círculo pela sala trajando as vestimentas brancas da ordem, seguindo-se canto de odes, invocações e um baile acompanhado pela orquestra.

Linguagem simbólica e edifício de visões do mundo e do homem

Assim como referências à águia americana e ao leão inglês, a comparação do garimpeiro ou mineiro com o urso polar adquire dimensões de sentidos que ultrapassam simples comparações com animais da região. A menção ao urso polar deve ser vista no contexto global da linguagem das constelações de antigas origens e nas suas múltiplas correspondências e relações com os pontos cardeais e regiões do mundo.

Referências à dedicação de um Hall da ordem demonstram esses elos da linguagem simbólica. O „Grande Guia do Norte“ trazia na cerimônia uma vasilha para ouro de garimpeiro com neve, simbolizando a pureza, o „Guia do Sul“ portava flores, simbolizando a vida e a terra do sol, o „Guia do Oriente“ era recebido com uma peça de quartzo significando integridade e a ilimitada prosperidade do extremo Norte, assim como os sólidos fundamentos da Fraternidade Ártica.

O patrimônio mítico da Antiguidade era citado em alocuções, quando o garimpeiros e os mineiros eram comparados com os argonautas, sendo glorificados como sendo argonautas de todas as nações progressistas. A entrada no campo de mineração do Norte era designada como emblemática da vida da classe de homens intrépidos que penetravam audiciosamente em novos terrenos. Era, assim, generalizada e abstraída, podendo cada homem intrépido, no seu campo de ação, ser um garimpeiro ou um argonauta do progressismo.

Acentuava-se a nobreza do trabalho árduo, se conduzido com inteligência, paciência, perseverança, método, ingenuidade e energia. Nessa „teologia“, filosofia ou ideologia, salientava-se que os fatos eram mais importantes do que as palavras, e a ação mais importante do que a escrita. O objetivo dos membros era fazer o que deveria ser escrito e escrever com os seus atos o que valia a pena ser lido. O mais importante dos argonautas era o fazer, a ação, e tanto a atmosfera como a terra representavam o laboratório do homem.

A Fraternidade Ártica não preconizava assim o primado da idéia, não era idealista, mas pragmática, a da glorificação do ato positivo, correspondendo assim à política republicana, econômico-liberal e progressivista dos políticos que tinha como honorários.

Relações com a linguagem simbólica da tradição luso e brasileira

A referência à viagem dos argonautas e do velo de ouro do mito na interpretação da vida dos garimpeiros e mineiros no Norte revela similaridades com a tradição da viagem de Ulisses ao Ocidente, o fundador de Lisboa. Como analisado nas últimas décadas em estudos euro-brasileiros e discutido em seminários e congressos, a linguagem simbólica expressa em Ulisses  atravessou os séculos na sua reinterpretação cristã, mantendo-se viva em tradições brasileiras. (Veja)

O principal complexo de sentidos reside aqui na simbologia da barca, do alcance do bom porto, do mastro onde Ulisses se amarra para resistir às sereias. Mantendo-se nos seus fundamentos em folguedos como da barca, marujadas, Nau Catarineta e outras formas tradicionais de encenação representadas em festas do calendário católico, o mito de Ulisses demonstra ser potencialmente apto tipologicamente a reinterpretações segundo a tradição bíblica e eclesial.

Neste sentido, a viagem dos argonautas citada no contexto da Fraternidade ártica à luz de uma „teologia“ do enriquecimento, prosperidade e progressividade, apresenta não só similaridades como também diferenças significativas, que merecem ser consideradas em estudos mais aprofundados.

Theodore Roosevelt (1858-1919) e o maçom Lauro Müller (1863-1926)

A personalidade mais destacada que estabelece pontes entre a Fraternidade Ártica e o Brasil é o presidente Theodore Roosevelt. Político do Partido Republicano e a seguir do Partido do Progressivismo, membro honorário da ordem secreta ártica e um dos principais representantes do „Americanismo“, entrou na história das relações entre os EUA e o Brasil com a viagem que realizou pelo país.(Veja)

A Expedição Científica Roosevelt-Rondon, assim oficialmente denominada pelo governo brasileiro, foi concebida como de reconhecimento zoogeográfico do hinterland brasileiro com a intenção de realizar estudos para o Museu Americano de História Natural, de Nova York. Esse objetivo foi ampliado, aquirindo um caráter geográfico por sugestão de Lauro Müller (1863-1926), grande nome da Loja Maçônica Grande Oriente do Brasil,  iniciado em 1888, então Ministro das Relações Exteriores do Brasil. A Expedição, assim ampliada nos seus objetivos, foi auxiliada pelo governo brasileiro.

Um dos auxiliares da expedição, responavel pela sua organização, Antonio Fiala, tinha sido durante anos explorador ártico. (Theodore Roosevelt, Através do Sertão do Brasil, trad. Conrao Erichsen, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1944, 18)

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ Sem fronteiras! Fraternidade Ártica e Brasil. Transepocalidade do bandeirantismo
e Maçonaria em regiões de rush.“ 
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 157/10 (2015:05). http://revista.brasil-europa.eu/157/Fraternidade_Artica_e_Maconaria.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Skagway. Fotos A.A.Bispo 2015. Arquivo A.B.E.