Shows da própria cultura: Bali
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright



Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 168/14 (2017:4)


Shows da própria cultura como questão de análises culturais
Aproximações históricas em diversos contextos a partir da problemática brasileira
músicos ambulantes em processos coloniais no exemplo de Bali



 
Nos estudos desenvolvidos no arquipélago malaio, em 2017, considerou-se sob diversos aspectos questões concernentes a expressões tradicionais na representação de grupos, regiões e países, assim como as suas relações com a auto-consciência cultural e sentimentos identificatórios de populações.

Tratou-se também das interações entre essas questões com a própria pesquisa, salientando-se o cuidado que se deve tomar relativamente a hipóteses de origens, desenvolvimentos e interpretações de sentidos, uma vez que o emprêgo de expressões tradicionais para fins missionários, de propaganda política e para turismo leva a distorções e à criação de fatos e imagens que, embora produtos de recriações ou mesmo instrumentalizações, podem ser duradouros.

Essa problemática colocou-se na visita ao bairro português de Malaca, o „Portugiese Settlement“, que surge hoje singularmente como um atrativo turístico-cultural da cidade da Malásia. (Veja) Nele analisaram-se vários aspectos das complexas relações entre expressões culturais mais ou menos de remota introdução e aquelas fomentadas sistematicamente em épocas mais recentes da história política. (Veja)

Trata-se aqui de uma problemática que vem preocupando há décadas  também as pesquisas relacionadas com o Brasil. Bastaria lembrar neste sentido o cuidado de folcloristas brasileiros em distinguir entre folclore e folclore aplicado na década de 1960, justamente numa época em que se discutia a necessidade de mudança de perspectivas através de uma orientação da atenção a processos, não à categorização do objeto de estudos.

Tratar-se-ia antes de reconhecimento e análise de mecanismos que levaram à aplicação no passado de elementos de um sistema cultural para fins de atração, de catequese, de ensino ou, posteriormente, de fins políticos, sobretudo em épocas de nacionalismo.

Necessário para isso é a análise dos caminhos que levaram a seleções e acentuações de determinados aspectos de um repertório cultural na procura do mais característico, do típico ou do mais fascinoso para a acentuação de anelos de auto-diferenciação cultural e intentos de auto-representação. Problemas daqui derivados, tais como o do auto-exotismo e da carnavalização da cultura foram repetidamente considerados em colóquios relativos ao Brasil.

Significativamente, a questão da mutabilidade de imagens no decorrer do tempo foi tema que marcou o primeiro Forum Brasil-Alemanha de Música em Leichlingen, em 1981, diferenciando-se a imagem do Brasil marcada por estereotipos como „samba, carnaval e futebol“.  (Veja)

O fundamental significado de uma conscientização e da análise desses processos para o Brasil levou a que fossem tematizados na abertura dos eventos científico-culturais pelos 500 anos do Brasil em congresso de título „Música e Visões“.  Considerou-se as grandes transformações das imagens do país através da história, o fato de que expressões hoje qualificadas como brasileiras e de conteúdo identitário não o foram até as primeiras décadas do século XX, representando assim fenômenos muito recentes, provavelmente transitórios e merecedores assim de análise quanto aos processos em que se inscreveram.

O estudo desses processos e seus mecanismos, não sendo restritos ao Brasil, mas antes globais, necessita ser desenvolvido em diferentes contextos e situações, o que permite o aguçamento da sensibilidade para o tratamento de questões relativas ao Brasil. Neste sentido, tem-se feito observações em várias regiões do globo relativamente à música, à dança e a encenações a serviço de representações nacionais, de produções para palco para fins comerciais, shows turísticos e suas implicações culturais através da mídia.

Se em alguns países uma sistemática instrumentalização política de tradições regionais já pertence a um passado de regimes autoritários, em outros a problemática apresenta-se de forma muito diferenciada e mais complexa, adquirindo hoje inesperada atualidade com a revivescência de tendências nacionalistas e identitárias do presente.

Significado de apresentações folclóricas e shows em contextos insulares

Entre os contextos que merecem particular consideração sob o aspecto do emprêgo de expressões culturais na representação cultural e sua comercialização destacam-se aqueles de países menores de regiões insulares, tais como o Caribe ou o Pacífico Sul. Neles, a cultura assim manifestada surge como um dos principais bens locais e regionais a serem aproveitados.

Devido justamente às menores dimensões de contextos, participantes de grupos que cultivavam expressões festivas por tradição - em geral religiosa - passam a participar de shows.

Se em alguns países já há a muito uma tradição de revistas e outros espetáculos, como Cuba, sendo difícil não considerá-los nos estudos da música e da cultura, em outros a situação é diferente, havendo mais intensa presença de participantes provindos de regiões rurais, de pequenos povoados ou de contextos onde as respectivas expressões, embora festivas, eram cultivadas para outros fins.

Referências à vida regional de trabalho, a épocas coloniais e de trabalho escravo

Também as referências epocais e contextuais das manifestações variam nos diferentes contextos. Modos de vida de trabalho de camponeses e pescadores constituiram principal assunto em apresentações de danças e costumes regionais em regimes nacionalistas do passado de vários países. Embora promovidos por estados autoritários do passado em Portugal e no Brasil, esse tipo de atividades de missão católica, como é o caso de comunidades de descendentes de portugueses em Malaca (Veja).

Em vários países latino-americanos, predominam referências à época colonial ou ao início de história independente no século XIX em trajes, danças, instrumentos e encenações, predominando também aqui referências à vida de trabalho. Compreende-se, neste sentido, que referências à escravidão e acentuação de expressões dela decorrentes, africanas ou apresentadas como tal, constituam importante fator de representações caracterizadoras não só na América Latina mas em países de outras esferas do globo, como Maurício, levando a expressões afins em diferentes contextos. (Veja)

Diversidade de referências e interações em ilhas da Australásia e do Sudeste Asiático

Num vasto mundo insular, como é aquele do Índico e do Pacífico, pode-se constatar uma grande diversidade quanto a interações entre expressões inscritas na vida quotidiana, religiosa e festiva e aquelas de apresentações para fins comerciais e turísticos, assim como relativamente a referências a contextos culturais indígenas ou de diferentes fases da história de interações culturais, não só com europeus.

Essa vasta e complexa região adquire assim particular interesse para estudos respectivos, fato que tem levado à realização de observações em vários contextos dessa esfera do globo, sempre referenciando-se pelo Brasil.

Assim, em Vanuatu, considerou-se a apresentação de modos de vida, de expressões e comportamentos de culturas aborígenes locais em espécie de museu ao ar livre, modificando-se assim procedimentos de representação cultural, em geral de natureza teatral. Não a apresentação de vida indígena em palco a uma assistência, mas a participação do visitante na vida do nativo na floresta constitui o procedimento condutor dos eventos. (Veja) Na Nova Caledônia, considerou-se a questão do „mostrar-se e ser mostrado“ também sob o pano de fundo da tradição francesa de vaudevilles e de teatro de variedades. (Veja)

Mitos e lendas - Bali nos estudos voltados a apresentações de música e dança

Nas ilhas de Sonda, foco de interesses dos trabalhos de 2017, destaca-se Bali pelo extraordinário papel que desempenha a sua cultura tradicional de música e dança na imagem da ilha e no fascínio que internacionalmente desperta.

Esse fascínio não poderia ter deixado de influenciar a própria pesquisa, pois foi causa da atração de estudiosos e de sua dedicação, possibilitando o avanço dos conhecimentos, mas também a êles emprestando acentos derivados desses elos emocionais. Poucas são as regiões do mundo que podem ser comparadas com Bali quanto a esse significado de expressões culturais.

O principal fator desse facínio é musical, reside no gamelan e, através dele, ultrapassa os limites de Bali, dizendo respeito também e sobretudo a Java.

Em Bali constata-se a participação de grupos de músicos e dançarinas de aldeias que, para além de ocasiões festivas locais, estreitamente vinculadas a datas do calendário religioso, também aceitam contratações para apresentações para visitantes estrangeiros. Os seus componentes são em princípio inseridos em contextos ainda por assim dizer íntegros de visão do mundo e de condução de vida, apresentando-se porém conscientemente para fins de ganho.

Pode-se registrar que muitos deles, sobretudo os mais jovens, bem formados e informados através de meios de comunição social da Internet, o fazem de forma consciente. A participação em apresentações outras do que aquelas de ocasiões próprias do calendário tem consequências para a participação refletida nessas últimas.

Constata-se, porém, também em Bali a existência de grupos musicais com danças de cunho encenatório que revelam ser conjuntos e produções profissionalmente criados para shows. Estes se diferenciam daqueles apenas contratados pela maior exuberância de trajes, de instrumentos, assim como pela escolha de peças apresentadas. Revela-se em programações o intuito de seleção de números de danças que, em gestos e sentidos, referem-se a mitos e lendas de maior interesse para um público estrangeiro.

Significativamente, as apresentações são acompanhadas por explicações em inglês, o que apenas pode ser feita através de estudos, reflexões e interpretações. Mais uma vez constata-se, assim, as relações entre esses intuitos de apresentação e o desenvolvimento dos estudos da própria cultura.


História do apresentar-se a estrangeiros. Pesquisa e valorizações

Nos diálogos desenvolvidos com participantes de ambos os tipos de grupos de música e dança, salientou-se um outro aspecto que merece ser levado em conta na consideração do emprêgo de expressões culturais tradicionais com interesses de ganho e que não é de origem recente, mas inscrito êle próprio na tradição.

Lembrou-se aqui de grupos de música e dança que já no passado apresentavam-se para visitantes estrangeiros na expectativa de reconhecimento como registrado em relatos de viajantes em diferentes países. Para Java, o mais significativo desses relatos é o do admiral austríaco Josef Lehnert a partir de suas vivências em viagem ao redor do mundo entre 1874 e 1876.(Veja)

Em Surabaia, hoje grande cidade, capital da província de Java Timur ou Java do Leste, e que, como porto visitado por comerciantes e viajantes de várias regiões do mundo, o militar austríaco documentou a visita de um grupo de músicos e dançarinos a seu hotel.

Surabaia possuia já na sua época uma parte européia à época da presença holandesa, com edifícios representativos e hotéis, separada por uma ponte (a ponte vermelha) da parte onde habitavam malaios, chineses e árabes. Lehnert registra no seu relato a vinda de um grupo desta última parte à européia, acompanhado com gamelan e com dançarina para apresentarem-se ao ar-livre aos estrangeiros que se encontravam na varanda do hotel.

„Numa tarde, quando balançavam-nos nas confortáveis cadeiras de vime na varanda emoldurada de plantas do hotel, apareceram duas dançarinas javanesas, as Rongengs, que em Java surgem como sacerdotizas da graça e da ternura e que através da encantadora arte e suas dança fascinam de tal modo os homens que mesmo os mais dignos são levados a participar na dança. As Rongengs trouxeram os seu gamelang, que se sentou em semi-círculo à frente da varanda. As dançarinas tinham máscaras, a cabeça era ornamentada com um chapéu trabalhado com fios e ouro; a parte superior do corpo era coberta com um casaquinho apertado vermelho de mangas curtas, o sarong listado ia até o chnao, de modo que pouco se viam os pés nús, e por fim tinham um véu leve ao redor da cintura. A aparência das dançarinas era agradável e a dança, se o uso do termo é adequado, pareceu-me ser gracioso. Tinha muita similaridade com as danças que foram-nos apresentadas no Sião; na quebra e nas voltas dos membros residiam as principais forças das dançarinas ambulantes. Ao lado do Rongengs, que não podem faltar em nenhuma festa, também apresentam-se Jongleus e mágicos; teatros no nosso sentido não se executam.“ (Josef Lehnert, Um die Erde: Reiseskizzen von der Erdumseglung mit S.M.Corvette Erzherzog Friedrich in den Jahren 1874, 1875 und 1876, II, Viena: Alfred Hölder 1878, 792)


Esse registro traz à consciência não só a existência de grupos ambulantes que já pela tradição procuravam ganho através de suas apresentações, como também a inscrição dessas práticas na história colonial. Essas relações com o colonialismo fazem com que os shows da atualidade, apresentados em hotéis e em navios de turistas, adquiram uma dimensão de início não esperada.

A tomada de consciência de que os atuais shows inserem-se em processos históricos já de longa data e remotas origens, revela sob diferentes aspectos novas perspectivas para os estudos respectivos, para a apreciação dos espetaculos e para os próprios participantes. A atenção dirige-se a práticas já há muito existentes no próprio contexto cultural e às transformações por que passaram na época colonial.

O interesse volta-se assim por último a questões fundamentais do apresentar-se nas suas inserções no sistema cultural. Essa tomada de consciência assume importância para a atitude dos pesquisadores, uma vez que contribui à superação de categorizações por demais indiferenciadas entre o autêntico e o aplicado, o que leva em muitos casos a uma desvalorização de encenações e shows do presente. Ela contribui também à auto-consciência e auto-estima dos próprios participantes dessas apresentações à medida que reconhecem que as suas atuações profissionais dão continuidade, ainda que de forma modificada, a práticas por vezes seculares.


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „ Shows da própria cultura como questão de análises culturais. Aproximações históricas em diversos contextos a partir da problemática brasileira: músicos ambulantes em processos coloniais no exemplo de Bali“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/14(2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Bali_Shows_da_propria_cultura.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne