Gana, improvisação e falta de visões

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/13 (2015:6)





A gana como causa da improvisação,
da falta de planejamento e de visões na América do Sul
força ativística da „proto-mulher gana“ nas águas paradas das profundezas
e melodias de vida sem nexos entre si



Ciclo de estudos da problemática imagológica de fins de outono da A.B.E. em Crottorf, Alemanha


 
Crottorf. Foto A.A.Bispo 2015

„Música e visões“ como complexo temático mantém o seu fundamental significado nos estudos de processos culturais em relações Europa-Brasil. Todos os fins de ano vem esse significado de forma particular à consciência ao comemorar-se o „dia da música“ a 22 de novembro.  Caindo na festa de Santa Cecília, essa data impõe reflexões sobre relações entre a música e a vida interior do homem e na cultura.




Vários foram os eventos de importância para o desenvolvimento de reflexões músico-antropológicas, psicológico-culturais e filosóficas que tiveram lugar no dia da música dese o início do programa de estudos euro-brasileiros em 1974/75.


Muitos dessas reflexões tiveram lugar em simpósios, congressos e outros eventos teológico-musicais levados a efeito em Roma, salientando-se aqui o Congresso Internacional de Música Sacra de 1985, ano declarado como „Europeu da Música“ pelas comunidades européias. Neste ano, deu-se o registro, na Europa, do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), remontante ao Centro de Pesquisas em Musicologia fundado em São Paulo, em 1968. Outro marco na história dos eventos relacionados com o dia da música foi aquele de solenidade do Istituto Pontificio di Musica Sacra em 1998, com conferências e missa solene no Panteão de Roma.


Não foi assim arbitrária a escolha do tema „Música e Visões“ para ser tratado em congresso internacional pelos 500 anos do descobrimento do Brasil e assim marcar balanços do passado e o início de estudos de processos músico-culturais relacionados com o Brasil do terceiro milênio,  (Brasil-Europa 500 Jahre: Musik und Visionen. Bericht des Internationalen Kongresses. Köln, 3.-7. September 1999. Sob o patrocínio da Embaixada do Brasil, Academia Brasil-Europa em coopeeração com a Deutsche Welle e com o Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia e ISMPS, ed. A.A.Bispo,Colonia 2000)


Graf Keyserling

Música e falta de visões


Embora admitindo múltiplas interpretações e aproximações, surgindo à primeira vista como por demais amplo e abstrato, nem sempre bem compreendido na sua relevância, relações entre música e visões representam assim há décadas uma fundamental preocupação e alvo de reflexões tanto da pesquisa empírica como de estudos teóricos e filosóficos, demopsicológicos, antropológico-culturais e auto-analíticos de pesquisadores.


Esses eventos caem na época mais feia, mais detrimente da Europa, marcada pelos dias mais escuros e húmidos do ano, um período de depressões e trevas: de falta de visões, que são mitigadas com o despontar nessas trevas as luzes tênuas do Advento com a expectativa que trás do Natal.


Ao mesmo tempo, é um período de grande ativismo, pois toda a vida ativa que para no período férias já retomou todo o seu alento. Os músicos, em particular, não conhecem outra época de maior atividade. Estão entregues a ensaios para a programação do ciclo adventício e natalino, que é, em número de concertos, a mais intensa do ano. A arregimentação de cantores e músicos, a organização e a realização de concertos exige grande movimentação, decisão de superar obstaculos, de concorrer e passar à frente de outros organizadores, de ocupar temas e repertórios, de otimismo e eufóricos entusiasmos.


Compreende-se, assim, que a atmosfera que reina em eventos que sempre se realizam nessa época do ano - como as assembléias anuais da A.B.E. e do I.S.M.P.S. - seja sempre marcada por essa situação conflitante de trevas húmidas manifestada no mundo que rodeia o homem e a passividade depressiva no seu interior com aquele dinamismo eufórico de realizações de concertos nos quais, ano por ano, são, em geral, apresentados os mesmos repertórios.


Entende-se, assim, que em encontros que se realizam nessa época de falta de tempo daqueles que se dedicam à música se tematize relações entre a natureza percebida pelos sentidos, de vida ativa, passiva e contemplativa, assim como de processos psicológico-culturais no homem e na sociedade. Não só música e visões, mas tambem música e falta de visões surge como um complexo temático que vem repetidamente à tona.


Falta e visões e empreendendorismo cego na Psicologia Cultural


Crottorf. Foto A.A.Bispo 2015
Tais estudos e reflexões inserem-se em corrente de pensamento que teve uma de suas mais significativas expressões nas „Meditações Sulamericanas“ do conde Hermann Keyserling (1880-1946). (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart/Berlin: Deutsche Verlags-Anstalt 1933, 151-192).


Essas meditações, estudadas sobretudo em círculos de língua e cultura teuto-brasileira, aguçam a atenção a um problema com o qual continuamente sempre se defrontam iniciativas em interações entre a América Latina e a Europa: o da improvisação do fazer à última hora, o de projetos que, começados com grande entusiasmo mas que muitas vezs ficam sem continuidade, a dificuldade do manter-se por mais longo tempo sociedades e instituições, resultando desenvolvimentos fragmentados e sem linha de continuidade, um eterno recomeçar sem progresso, um contínuo retomar de idéias e propostas já pensadas, supondo-se originalidade e pioneirismo.


Essa problemática é tratada nas „Meditações Sulamericanas“ como resultado de falta de visões condutoras e a sua manifestação em decorrências temporais em comparações com a música, metaforicamente com as „melodias de vida“ do indivíduo e de nações.


Trata-se aqui de uma problemática humana em geral, assumindo, porém, para Keyserling particular intensidade como fator determinante da vida na América do Sul, sobretudo no Brasil.


A sua consideração nessa contextualização sulamericana do filósofo promete, assim, abrir perspectivas para a compreensão de processos interiores ao homem e à humanidade em geral. Trata-se, também, de uma exigência de auto-análise e auto-crítica, uma vez que a capacidade de improvisação e de „dar-se sempre um jeitinho“ é decantada com certo orgulho como característica de identidade cultural.


Partindo da observação participante: improvisação e problemas de imagens


Keyserling registra de forma expressiva nas suas meditações a sensação que sentiu já nos primeiros momentos de sua estadia na América do Sul. Foi com surprêsa que constatou uma modalidade de vida e um tipo humano que diferiam fundamentalmente daqueles que até então conhecia e que considerava como sendo únicos. Foi, por sua vez, influenciado pelo mundo que encontrou.


Observou uma indefinível passividade e atitudes inicialmente incompreensíveis de uma ambivalência entre apatia, moleza, resignação depressiva e triste e repentes de ativismo e entusiasmo.


Encontrou pessoas que à primeira vista aparentavam ter extraordinária iniciativa, capacidade intelectual, vontade forte, de liderança, extraordinário poder de realização e que as manifestavam em magnífica espontaneidade e entusiasmo realizador, capaz de enfrentar os maiores obstáculos para a realização de seus objetivos. Grandes empreendimentos eram feitos de uma hora para outra.


Logo, porém, constatou que as aparências enganavam.


As iniciativas e as ações não eram guiadas por visões claras e objetivos determinados. Por todo lado havia improvisação. Improvisava-se sem uma visão pré-existente. Não se fazia o que se queria a partir de uma proposição consciente com base em imagem ou idéia condutoras, mas sim o que se precisava fazer, e isso de última hora. As idéias, as imagens e os projetos não eram resultado do trabalho criativo interior, mas copiados, imitados, apropriados, sendo, porém, sentidos como originais pelos seus executores.


Não se fazia o que se queria, mas podia-se fazer apenas em situações em que se devia.


Planos não eram feitos ou sistematicamente realizados. Se feitos, eram deixados de lado sem maiores problemas, ficando inacabados e realizando-se algo totalmente diferente. Tudo não só era feito em cima da hora, mas toda a tentativa de previsões do que fazer, do estabelecimento de um plano ou de objetivos, assim como o de dispor a longo prazo parecia ser mal vista, quase que uma perturbação de um decorrer natural.


Além do mais, faltava um sentido de tempo. Keyserling recebia visitas inesperadas a tardes horas da noite e, recusá-las, seria comprar inimizades. Esses visitantes vinham sem maiores razões ou objetivos, simplesmente vindo por vir, movidos por algum impulso indeterminado, e ficando por ficar, sem atentar se eram importunos ou não. Negar recebê-los, ou que entrassem e ficassem, tomando horas da noite e tempo de trabalho, seria sentido como uma ofensa. Não se sabia porém o que queriam e por que ficavam. Iam embora sem dizer a razão por que tinham vindo.


Na América do Sul, deixava-se tudo para „amanhã“, realizando-se então ações no último momento, de forma imprevisível e, então, sem o necessário planejamento, não tendo o realizado continuidade maior.


O problemática filosófica da vontade na América do Sul. Ter ou não ter gana


A constatação e a vivência pessoal dessas peculiaridades do modo de ser e viver na América do Sul trouxe à consciência de Keyserling a problemática da vontade ou o querer.


Não se tratava, na cultura da humanidade sulamericana, de ter ou não vontade ou gosto de fazer algo que se quer fazer, mas o do precisar fazer. Ter vontade e realizar algo por vontade pressupõe uma decisão e determinação interna no espírito, uma visão, objetivo ou idéia condutora, o que não era o caso nas ações repentinas, imprevistas, sem planejamento mas galopantes na sua força de realização, nas improvisações que por todo lado aconteciam e às quais foi obrigado a subjugar-se.


A capacidade de vontade que registrou parecia não ultrapassar os limites de um primitivo dizer não. Keyserling lembra porem que o dizer não representa um estado primário da vontade, pois é manifestada até mesmo no mundo vegetal, onde uma flor se fecha quando tocada por um corpo estranho. Na hipersensibilidade do brasileiro, cuja delicadeza superava aquela de toda a América do sul, essa problemática era ainda mais acentuada: tudo o que feria era mau, tudo o que não machucava era bom.


O impulso que levava a essas ações imprevistas e sem planejamento não tinha segundo Keyserling nada de visionário, pois, não partindo de uma imagem ou idéia condutora, era cego, vindo como que do escuro, das profundezas tenebrosas do homem e da cultura.


A gana ibérica e a gana sulamericana: imagem, sua falta e impulso orgânico cego


Keyserling reconheceu, assim, que gana não significava apenas o não ter vontade ou gosto de fazer algo, uma vez que a vontade, como salientado, já pressupõe uma visão ou propósito.


Para o filósofo e analista cultural, a gana constatada na América do Sul não era totalmente a mesma da gana espanhola. Esta, aliás, também não significaria simplesmente vontade. Também na Espanha era a gana uma força original atuante do íntimo, sobre a qual a consciência não tem poder, não encontrando correspondência adequada em outros contextos culturais europeus. Teria talvez antes uma certa proximidade com o termo Leidenschaft em alemão, indicando, assim, o seu cunho passional, o de querer ou não com paixão, e assim o de sofrer como instância passiva.


Para Keyserling, a gana ocuparia, na economia psíquica do espanhol, o lugar que cabia à vontade do francês e do alemão. Diferentemente da vontade predominantemente determinada por propósitos ou visões, a gana ibérica seria outra coisa do que vontade, também diferente de instinto ou dever, surgindo como um „vínculo elementar de imagem espiritual e impulso orgânico cego“. (op.cit. 156-157)


Quando a imagem e o impulso espontâneo interagem, então desencadeia-se na sua argumentação a dinâmica da gana ibérica. Caso contrário, o homem deixa as coisas correrem, aprecia como observador o que se passa. Devido à essa predominância da gana sobre a vontade, resultava que a iniciativa na Espanha ou decorreria do homem no seu todo ou não existiria.


A gana sulamericana, ao contrário, diferindo da espanhola, seria apenas um impulso cego, sem o vínculo elementar de imagem no espírito. O querer predizer o que acontece é visto como algo negativo. Assim, o lugar da gana seria fora do consciente. Seria uma esfera anterior àquela na qual desponta a luz da consciência no homem.


Diferença entre gana e vontade a partir da própria vivência do filósofo


Keyserling procura elucidar com um exemplo a dificuldade de compreensão por parte dos europeus da força e das características da gana sulamericana com uma narrativa que ouvira.


Uma amiga contara-lhe que, ao jogar tênis, oferecera a um menino uma recompensa em dinheiro para cada bola que fosse buscar para ela no campo. Este, porém, balançando a cabeça, afirmou „não posso“. Indagado a respeito da razão dessa impossibilidade, respondeu: „Porque não me dá gana“. 


Esse exemplo demonstraria a diferença entre a gana e a vontade. Como o menino dessa narrativa, Keyserling encontrou pessoas nas quais teve que reconhecer que não podiam de fato fazer o que queriam. Havia, assim, uma situação de impedimento da vontade, a de impedimento de criação de propósitos conscientes, imagens, objetivos ou planos que conduzam à ação ou impedimento da ação segundo propósitos vistos claramente à luz do espírito.


A gana revelou-se ao filósofo como sendo um impulso totalmente cego, não espiritual, orgânico, vindos da profundezas do intimo do homem.


A constatação desse significado da gana no sulamericano, de início incompreensível, representou uma revelação para Keyserling. Reconheceu que os visitantes que o procuravam a altas horas da noite ou durante o seu trabalho e que não podiam ser recusados obedeciam a um impulso psíquico-orgânico que os dominava. Não satisfazê-los significaria quase que um crime, um atentado a uma modalidade de vida. O querer prever surge na vida dominada pela gana necessariamente como irritante, pois nega o modo do seu ser.


Nessa situação, Keyserling passou a sentir-se entregue, impotente perante essas visitas não anunciadas, perante  as realizações imprevistas e fatos criados repentinamente e sem planos, as improvisações que por toda parte reinavam, caindo num estado de passividade como aquele observado na sociedade envolvente.


Sentiu-se puxado para baixo, como se nele agisse uma força de gravidade.


Essa sensação de força da gravidade no seu íntimo sentiu Keyserling logo ao chegar em Buenos Aires, sentido-se preso, ligado de forma misteriosa à terra.


De alguma forma os outros decidiam por êle e o determinavam. Estes que o dominavam, também, não agiam por si: o decisivo era um poder inarticulado, anônimo. Não era a opinião pública, mas algo sem nome, algo para além de possível determinação consciente. Não se podia saber quem teria sido o agente inicial dessa cadeia de ações cegas. Tudo indicava vir de profundezas não visíveis da cultura.


Origem do impulso cego da gana consideradas a partir do relato bíblico da Criação


Ainda que partindo das suas observações empíricas e da sua própria vivência, relacionando objeto e sujeito, demopsicologia e auto-análse, Keyserling passa a considerar a gana à luz de sua erudição e conhecimentos da cultura e filosofia orientais, de filosofia da natureza, de astrologia e teosofia, da antiga mitologia e das Escrituras. Correspondia, assim, a seu modo de pensar na tradição teuto-báltica das preocupações evolutivas nas ciências naturais e no pensamento, e que marcava a „Escola da Sabedoria“. (Veja)


Como nas suas outras meditações, Keyserling parte da consideração da América do Sul à luz do relato do terceiro dia da Criação segundo o livro Genesis, ou seja, segundo o surgimento da vida que reveste a terra com a sua cobertura vegetal.


A atenção é assim voltada à terra, que surgiu como o sêco das águas nesse dia, mas que é húmida, pois levantou-se das águas que agora passaram a correr. Não se trata, porém, dessa terra visível, mas daquela situação precedente da terra sob as águas paradas. A gana terrena que se manifesta na atração da natureza tem as suas raízes numa situação anterior, o da vida primordial em esfera da terra nas profundezas. No mundo natural do hemisfério norte, as raízes dessas decorrências de primavera se encontram nas trevas de fins de outono.


Implicações músico-antropológicas: a vida conduzida pela gana e melodias de vida


No pensamento e na argumentação de Keyserling, a música e metáforas musicais adquirem excepcional significado na elucidação de processos no interior do homem e da cultura. Êle próprio músico, via a vida como uma decorrência musical, seja em sucessão sem nexo de melodias, seja o de uma obra desenvolvida de grandes dimensões e lógica interna.  Êle próprio, na sua Escola da Sabedoria, compreendia-se apenas como orquestrador de idéias.


Uma das características da vida de gana que a diferencia de uma vida conduzida pela luz do espírito - a vida-imagem - seria a descontinuidade em configurações fechadas.


Quando o homem tem gana de fazer algo, entrega-se, faz sem pensar, e, terminando, encerra essa ação e passa para outra, sem sequência e continuidade nos atos, sem lógica de continuidade e coerência no todo.


A melodia de vida assim compreendida é uma espécie de unidade no espaço e no tempo em si fechada, não ocorrendo transpassagens de limites e interações, nem pontes com outras melodias que se sucedem.


Nessas características, o psíquico original corresponderia à vida de órgãos físicos e funções, lembrando Keyserling neste contexto as funções intestinais.


Em comparação mais poética do que aquela com funções orgânicas do aparelho digestivo-intestinal, Keyserling elucida musicalmente a vida conduzida pelos impulsos de gana, e que é marcada por trechos em si fechados e sucessivos, sem sequência, como uma série de melodias que se desenvolvem no tempo e se encerram, sem ligações umas com as outras.


A imagem da melodia como uma unidade de espaço no tempo, em si completa, corresponderia à vida no plano da gana, diferenciando-se da configuração musical da vida determinada pelo espírito.


Keyserling fala, assim, de „gana-melodia“ e de uma vida de gana consistuída de „monadas sem aberturas“ que existem uma ao lado da outra e sucessivamente, sem, porém, relações lógicas de sequência.


A vida-gana é, assim, no seu todo, discontínua, enquanto que aquela determinada pelo espírito tem uma continuidade interna e coerência. Neste caso, o vir-a-ser e o perecer das partes ou melodias relacionam-se com um unidade de ordem mais alta de um organismo global, tal como numa sinfonia. A vida de gana, porém, a forma mais baixa de vida, surge como um todo de elementos desconexos, uma vez que todas as suas melodias são fechadas e temporárias: uma coleção de melodias sem nexo interno, uma suite de partes que não chega a formar um todo.


A vida do sulamericano, assim, enquanto vida-gana, é para Keyserling uma decorrência de melodias em si fechadas, sem sequência lógica e coerência, sem sentido sob uma perspectiva do espírito.


Linguagem visual: da „mulher-gana“ à „mulher primordial“


Como de seu procedimento, Keyserling utiliza-se de imagens com conotações de gênero nas suas meditações. Para elucidar as características da gana e a situação daquele que cai preso no estado psíquico que observou e vivenciou na América do Sul, emprega a imagem de uma mulher que atrai, que ao mesmo tempo é conquistada e prende o homem.


Em si passiva, deve ser ganha. Quando isso acontece, então se entrega. O seu amor representa a sua vida. Mas esse amor é algo determinado concretamente, uma melodia especial e única, que exclui outras melodias concomitantes e que não tem pontes para com outras melodias. Assim, terminando o amor, a melodia se fecha, é praticamente esquecida e novas melodias ou amores se seguem. Tratar-se-ia assim de uma monogamia temporal, monogâmica enquanto dura, na sua sequência, porém, marcada por muitos amores.


Essa imagem correspondia na linguagem visual relacionada com a terra que surge na sua beleza de revestimento vegetal no terceiro dia da Criação. (Veja)


Seria o domínio dessa mulher-gana que explicaria para Keyserling uma vida marcada por sucessões de melodias sem nexo na América do Sul. O sulamericano cairia como se fosse em amor em alguma realização não-planejada, desenvolveria a sua melodia que, enquanto durava, era exclusiva. Terminando, começaria com um outro amor, sem pontes com o primeiro.


Cada melodia é temporária e pode ser tocada até o fim. Terminando, a mulher assim descrita por Keyserling sente-se livre e esquece, precisando esquecer para poder amar de novo. A exclusividade do amor da gana não permite algo ao lado. Compreender-se-ia, assim, mudanças e interrupções radicais numa linha de vida determinada pela gana, por exemplo na possibilidade de uma mulher passar a amar o assassino do marido que tanto amou.


Quando entra porém a capacidade de imaginação no desenvolvimento interior do indivíduo, surge a contra-imagem do ser determinado pela gana cega. A partir daí não há exclusividade, pois todas as imagens se relacionam entre si. Para elucidar esse caso, Keyserling utiliza-se da imagem de um homem. Este seria assim polígamo por natureza, não esqueceria os amores, que vivem na sua imaginação um ao lado do outro, de modo que não se sente infiel.


A gana cega não pode ver além de si. Incapaz de imaginar, ela deve perceber com os sentidos e agarrar. Tanto mais for um homem dominado pela gana, tanto menos tem fantasia. Só a curiosidade é algo próprio da gana.


Keyserling toma o cuidado de advertir que essas distinções de gênero e suas características valeriam apenas para tipos „puros“ ou como modêlos: mulheres que corresponderiam plenamente a essas caracterizações seriam tão raras quanto os homens absolutamente visionários. Se a mulher for desenvolvida quanto à capacidade de criar imagens e idéias, e não apenas pensar que cria as que apropriou, então ela não se diferencia do homem quanto à psique, o que vale também reciprocamente.


Mesmo com essa relativação, Keyserling presumiu aqui residir a chave para o problema do conflito homem-mulher. A mulher como ser potencialmente dominado pela gana - o que acontece sempre quando ama: quando se torna cega, vê no homem capaz de amores simultâneos e múltiplos traição potencial ou real. Na América do Sul, em particular no Brasil, dominava o princípio da gana, e, assim, a „mulher gana“ e a „mulher primordial, determinando a psique coletiva.


A vida na sua forma mais inferior na imagem da „mulher primordial“


O desenvolvimento de pensamento de Keyserling diz respeito assim não apenas à terra que surge na beleza do seu revestimento vegetal do terceiro dia, mas sobretudo a seus fundamentos, às suas raízes em situação anterior.


Sendo impulso cego, diferente e oposta à vida determinada ou condicionada pelo espírito, as bases da vida-gana localiza-se segundo Keyserling nas trevas que correspondem à noite da Criação do primeiro dia do relato bíblico. Nesse dia em que a luz se fêz, e no qual deu-se a separação das trevas da luz,  que passaram a ser denominadas de noite e dia, toma-se consciência das trevas pré-existentes.


A gana que se manifesta na terra do terceiro dia mas que tem as suas raizes nas profundezas, é segundo Keyserling a força própria da vida cega, sendo ao mesmo tempo forte e fraca, potência original e impotência. A sua característica essencial é a cegueira e, com ela, o não abrir-se, o ser fechado interiormente apesar de todo o dinamismo com que se procurar realizar um objetivo, pois a possibilidade de uma libertação é apenas possibilitada pelo espírito.


A vida cega ou de gana seria a mais baixa forma de vida. Na interpretação de Keyserling do vivenciado na América do Sul, o não receber uma visita importuna ou o não satisfazer um impulso ou o decepcionar uma expectativa surge, sob o ponto de vista da gana como um atentado à vida, pois esta é a última instância. Uma decepção equivale neste sentido a uma execução, pois significa a morte de uma certa forma de vida.


Fraqueza em pressentimento do espírito: mêdo e insegurança primordiais


O mêdo resulta segundo Keyserling da consciência da fundamental fraqueza da natureza perante o espírito e seu poder, que são, nesse estado, apenas pressentidos.


Todas as criaturas teriam o pressentimento do poder do espírito, sendo por êle influenciadas, ainda que de forma obscura. Tudo o que tem vida participa do princípio espiritual, tendo este a sua maior expressão no homem. O espírito entra na natureza como Deus ex machina, domina-a com meios que a natureza não tem como manipular.


Visão da „mulher primordial“ em situação de falta de ar e a sua inominável fome


Já no início de suas meditações referentes à gana, Keyserling expõe uma visão que teria tido em situação de quase-delírio quando acometido pelo mal de puna nas alturas dos Andes, assim acometido por falta de ar, extremo cansaço, fraqueza e insônia.


A descrição que oferece da figura que viu internamente é uma das mais impressionantes da literatura concernente a uma imagem conhecida de remotas tradições e também vigente em expressões culturais do Brasil.


Longe de ser apenas uma expressão literária do autor nas suas meditações, sem maior significado, a imagem oferecida por Keyserling surge como uma representação plástico-visual altamente expressiva e significativa para os estudos imagológicos, tanto empíricos de expressões culturais vivas, como literários de estudos de fontes do passado da Antiguidade e da Idade Média.


Nessa visão, o doente sentiu-se como uma ave pairando sobre o oceano do mundo, sobrevoando as águas gélidas vindas do Ártico com as suas vagas espumantes.


Deparou então uma criatura enigmática, próxima e longínqua, de corpo indefinido, mulher, serpente, ameba e polvo ao mesmo tempo. As suas mãos e pés se desenrolavam como tentáculos, escorregadios e com uma pequena cabeça de mulher. Esse ser, de tamanho descomunal, pairava sobre as cristas e os vales das ondas, sempre vibrando com as narinas de seu sensível nariz, procurando o horizonte, às vezes pálida como um polvo, em alguns momentos brilhando com escamas prateadas, descendo por vezes às profundezas das águas escuras, suave em todas as cores lunares.


Essas ambivalências iridescentes mostravam-se também nas expressões de sua face. Esta era impassível, como a de um réptil, mas as feições humanas magnificamente traçadas eram ao mesmo tempo tão irregulares que surgiam como sendo múltiplas, oferecendo sempre uma outra imagem.


Assim como a luz do sol e as sombras das nuvens em tempestade lançam novas cores no mar, assim passavam pairando na sua face silenciosa beleza divina, feiúra infernal, suavidade e traição.


Permanente era apenas a expressão de fome, uma imensa e inominável fome, de modo que nos traços da mulher de beleza clássica percebia-se quase que um faminto lobo.


Esse ser não pairava com leveza e em atitude vitoriosa, mas sim lutava de forma indizívelmente sofrida emm direção ao norte, à procura, como um homem que estivesse pronto a afogar-se. Imergia das ondas repentinamente e nelas emergia, com infelicidade nos olhos, com gritos lamentosos que ressoavam no deserto de águas.


Não se poderia distinguir se era uma mulher que se contorcia como se soluçasse no seu leito ou um leão marinho que uivasse. (op.cit. 37-38)


Magia e o mêdo perante o espírito - apatia e falta de sentimentos como saída


A magia é para Keyserling, a expressão primordial do espírito. Como este entra na natureza de fora, como Deus ex machina, entra com meios que a natureza não tem como manipular. Os povos que se encontram mais próximos à terra procedem assim da forma mais precisa relativamente à natureza do que aqueles mais desenvolvidos na sua capacidade de criar imagens conutoras. Um benzer obriga a natureza a mudar o seu caminho; perante uma fórmula mágica, a natureza não tem como reagir. A natureza submete-se já antes do homem ao encantamento, tal como o pássaro que é indefeso perante a serpente.


Assim, o mêdo do espírito que pode adentrar ter-se-ia feito sentir já nos mais primordiais rudimentos de consciência.


Esse mêdo atua, segundo Keyserling, de modo paralisante, criando-se a roda da qual não se tem saída. Não se trata de ação hipnótica da sugestão, pois esta pressupõe a formação de palavra ou a criação de imagens.


Todo o animal tem mêdo, tanto do espírito quanto da natureza, não havendo animal com coragem. Justamente os mais violentos animais têm mêdo, a sua coragem nunca é de iniciativa livre, mas resultado de confronto passivo e reativo para com um perigo exterior.


O sentimento básico de um leão ou tigre é o mêdo. Também os „povos naturais“, segundo Keyserling, na sua consciência despontante, evitam falar alto ou portar armas em assembléias, pois os demônios dentro de si podem acordar e agir. Ao menor motivo, na sua hipersensibilidade de sentir-se machucados, reagem, o que pode levar a conflitos.


Os impotentes encontram redenção quanto ao mêdo apenas na falta de sentimentos. Por isso haveria o culto da apatia, não só entre indígenas. Essa apatia ou falta de sentimentos não significaria estoicismo, pois aqui seria o forte que afirma em si um espírito que predomina e que não é afetado pelo mundo externo.


O mal que nasce do mêdo primordial como útero gerador


De início, para Keyserling visto a partir da terra, não haveria bem ou mal, mas sim a vida original tal como é. O leão ou uma ave de rapina são inocentes em tudo que fazem. Esse não é o caso do homem. A primeira onda de mêdo que desponta na consciência ainda tão escura transforma a existência no mal.


Como as penas de tortura demonstram, o anelo de fazer sofrer vêm antes daquele de exterminar. Isso explicar-se-ia pelo pressentimento de uma impotência. Todo martirizar seria expressão de impotência pressentida: a impotência de fazer com que o torturado sofra aquilo que o torturador no seu fundo sente. Ao inconsciente não basta a extinção do outro, precisa o sofrimento alheio para a sua própria segurança. Assim como a tortura é produto do mêdo, também o mal não é a primeira causa, mas a primeira consequência do mêdo.


O mêdo original dá àquele que tem mêdo terríveis atributos. Todas as terríficas criaturas da fantasia seriam mais aterrorizantes do que a própria realidade. Sendo porém o mêdo o útero gerador da configuração, dele nasce o que aterroriza.(Veja)


A vida nas profundidades é passividade sem ação própria. O primeiro vir-a-ser do consciente não se manifesta na questão „quem sou eu“, mas sim „o que se passa comigo“.


Trata-se de uma surprêsa primordial de uma vida que primeiramente experimenta o destino e não a vontade. A primeira possibilidade que se tem nesse estado de iniciativa fraca primordial de fugir do destino era aquela de se despistar, assim nascendo a mentira original. 


Segundo Keysserling, as mulheres que se encontram mais próximas dessas profundezas primordiais encarnam ainda hoje a forma de ser da vida primordial. Elas não teriam consciência pesada em mentir, talvez só no caso em que se tratasse da educação dos filhos. Essas mulheres dominariam a psique sulamericana, marcada que seria pela tirania da gana.


A „mulher primordial“ não se sente presa a motivos éticos


A „mulher primordial“, segundo Keyserling não se sentira presa a motivos espirituais e éticos. Seria por essa razão que religiões que salientaram o espírito teriam apresentado a mulher como má. Como mau vale originalmente o falso, não o que extermina. Traição e engôdo, o agir por detrás são vistos pelo consciente como mau, enquanto que o matar em duelo cara-a-car foi até mesmo visto como nobre no passado.


Assim, as intrigas femininas são más, assim como é mau todo o tipo de despistamento e tentações a serviço de sua afirmação. 


Segundo Keyserling, porém, a mulher é apenas „má“ à medida que a vida primordial é má. O que hoje seria visto como especificamente feminino é o modo de ser da vida primordial: a primordial impotência passiva, que se manifesta em extrapolações de potência e atividades, o mêdo primordial e a mentira primordial.


A vida primordial nas suas mais próprias características na América do Sul: um tormento


Para Keyserling, o  tipo da vida promordial manifestar-se-ia da forma mais pura no subcontinente sulamericano. Sob esse aspecto, o subcontinente superaria todas as demais partes do globo. A vida surge como um tormento, como um sofrimento infernal, e isso teria sido reconhecido por Simón Bolivar (1783-1830), o grande libertaor, pouco antes da sua morte. (op.cit. 43)


As mulheres da América do Sul ofereceriam para Keyserling muitos exemplos expressivos da primorialidade da mulher. Sem possuir escrúpulos éticos, e por isso sem culpa, nelas desenvolve-se o mal, que é o primogênito do mêdo primordial.


Não haveria em nenhuma outra parte do globo tanta indiscreção, tanta difamação, intrigas e criação de armadilhas do que aquela entre amigas na América do Sul. Nenhum mulher da terra usaria de forma tão magistral todas as possibilidades da passividade e do despistamento. (op.cit. 45)


O mêdo de sofrimento, procura de segurança e mãe do mal


O mêdo primordial é a mãe daquilo que se chama de mal, que seria o seu primogênito. (op.cit. 46)Todo o mundo subterrâneo tem o seu cunho. O mêdo primordial é a mãe da tendência de assustar, não ao contrário. Assim como o mêdo precede a coragem, a mentira precede à verdade e a tentação à convicção.


Do ponto de vista da terra, a coragem é falta de inteligência,  pois só o esconder-se ou a fuga permite que se escape do perigo. Assm como o mêdo primordial pede segurança, o risco fomenta a coragem. Quem afirma a „mulher primordial“ em si, afirma a sua vontade de segurança.


O querer ter da vida primordial - tara do possuir e de apropriar-se


Passando para a proteção primordial contra o mêdo primordial, Keyserling considera que em primeiro lugar para superar o mêdo surge não a coragem, mas o mêdo do sofrimento.


Assim, o primeiro impulso ativo é aquele de procurar segurança. A sua forma primitiva é o possuir.


Verdadeira segurança permite não a defesa, mas a impossibilidade de ser atacado.

A procura de segurança é vista na propriedade e no possuir um espaço de vida sentido como necessá´rio.


Para Keyserling, até mesmo a a raíz terrena da consciência de direito parecia estar no sentimento de propriedade. Isso explicaria a razão do prestígio do ter propriedade, em particular nas Américas. Esse fato foi analisado também e sobretudo ao capitalismo norte-americano no seu livro anterior sobre a América, também aqui salientando o papel de clubes e organizações femininas,em geral politicamente conservadoras. (Amerika: Der Aufgang einer Neuen Welt, Stuttgart/Berlim: Deutsche Verlags-Anstalt 1951; 1a. ed. alemã 1930) (Veja)


O analisado por Keyserling nos Estados Unidos encontra paralelos na problemática por êle descrita nas Meditações Sulamericanas. Esta poderia ser analisada de duas perspectivas, a do espírito e a da terra. Na dimensão daquele ligado à terra, o prestígio do ter propriedade seria superior ao da potência ou violência. 


Nas relações de dependência social não seria a fidelidade e a lealdade, que existem apenas a partir do espírito, mas sobretudo as relações alimentícias, ou seja interesses relacionados com a insegurança e o mêdo.


O prestígio é sentido como aquele que tem mais do que outros.  Prestígio e a procura de riqueza no Novo Mundo não significariam libertação das raízes da existência, mas, ao contrário, proximidade às raízes. O culto ao ter, ao possuir surge, em Keyserling, como sinal de primitivo estágio de desenvolvimento espiritual.


No quadro da argumentação do filósofo, é a mulher e não o homem aquela que quer originalmente propriedade e segurança. Isso explicaria o cunho feminino de ideologias políticas que, no exemplo do socialismo, são guiadas pela concepção de um Estado que oferece segurança. Em toda a história seriam os sistemas matriarcais aqueles de povos de propriedade.


Diferenciações em visões relativas à propriedade e paradoxias


Essas considerações obrigavam Keyserling a ver determinados contextos sob ângulos diferentes. Se por um lado é compreensível que espiritualidade seja vista originalmente como contrária à propriedade e espiritualização com sublimação do conceito de direito de propriedade, o que e compreensível por ser propriedade um assunto totalmente da terra, por outro lado, o desenvolver humanizador da terra surge como um objetivo espiritual, pois deve ser finalidade do anelo de aperfeiçoamento do espírito.


Para Keyserling, faltaria a grande maioria dos homens a mais elementar segurança contra o mêdo primordial da vida nesse útero das profundezas. Nesse sentido, poder-se-ia compreender que muitos procurassem escapar desses conflitos, vendo o fluir da vida e o alcance de um espírito nobre num exclusivo enraizamento no espírito e não mais na terra: a pobreza passa a ser vista como privilégio, o que pode ser exemplificado com concepções e modos de vida tanto de sábios do Oriente como da vida de monges no Cristianismo ocidental.



Mêdo e insegurança da „mulher primordial“ em conflito com a fome primordial


Os fundamentos terrenos do masculino primordial encontram-se numa diferenciação: se o mêdo primordial é o feminino, o masculino representa a fome inicial. Como a fome em si não tem limites, a não ser na da auto-destruição, a fome arrisca, corre e enfrenta riscos, estando assim contrária ao anelo de segurança.


Assim, a fome se revela como um meio primordial que antecede a liberdade do espírito e da conquista espiritual, que é o compreender e, por fim, a espiritualização. No sub-mundo, porém, não há liberdade. Aqui, trata-se da procura de segurança, e essa encontra-se ao lado da fome.


Para Keyserling, já no sub-terrâneo ocorre, porém, uma luta eterna entre o mêdo e a fome. Uma relação harmônica perene entre os dois é impensável. Onde há apenas uma pequena consciência e poucas iniciativas espirituais, então o anelo de segurança passa a predominar. A segurança exige o segurar, o agarrar, o manter, o apropriar-se. Esses ímpetos, se intensificados, levam à avareza e esta sufoca. A vida, porém, sempre precisa sentir fome para poder crescer e assim leva a um crescente sempre querer ter mais. Predominando, leva a um vício de ter que tudo engole e cujo limite é o devorar de si próprio. Nesse complexo conflitante proceder-se-ia a vida nessa esfera primordial da gana nas profundezas tenebrosas do interior do homem e da cultura.


Aprofundamento e diferenciações de reflexões nos estudos euro-brasileiros


As explanações de Keyserling, cuja correspondência a concepções e imagens transmitidas em expressões culturais e de culto já haviam sido constatada em pesquisas de campo no Brasil, foram aprofundadas desde o início do programa de estudos euro-brasileiros na Europa em 1974/75. Esses estudos foram conduzidos em centros de estudos de cultura antiga, museus e sítios arqueológicos, assim como de estudos religiosos voltados a relações Antiguidade/Cristianismo dos primeiros séculos.


As suas considerações relativas à terra foram tratadas relativamente às personificações da antiga mitologia nas suas correspondências  Gaia ou Gê e, já na nova fase posterior sob Zeus/Jupiter, a Demeter ou Da, Dionísio.  Se Afrodite/Venus foi estudada sobretudo à luz da imagem da „mulher-gana“ - e da terra no terceiro dia da Criação - (Veja), se Dionísio foi considerado sobretudo sob a perspectiva do mal como filho de natureza dupla, do lado terreno de Demeter ou de Semele, correspondente ao „primogênito“ da vida primordial segundo Keyserling, (Veja), esta, como estado mais inferior da vida, foi estudada em referências a Gaia e a Demeter. (no Brasil: Nanan)


Gê e Da - ainda que em diferentes fases, relacionam-se com similares processos descendentes relativos à terra como mãe. Em ambos os casos tem-se o motivo do mêdo e da insegurança, seja nos terríveis fantasmas no seu interior sob o domínio de Uranos, seja, no caso de Demeter, da perda de sua filha Persephone/Proserpina, levada às profundezas subterrâneas. Na procura do libertar-se dos fantasmas, manda o seu filho Kronos/Saturno matar o pai, assumindo este o domínio, passando para as profundezas subaquáticas. Essa situação indica o conflito fundamental entre os princípios do mêdo e o da fome primordial. Como mãe de Rhea/Magna Mater, é „avó“ das divindades da luz. No momento da entrada do espírito, encontra-se no seu estado mais inferior, nas trevas. No mito de Demeter, é a situação na qual a deusa, desesperada à procura de Persephone, retraiu-se e não deixou mais que nada crescesse na terra.


Nos estudos Antiguidade/Cristianismo, a atenção foi dirigida a correspondências com nomes do Antigo e do Novo Testamento referentes a mulheres de idade avançada, marcadas por insegurança e mêdo nas suas vidas, sem filhos, como a terra infrutífera da linguagem visual. O anti-tipo do Novo Testamento é Ana, a mulher atribulada com a sua infertilidade e que, em idade avançada tornou-se mãe de Maria.


Essas relações da santa tríade - Ana, Maria, Jesus -foram estudadas na sua extraordinária importância nas concepções teológicas, de culto, de tradições culturais e de representações na arte religiosa. Esses estudos realizaram-se, sob o aspecto músico-antropológico com especial referenciação segundo o Brasil em instituto de pesquisas da organização pontifícia de música sacra junto à abadia de Maria Laach, na Alemanha, assim como em instituições romanas. (Veja)


Foram, em conferência e exposição, consideradas mais especificamente na solenidade dos 25 anos desses trabalhos, em 2002, quando se fêz um balanço do desenvolvimento dos estudos e uma constatação critica de uma situação atual que continua a ser marcada pela manutenção de imagens e concepções superficiais, resultantes sobretudo e leitura literal das Escriituras.


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“A gana como causa da improvisação, da falta de planejamento e de visões na América do Sul
força ativística da „proto-mulher gana“ nas águas paradas das profundezas e melodias de vida sem nexos entre si“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/13  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Mulher_gana.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Fotos A.A.Bispo, 2015 ©Arquivo A.B.E.