Que loucura! A liberdade do espírito

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/18 (2015:6)





Que loucura!
A liberdade da criação de imagens no interior do homem
nas suas relações conflitantes com a vida de gana


 

A „loucura“ do carnaval, dos arroubos de alegria, do entusiasmo os estádios e de modos de vida, comportamento e expressões que surgem como surpreendentes e fascinantes para observadores externos, exige ser considerada com especial atenção nos estudos culturais. Ela marca a imagem do Brasil. Vários viajantes registraram em todas as épocas as suas impressões da vivência da realidade para êles inusitadas e de situações difíceis de serem compreendidas segundo uma lógica racional.

Qual é outro país que representa de tal forma lúdica e alegre através de escolas de samba com os seus enrêdos encenados ou, mais recentemente, através de grupos de maracatú de brasileiros residentes no Exterior?

As nações, em geral, procuram oferecer sobretudo uma imagem de seriedade e assim de uma confiabilidade que contribuam a relações econômicas e políticas, vindo de encontro a anelos de alcance de posições de influência no cenário internacional.

Esses esforços também são feitos no caso do Brasil, mas predomina a imagem do país-samba, e os mais sérios eventos de encontros e contatos apresentam sempre momentos cheios de humor alegre, ao menos em programas culturais paralelos. Não se surpreende, assim, que o Brasil já tenha sido chamado de país não-sério e, assim, não digno de ser levado a sério.

Trazer à consciência que esse julgamento é errôneo e que justamente nessa „loucura“ reside altos valores culturais e uma profunda seriedade, até mesmo modelar, vem sendo um dos objetivos dos estudos euro-brasileiros desde o início do programa respectivo na Alemanha, em 1974/75.

Foi tematizado em eventos internacionais, seja no simpósio internacional realizado em São Paulo, em 1981, no primeiro forum dedicado a questões de imagem do Brasil, em 1982,  ou no congresso internacional de abertura do triênio e eventos científico-culturais pelos 500 anos do Brasil, em 1999. Continuamente foi discutido em seminários e colóquios, uma vez que é impossível realizar estudos culturais referentes ao Brasil sem considerar a riqueza de seu patrimônio de festejos, danças, encenações e cortejos. E é justamente a análise de expressões festivas ainda vivas no Brasil mas já há muito desaparecidas na Europa que revela o significado global dos estudos referentes ao Brasil.

Como salientado na inauguração do Centro de Estudos da A.B.E. em sessão promovida pela Embaixada do Brasil na Alemanha, em 1997, a perda de uma praxis filosófica que é inerente a essas expressões e a modos de sentir, pensar e agir representaria uma perda para o homem.

Essa praxis filosófica, de inestimável valor, encontra-se porém ameaçada no próprio Brasil devido ao alastramento de movimentos religiosos e igrejas baseadas na leitura literal das Escrituras. Em jogo encontra-se um patrimônio milenar de praxis filosófica e de Conhecimento transmitido através  da vivência da linguagem visual de tradições. Um verdadeiro processo esclarecedor exige a análise dessa imagologia e da filosofia a ela intrínseca.

O palhaço ou Mateus em folguedos tradicionais do Brasil

No estudo dos autos, danças com encenações e cortejos no Brasil, já em meados dos anos 60 do século XX discutiu-se a figura do palhaço ou Mateus em folguedos no contexto das preocupações pela renovação dos estudos de folclore e culturais em geral no Brasil.

Para além de registros descritivos, perguntava-se a razão pela qual surgia um palhaço como comentador ou acompanhante de grupos de Reis e práticas lúdicas em geral relacionadas com festas religiosas.

A primeira aproximação era a de que esse personagem indicava ou acentuava um cunho cômico ou de comédia aos folguedos, ainda que textos ou encenações não o sugerissem explicitamente. A atenção dirigida a processos levou à consideração da difusão dessa prática no contexto da história colonia e da expansão cristã, uma vez que esses personagens também se encontram em outros países da América Latina e, no passado, na Europa.

Uma visão mais profunda de processos, no caso daqueles que se passam no interior do homem, foi possibilitada pelo fato da questão do trágico-cômico da existência ser tematizada em correntes de pensamento marcadas pela recepção da obra do conde Herman Keyserling (1880-1946), em particular em círculos de língua alemã de São Paulo, ou pela convergência de correntes de pensamento de outros círculos de imigrados com aquelas da „Escola da Sabedoria“ de Keyserling. (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932,  335 ss.).

Que bôbo! Que palhaço! O espiritual é loucura para o homem-terra ou filisteu

A última das meditações sulamericanas de Hermann Keyserling, de título Divina Comédia, parte do fato de que nada mais surpreende um intelectual da Europa ocidental e central do que constatar a frequência com que intelectuais são chamados de loucos no mundo ibérico. (op.cit. 335 ss.)

Repetidamente ouve-se dizer que um homem é inteligente mas que é louco ou aloucado, como se estivesse bêbado ou embriagado de álcool - spiritus. Essas afirmações são feitas de forma amigável, não ofensivas como se devia esperar. A designação de louco é feita como gracejo, com certa ironia, mas com boa índole e compreensão.

Essas expressões, segundo Keyserling, equivalem à designação de „bobagens“ por parte de mulheres quando se veem confrontadas com problemas de homens que lhes surgem como supérfluos por neles não verem correspondência na realidade.

Quando, porém, o observador externo se ocupa mais profundamente com esse frequente uso de expressões de loucura, toma consciência de que aqui se depara com a vigência de antigas concepções.

Keyserling lembra que em muitos povos a loucura é vista como santa e o ser „tomado“ como sinal de superioridade sobre a natureza, apenas podendo ser curados com desencantamentos. Já entre os antigos gregos eram transpassáveis os limites entre genialidade e loucura.

A diferença entre os loucos do antigo entusiamo e o uso do termo no mundo ibérico reside no fato, segundo Keyserling, de que aqui esse julgamento acontece a partir da perspectiva da terra. Isso explicaria a questão de figuras como Don Quixote, das quais não se sabe bem se são de loucos, alucinados ou sábios.

Ainda que possa parecer estranho à primeira vista, esse uso de conceitos de loucura ou de bobices e bobagens no mundo ibérico permite de forma excepcional considerar mais profundamente as relações uma determinação segundo o espírito ou segundo a natureza.

O homem espiritual é, sob a perspectiva da terra, como transloucado. O conceito alemão correspondente utilizado por Keyserling indica de forma mais imediata relações entre o louco e o des-locado (verrückt - ver-rückt). Aquele que utiliza a sua existência natural apenas como medium para a realização de um sentido intendido, então a existência significa para êle pouco mais do que a língua para um poeta.

Declarar como trans-loucado aquele que vive do espírito é compreensível, pois o espiritual não é aquele que - na linguagem de Keyserling - um filisteu considera como normal. Êle é doente, ainda que de forma suave, ou pelo menos labilmente fora-da-norma ou desequilibrado.

Essas argumentações servem a Keyserling para considerar que entre o corpo e o espírito não existe uma harmonia original, mas sim uma situação original de tensão. A expressão mens sana in corpore sano apenas valeria para aquela relação na qual o espírito não teria o predomínio absoluto.

A natureza e o espírito encontram-se em estado de tensão, e a produtividade depende do grau de tensão supra-normal. Quando não há alta tensão, cria-se a experiência interna e externa que perturba o equilíbrio e desencadeia produtividade: assim, na puberdade, quase todos tornam-se poetas e muitos intelectuais vivenciaram uma intensificação da força produtiva após uma infecção. A diminuição da tensão interna levaria a uma neutralização das energias espirituais.

O modêlo musical na explanação de Keyserling

Para Keyserling, seria impreciso querer tirar dessa constatação a conclusão de que o espírito seria um produto da tensão física. É impossível fazer derivar a realidade espiritual diretamente da corpórea, assim como o conteúdo de pensamento das características da língua na qual se exprimem.

A principal imagem aqui é a das relações entre a melodia e as cordas tensas. Sem a tensão das cordas, um violinista não pode tocar. Nenhuma música, porém, deriva das cordas, ela é invenção do espírito musical. A necessidade da tensão, que de quando em quando pode levar a que cordas se rompam, demonstra que não há congruência entre as normas da realização ótima do espírito e a existência ótima das cordas.

Processos internos do homem e evolução espiritual e humanizadora

As reflexões de Keyserling são tão fundamentais para o estudo de processos culturais pelo fato de trazerem à consciência que processos e processualidades não dizem respeito apenas àqueles históricos, sociais ou de desenvolvimento econômicos e progressos, de difusão cultural e transformações por encontros e interações no âmbito de mobilidades e dinâmica populacional, de colonizações e imigrações . A corrente de pensamento na qual se insere Keyserling dirige a atenção ao processos interiores ao homem e a processos referentes ao espírito, de espiritualização e humanização, sendo este desenvolvimento inteerno que é considerado como verdadeiro progresso.

Fundamental para a compreensão desse pensamento é considerar que o processo que traz desenvolvimento espiritual e progresso humanizador não é visto como exclusivamente intelectual, racional, de desenvolvimento científico-natural ou tecnológico, mas sim compreendido na dinâmica de suas interações com emoções e com o corpo e a vida.

Essa dinâmica entre processos do espírito e aqueles do corpo, porém, caracteriza-se por diferenças de princípios e normas que criam uma tensão e mesmo conflitos.

Grande foi o empenho de Keyserling para trazer à consciência e elucidar essa tensão existente no próprio homem e a necessidade de com ela contar para colocar-se a caminho de um desenvolvimento espiritual.

Esse conflito entre a normatividade do espírito e a do corpo ou da norma vital, vigora em todos os níveis.

Já o rítmo do desenrolar da vida do espírito não coincide com aquela do físico. No primeiro caso, o ponto alto da vida não é a juventude, mas a idade avançada. No segundo é a juventude o ponto alto. Poder-se-ia dizer que o espírito torna-se cada vez mais jovem quanto mais o homem avança em anos no seu caminho em direção à morte.

Nessa divergência, não existe harmonia entre as duas leis de crescimento.

Keyserling procura explicar a razão pela qual se desconhece tal tensão, supondo-se que ambos os processos tenham o mesmo direcionamento. O desenvolvimento do intelecto, da razão, da mente ou do espírito no homem pressupõe concentração e disciplinação das energias. Assim como os músculos crescem com exercícios, pensa-se que ambos os processos pertencem à mesma ordem, o que não é o caso.

Concentração e disciplina com o objetivo de intensificação da esfera intelectual, racional, mental ou espiritual acima do máximo das condições de animal do homo sapiens decorre à custa do terreno, uma vez que a ordem do espírito não pertence à ordem corpórea.

Keyserling lembra como exemplo a decadência e a extinção de estirpes por demais intelectualizadas, assim como o fato de religiosos que praticam a castidade não procriarem. A ascese monástica, ou seja a configuração própria a partir da renúncia àquilo que é próprio à terra, seria a forma original da vida a partir do espírito.

Condição para o processo humanizador: controle da esfera da gana e paradoxos

Em todo caso, o processo de espiritualização pressupõe a superação e o controle da esfera da vida primordial que Keyserling designa como gana.(Veja)

A característica principal da gana é a languidez - a superação da preguiça é assim o primeiro mandato que o espírito coloca.

Nessa superação da preguiça, porém, surge uma situação paradoxal. Também a esfera mais inferior da vida leva a que o homem trabalhe para ganhar a sua alimentação, o seu pão de cada dia, a nutrição necessária para a vida do corpo ou terrena. O homem é levado pela própria norma vital a vencer a preguiça.

Considerando essa paradoxia com o aperfeiçoamento do espírito que se orienta segundo ideais abstratos, não-práticos e segundo valores absolutos, compreende-se que as normas do espírito não correspondem às da terra a partir de suas origens.  É justamente pelo fato de não ter por suas características vínculos com as normas da gana, ou seja, pensando por pensar, não por necessidade de manutenção da existência vital, é que êle é livre, não podendo assim ser preso como a gana quer prender.

Apesar de todas as transformações e mudanças no decorrer do percurso de vida, a esfera da gana permanece fundamentalmente a mesma, ou seja as suas normas são absolutamente confiáveis. Este não é o caso da esfera das idéias, do intelecto, que é livre. Idéias, imagens, espíritos vão e vem, desaparecem e surgem de novo, mudam-se de forma aparentemente arbitrária, aparecendo ou despedindo-se quando e como querem.

O despertar da consciência e o início de processos conflitantes

Como característico do procedimento de Keyserling, este parte da narrativa bíblica da Criação para elucidar processos interiores ao homem, psicológicos e demopsicológicos.

Nesse procedimento, o filósofo parte do terceiro dia da Criação, que é aquele no qual surge a vida na vegetação que cobre a terra que surge como o sêco das águas, uma situação que corresponderia àquela que Keyserling teria vivenciado na América do Sul. (Veja)

Esse surgimento da vida e as decorrências na natureza teem como pressuposto criações e processos ocorridos nos dias anteriores. Ponto de partida é o primeiro dia, aquele no qual se relata que, com a palavra de Deus, fez-se a luz.

Essa narrativa, se interpretada como fato vivenciado por aquilo no qual surgiu a luz, permite uma relação com o surgimento da luz da consciência no interior do homem. Com a entrada do agente espiritual que cria luz, termina tudo o que até então era óbvio sob a perspectiva da esfera da gana. Nas palavras do filósofo, iniciar-se-ia aqui um desenvolvimento que contraria as normas da gana, o seu „conservativismo“, e que, sob a sua perspectiva, surge como inquientante e mesmo como um horror.

Para esses problemas, não há solução, enquanto o corpo ou o espírito viverem.

Sob a perspectiva da gana, o voltar-se à esfera espiritual por parte do indivíduo significa insegurança, ou seja, um voltar-se para aquilo que ela de início sempre se opôs e se opõe. Essa insegurança alcança o seu ponto máximo quando essa esfera do ano passa a indagar do sentido de todas as coisas.

O sem sentido e o contra o sentido de diferentes perspectivas

Ao entrar o espírito nas trevas e ao surgir a luz da consciência, aquela que foi adentrada pergunta o que se teria passado e o que estaria acontecendo. Ela não mais entende o sentido do que ocorre; do ponto de vista do agente espiritual, toda a realidade não-espiritual do intelecto, da razão ou da mente surge como não-inteligente, irracional, sem sentido e mesmo em oposição a sentidos.

No decorrer da vida, o homem passa por diversas fases, tendo cada uma delas sentidos próprios que, na linguagem metafórica de Keyserling, podem ser vistos como melodias de vida. Se a esfera mental, de idéias, imagens e pensamentos for determinante, então termina, para a vida de gana tudo o que é permanente, tudo o que pensa que seria para sempre.

Na perspectiva da gana, as fases vitais seriam como que melodias fixa, em si fechadas, com sentidos próprios e que se sucedem. O espírito porém muda; os fatos podem ser vistos em diferentes sentidos, de modo que os mesmos fatos podem ter diferentes significados. Se os fatos não forem como o espírito quer, então devem passar a sê-lo. Disso surgem realidades às quais a esfera vital da gana precisa adaptar-se, nunca porém bem sabendo onde é que se encontra.

Como Keyserling salienta, o mais „escandaloso“ nessa situação é que o espírito apenas pode existir e atuar quando conhecido, reconhecido e recebido. Se não o for, sai, o que confunde ainda mais a esfera vital ou vida primordial de gana.

A esfera vital é temporal, vivenciada pelo indivíduo do nascimento à morte, enquanto que na esfera espiritual do pensamento, das idéias, trata de realidades que podem ser a-temporais, eternas, de valores absolutos. O vínculo ao tempo e a exclusividade da esfera vital de gana contradizem as exigências do espírito. O surgir e o morrer de sentimentos de uma ordem emocional - da alma - contraria preceitos de lógica, de projetos e previsões feitas na esfera do espírito. Surgem, dessa perspectiva, como realidades sem sentido, injustas e como expressões de falta de senso de valores por uma mente determinada por princípios espirituais, em particular éticos. O decair físico do corpo contradiz valores estéticos do espírito relativos à beleza e ao belo.

Assim, com diferentes normas e desenvolvimentos, o espírito e a terra se compreendem mal, estão em conflito.

Essas reflexões de Keyserlibg contribuem para elucidar fundamentos de representações de combates na mitologia, na tradição religiosa e em expressões culturais lúdicas.

O transloucado em visões recíprocas do espiritual e do terreno

Como o espiritual e o terreno se vêem reciprocamente como sem sentido ou mesmo contrários a sentidos,  os indivíduos por êles determinados reciprocamente como loucos, aloucados ou transloucados.

A orientação da pessoa segundo as normas de um dos polos faz com que se torne cego para as normas do outro.

Se para uma pessoa o sucesso material e assim o pragmatismo e a utilidade para alcançá-lo são os principais objetivos, então todos os anelos que não são dirigidos a esse fim e que podem até mesmo levar à renúncia e à superação desses desejos e bens surgem como loucos, malucos.

Se para um pessoa a determinação segundo a esfera espiritual é mais acentuaa, então esta se torna cega perante o modo de proceder e as intenções da esfera vital primordial de gana ou da terra.

Se Don Quixote pode ser visto como prototipo de um indivíduo do qual não se sabe se é herói, gênio ou alucinado, não se pode esquecer que os grandes configuradores da história foram monomanos e quase que alucinados ao viveram de todo idéias e projetos. Ou foram totalmente sem inteligência, idiotas, ou venceram como loucos com coragem heróica, acima de todas as dificuldades.

A determinação unilateral segundo a esfera do pensamento, das idéias, do intelecto, das abstrações, de imagens e projetos não é necessariamente positiva, muito pelo contrário, pode levar a desenvolvimentos negativos relativos à vida e à terra. Visões do mundo, Idealismos e ideologias trouxeram e trazem problemas e foram e são causas de atrocidades e tragédias para a humanidade.

A luta no interior do homem: pneuma e vida psíquica

Keyserling procura expor da forma mais clara quanto possível a natureza contrária das normas do espírito e a terra. Citando os Evangelhos, lembra que Jesus Cristo anunciou que não trazia a paz, mas a espada.

Esse fato valeria para Keyserling em geral para a entrada do espírito na esfera da vida primordial de gana, não só no sentido do início da Criação segundo o relato da Genesis, como também no interior do homem ao despertar da luz da consciência.

O homem, nele entrando o espírito que faz nascer a luz da consciência, não é unido dentro de si próprio. Esse conflito intensifica-se com o crescer do espírito, tornando-se o homem cada vez mais certo de que a sua última realidade não se encontra na existência terrena, mas sim no mundo do espírito, acima de toda a compreensão por parte da vida na terra. Na sua alma soa cada vez mais forte a máxima do „vir-a-ser o que se é“.

O desenvolvimento que leva à realização pessoal, dos talentos e da personalidade assume dimensões e características que determinam o tom básico de uma vida humana determinada pela esfera do espírito. Keyserling lembra da oração como estabelecimento de relação com o espírito, que primeiramente, a partir das condições da via terrena, é vivenciado como sendo pertencente a uma esfera fora de si.

Quando, porém, o homem passa a compreender que o espírito se encontra dentro de si, no mais profundo eu, então o sentido de um orar seria outro, não só de pensamento, de palavras, mas sim o de que o que não surge como real se torne real, a escuridão dê lugar à luz, a doença à saúde, a morte à eternidade.

Quando o homem experimenta a entrada do espírito, é ofuscado pela sua luz, tornando-se cego para a vida terrena de gana, dele fundamentalmente distinta. Como não conhece a temporalidade e o cunho fechado das melodias de uma vida terrena, não aceita ligações impostas pela terra e passa a exigir a vida eterna.

Nessa situação, o homem é infeliz, sentindo-se preso num espaço de trevas, num inferno, num girar do qual não pode sair. O homem se desespera nos laços da gana, do destino cego, sentindo que essas cadeias não o prendem para sempre. Procura libertar-se, sair da escravidão.

A situação muda-se quando encontra o caminho que o leva à luz. Esta chegando, o girar em círculo se transforma numa espiral ascendente. Este seria o objetivo último de um anelo religioso: o vínculo último com a luz após a superação de todas as cadeias das trevas. Este seria o verdadeiro progresso espiritual, um progresso de esclarecimento. No sistema ou na máquina do mundo, o espírito é livre e procura a liberdade.

Enquanto o espírito não for conhecido pelo homem, age de forma despercebida dentro de si como uma peça em grande máquina. A vida pessoal é destino e não é determinada pela sua liberdade de decidir.

À medida que compreende o funcionamento desse aparelho, então toma notícia de uma espécie de maquinário que tem dentro si e que possibilita caminhos abertos a cada momento, e que a iniciativa pode superar rotas estabelecidas.

Os fatos da realidade terrena não são mais últimas instâncias, mas meios de expressão, ainda que primeiramente avessos aos intentos do espírito.

Assim, segundo Keyserling, a primeira tendência da humanidade que se torna consciente de sua determinação espiritual é a de estabelecer mandamentos que contrariam as normas do terreno. O homem deve ser então diferente do que é, obedecendo a normas. Como não pode mudar a realidade como deseja, então o homem usa de máscaras e mascaramentos, apresentando-se como aquilo que não é, o que vale também para a vida dupla, a vida segundo falsas imagens de si e a hipocrisia.

O caminho ao espírito acompanhado paradoxalmente por verdade e mentira

O homem imagina o mundo exterior como sendo diferente do que é. Disso resulta que juntamente com o anelo à verdade haja mentira, e que essa surja como expressão de uma co-participação no espírito.

Desse fato explicar-se-ia que o homem tenha começado a fazer poesia antes de observar, assim como o primado do mito.

Como aprendeu apenas gradualmente a observar, permaneceu no homem o anelo da imagem do mundo criada por êle próprio e que não eram mais do que uma hipótese.

O homem não pretendeu de início conhecer as coisas como são, mas sim procurou lutar pela sua própria visão do mundo para salvar o seu sentido subjetivo num universo que lhe pareceu ser sem sentido.

Que o caminho ao espírito é acompanhado paradoxalmente pelo anelo à verdade e pela mentira  seria assim uma consequência da dupla natureza do homem, das suas raízes em dois reinos, o terreno e o não-terreno. Primeiramente, a vida tomou conhecimento do destino e não da vontade. A primeira possibilidade de despontar uma fraca iniciativa de libertar-se do destino residiu no despistar. Daí a mentira original.

O espírito surgindo como ator e a teatralização como co-determinação do espírito

Desse desenvolvimento do pensamento, Keyserling conclui que o espírito surgiu e surge no terreno como se fosse um ator. Aqui residiria o impulso do homem em mascarar-se e mascarar a verdade, o que pode ser constatado em vários povos, também, segundo o filósofo, entre indígenas.

Assim, Keyserling afirma que sria possível generalizar afirmando que no início houve não a veracidade, mas a mentira. Esse fenômeno diz respeito não só ao homem, mas a outros seres viventes, uma vez que o espírito atua, de uma forma ou outra, mesmo nos níveis mais primários da vida. 

No seu estado mais inferior, no da mentira, trata-se de uma imaginação ainda inconsciente, pois o homem compreende-se aqui como outra coisa do que é de natureza. Dai resulta, na generalização do filósofo, que a primeira manifestação da co-determinação do espírito é a teatralização.

A compenetração relativa à existência do espírito dentro do homem, no seu mais profundo eu, diz respeito ao eu como pneuma em si. Este, como tratado em outras meditações (Veja), em pessoas que são cheias de si e são determinadas pela inveja na comparação com outros, ou seja, o que está fora de si, surge em modalidade passiva. O eu nessa modalidade cai em prisão nas profundezas da esfera da gana. Ele deve dali sair, deixar de existir, dando lugar ao espírito em modalidade ativa, capaz de formar imagens criadoras.

Ao contrário, a alma, considerada não como metafísica, mas pertencente como ordem emocional à esfera da vida, age de acordo com as normas da gana. Tem-se, assim, um conflito fundamental entre essas duas potências internas do homem e que se manifestam na antiga mitologia e nas suas referenciações cristãs, com hipostases tratadas de forma personalizada em vidas de santos e vivas em tradições do culto hagiológico.

A comedia estaria segundo Keyserling vinculada ao tipo primordial da Humanidade, e que seria a „mulher primordial“. O elemento dessa mulher primordia é e início o involuntário mascaramento para a sua segurança. Em nível mais elevado intelectualmente, é a mentira consciente. Mas na sua forma completa, a „mulher primordial“ aparece apenas quando ela representa o tipo de ser do ator.

Nessa primordial teatro se trata de outra coisa do que hoje se entende por comédia. O ator, no entendimento convencional, é aquele que não é êle próprio no palco, não na vida privada,  sendo que no palco nunca é o que parece ser. 

Sente-se responsável pelo seu papel, assim como outros para o desenrolar da vida particular. O seu espiritual tem uma existência autônoma. Ele tem duas vidas, o que também vale noutro sentido para os poetas e funcionários públicos, e sente como sua apenas a vida como pessoa individual. 

Na mulher primordial essa diferença não existe e a mulher que corporifica essa mulher primorial é fundamentalmente atriz. Totalmente sincera e real, metamorfoseia-se de homem para homem de acordo com o que êle nela ama ou que êle dela exige.

Ela desempenha um papel para ser ela própria. A mulher é sacerdotisa, hetare, amazona, pequeno-burguesa dependendo da situação na qual se encontra. Por outro lado, perde a forma ou decai se não tiver um papel a desempenhar. É a pura teatralidade no plano da vida real. Não é mimicri no sentido animal, também não é despistamento no sentido de consciência que tramoia, não é vida real a partir do espírito como no poeta, ou como a representação de um comediante profissional: trata-se da vida original como comédia em si.

Essa vida-comédia é a forma original da vida determinada pelo espírito. Um outro sentido daquele do organismo físico e psiquico como tal usa os seus órgãos, funções e meios de expressão. Com o vigorar desse „ser outro“ começa a espiritualização. Ela desponta já no mais primordial grau de vida, mas somente no homem surge como tipo de ser completo.

O aparecimento específico do espírito é a imagem. Não a imagem condicionada externamente, a impressão, mas sim a imagem interna. Tanto mais espírito se configura na sua característica, tanto mais a imagem deixa de ser reprodução, tornando-se pré-figura. 

Também no plano da criação espiritual, o ator encarna a forma fundamental e original. Esse é o sentido do exercitar e do imitar de todos os jovens. Nenhum pensa de início em algo novo: primeiramente representa o que outros sabem ou foram. Ele segue um ídolo, que é o seu ideal, confia nas palavras de um mestre, reproduz o que este fala, se satisfaz na sua confiança cega no seu ensinamento e maneira de ser.

O que ele representa, significa psicologicamente o igual como toda a teatralização. Deve-se porém diferençar entre a teatralização no quadro da natureza e do espírito. Se a mulher primordial é a atriz por natureza, que instintivamente e impessoalmente desempenha o papel vital necessário imposto pela situação externa, o ator espiritual toma por meio da imaginação um papel diferente de sua vida pessoal e coloca a seu serviço a sua vitaliade.

Tensões entre espírito e matéria nos estudos euro-brasileiros

A corrente de pensamento marcada pelas reflexões de Keyserling, sendo reconhecidas já no Brasil como adequadas para a análise e a compreensão de sentidos da linguagem visual de tradições lúdicas e de culto, teve prosseguimento no programa de estudos euro-brasileiros iniciado na Europa em 1974/75.

Os principais caminhos seguidos para o aprofundamento dos conhecimentos foram o do estudo dos fundamentos filosófico-naturais das reflexões nos seus elos com o ciclo do ano do hemisfério norte, o da antiga mitologia nas suas relações com o Cristianismo e o dos estudos bíblicos e hagiográficos.

No âmbito dos estudos da cultura da Antiguidade e mitológicos, deu-se particular atenção aos conflitos entre as antigas divindades, analisando-os nos seus fundamentos quanto às relações entre as ordens do espírito e da vida nas suas diferentes modalidades.

Entre outros, considerou-se os conflitos entre Hera/Juno e as mulheres terrenas, e a concorrência entre Hera e Atenas/Minerva e o prêmio de beleza a Afrodite como causa da guerra entre gregos e troianos.

O fato de ter-se referência à representação lúdica da guerra de Troia em folguedos populares na história missionária, levou a considerar também outras expressões de combates à sua luz, ainda que não a mencionem explicitamente. A análise mais profunda do ponto de vista antropológico exige porém que se direcione a atenção às suas principais protagonistas.

Nos estudos de relações Antiguidade/Cristianismo e da antiga Gnosis, levantou-se a questão de que até que ponto hypostases de potências da alma pudessem ter sido reinterpretadas na tipologia hagiográfica.

No âmbito das tradições brasileiras, considerou-se sob diversos aspectos as representações de lutas entre pneuma na hipostase do eu em modalidade passiva e a vida psíquica, entre Yansã e Oxum que, se vendo, imediatamente partem para briga.

(Veja em prosseguimento)

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ Que loucura! A liberdade da criação de imagens no interior do homem nas suas relações conflitantes com a vida de gana“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/18  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Liberdade_de_imagens.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Fotos: título e texto: A.A.Bispo, 1980.
Coluna: trechos de gravuras de G. Doré. ©Arquivo A.B.E.