Lembrando Shekhawati em Las Vegas
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 165

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Shekhavati. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright

Shekhavati. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright

Shekhavati. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright







India 2007. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 


N° 165/12 (2017:1)

Shekhavati. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright

Lembrando Shekhawati em Las Vegas
Concepções de sucesso em diferentes contextos
nas suas relações com processos psico-fisiológicos e mentais
- o desejo de riqueza numa "teologia da prosperidade" norte-americana no Brasil e Sabedoria -

2017-1967: 50 anos de Sémantique musicale de Alain Daniélou (1907-1994)
e 10 anos de ciclos de estudos euro-brasileiros na Índia pelo seu centenário

 

Vários aspectos de tendências, movimentos e desenvolvimentos políticos e sociais atuais vêm sendo considerados nos estudos de processos culturais promovidos pela A.B.E..

Essa atenção a processos que se desenrolam no presente corresponde a seus objetivos e impõe-se pelo fato de que com êles se retomam conceitos que pareciam estar ultrapassados, trazendo novamente à tona questões já há muito debatidas.

Um desses aspectos que merece particular consideração é o significado dado à potência financeira, à demonstração de riqueza e à prioridade de interesses econômicos que se manifestou de forma acentuada em campanhas políticas nos Estados Unidos em 2016. (Veja)

Essas manifestações não representam apenas um fenômeno inusitado e extravagante, mas podem ser vistas como expressões de atitudes e concepções resultantes de estruturas e mecanismos internos do homem e de amplos círculos da sociedade, oferecendo-se, assim, como objeto não só de uma história das mentalidades ou de estudos demopsicológicos como também de reflexões filosófico-antropológicas.

Essas análises são de relevância para os estudos de processos relacionados com o Brasil, uma vez que se constata uma ampla difusão de literatura que autores norte-americanos que acentuam a força de uma fixação de mente na riqueza para a sua concretização e que se fundamentam em grande parte em argumentos religiosos de referenciações bíblicas.

Essa difusão de concepções, convicções e configurações psíquico-mentais no Brasil assume no presente dimensões questionáveis e extrapoladoras de limites em muitos sentidos através de práticas religiosas de movimentos e igrejas predominantemente norteamericanas e que se referem a uma "teologia da prosperidade".

Esse conceito evidencia a necessidade de consideração desse desenvolvimento no âmbito dos estudos de processos culturais nas suas relações com aqueles da própria ciência (science studies).

A procura da riqueza - observações e meditações em San Francisco e em Las Vegas

Nos ciclos de estudos promovidos pela A.B.E. na Califórnia, em 2016, região do globo particularmente marcada na sua história da "corrida do ouro" pela procura de riquezas, a atenção foi dirigida nesse sentido a relações, paralelos e diferenças com ideários de edifícios culturais de remotas origens e desenvolvimentos mais recentes em contextos culturais asiáticos.

Uma exposição no Asian Arts Museum de San Francisco (Veja) levou a uma focalização especial de concepções relacionadas com valores como o sucesso, a prosperidade e o bem-estar no Hinduísmo e que parecem contrastar com suposições e imagens por demais genéricas de extremada espiritualidade em desapego a valores exteriores.

A produtividade e mesmo a necessidade de consideração dessas relações, paralelos e diferenças evidenciaram-se em Las Vegas, principal e mais extravagante concretização de mentalidades e estados emocionais dirigidos à riqueza material nas suas múltiplas implicações para todas as esferas da vida e dos conhecimentos.

Já o papel desempenhado pela reimaginação de Veneza em Las Vegas (Veja) traz à mente as relações de um tipo humano que ali se manifesta com aquele associado com o comércio da cidade que foi durante séculos o grande porto das transações com o Oriente.

A riqueza de Veneza celebrada em Las Vegas acentua o fato de ter sido ela por séculos um porto de chegada de navios que traziam mercadorias que, em outras terras, eram trazidas por caravanas comerciais de longínquas regiões. Lembrou-se, neste contexto, do significado do estudo de entrepostos comerciais e de feitorias na história de relações globais na qual Portugal e o Brasil se insere e que já foram alvo de consideração sob diferentes aspectos nos estudos culturais.(Veja)

Retomando reflexões encetadas na Índia, em 2007

Um dos momentos desses trabalhos deu-se com a visita a Shekhawati, na Índia, um território pertencente à esfera de irradiação de Jaipur, no Rajasthan.

A visita a essa região deu-se no âmbito de ciclos de estudos promovidos pela A.B.E. na Índia por motivo do centenário de Alain Danièlou, indólogo, filósofo e musicólogo que exerceu grande influência nos estudos de processos culturais, também naqueles relacionados com o Brasil. (Veja)

Significado das residências/depósitos/pousos de caravanas comerciais de Shekhawati


Shekhawati distingue-se não só pelos palácios de antigos suceranos - dependentes de Jaipur -, mas sim, e sobretudo, pelas casas de comerciantes (Havelis), ao mesmo tempo feitorias, depósitos ou pousadas de caravanas. A atenção é assim voltada em Shekhawati não tanto para expressões culturais e artísticas de cunho aristocrático e erudito, mas sim para aquelas da esfera social de negociantes e intermediários de posses.

É justamente nesse sentido que Shekhawati adquire particular interesse sob a perspectiva dos estudos culturais.

Os Havelis, com as suas construções profusamente ornadas, com afrescos e pinturas murais, oferecem importantes fontes para estudos da vida cultural de comerciantes e viajantes, marcada por intercâmbios e interações na dinâmica das relações Oriente-Ocidente.


Situado nas rotas das caravanas que ligavam regiões distantes como Lahore e Peshawar ao Norte com o Gujarat em direção a Delhi, Shekhawati tornou-se estação e entreposto de toda a região. Por ali passavam as mais diversas mercadorias a serem negociadas, tais como tecidos, ópio, papel, marfim, jóias e metais preciosos, cereais, arroz, frutas sêcas e tabaco, o que explica os modos de vida marcados por bem-estar material e mesmo riqueza evidenciados nas representações visuais.

Eram carananas não só de mercadorias que ali pousavam, como também de animais e de transporte de pessoas, o que exigia medidas de proteção e de seguro, levando à participação de guardas e agentes de segurança e assecuração. Comerciantes, empregados das caravanas, financiadores, asseguradores e homens armados ou militares eram aqueles que procuravam e se demoravam nos Havelis.

A perda de significado da região deu-se com o crescente desenvolvimento dos portos indianos, em particular de Bombay e Calcutá sob a ação britânica no decorrer do século XIX, o que determinou a concentração comercial e econômica em centros portuários cosmopolitas.

Este foi um processo gradativo, e a transformação que se operou é documentada nas pinturas murais de Shekhawati, onde, ao lado de ornamentações vegetais, de divindades e da vida diária e festiva, veem-se europeus, oficiais britânicos que passaaram a atuar na proteção das vias de comércio, e, sobretudo, de evidências do progresso e de novos meios de comunicação como ferrovias e novos veículos. Neste sentido, a linguagem visual dos Havelis surge como significativa para estudos do Colonialismo em geral como tratado em seminários universitários realizados em cooperação com a A.B.E..

Essa transformação - e que levou por fim à perda do significado dos Havelis - foi acompanhada por uma mudança cultural no concernente a concepções e atitudes relativas ao comércio, a bens materiais e ao enriquecimento em geral, com uma predominância crescente do tino comercial britânico. A linguagem visual das representações pictóricas dos Havelis adquire assim particular significado par estudos de estruturas e mecanismos interiores do homem nessa fase de interações e transições entre configurações psíquico-mentais de remotas origens mantida em esfera antes popular da sociedade indiana e aquelas do Ocidente.

As representações pictóricas encontram-se não só nas paredes do pátio recluso onde ficavam os animais da caravana com a riqueza de mercadorias, fechado por grande portão e ladeado pelo edifício, mas sim e sobretudo no espaço destinado à recepção dos comerciantes, o Baithak, onde também se encontravam os depósitos e os cômodos para os membros da caravana. Os espaços mais íntimos, reservados à família, vinculavam-se a outro pátio, interno, com salas de estar e dormitórios em andares superiores.

A relativa simplicidade do material empregado nas construções, em geral de barro, contrastando com a profusão ornamental traz à consciência não só a diferença social que deve ser observada relativamente a expressões culturais de palácios e residências. Ela indica também que a riqueza e o bem-estar representados eram mais imateriais do que propriamente materiais, antes no sentido de criação de uma atmosfera emocional e de sentimentos marcada positivamente por sinais e associações de abundância, prosperidade e alegria que de demonstrações de riqueza física.

Partindo da leitura da linguagem visual dos Havelis

As representações, que se encontram não só nas paredes externas como também nas internas dos Havelis, para além de sua função meramente decorativa, manifestam sentidos que devem ser lidos na coerência de suas relações.

Em primeiro lugar deve-se considerar a predominância de motivos vegetais e, neles, os de frutos. As ramagens que ornamentam paredes externas e internas apresentam representações florais mas culminam com aquelas de frutos. Reconhece-se, aqui, uma linguagem visual que não se limita no seu significado à representação da riqueza trazida pela agricultura. Ela tem sentidos mais profundos e imateriais, conhecidos também da tradição ocidental remontante à Antiguidade.

Âmago dessas concepções é a idéia de que o fruto manifesta uma força ascendente proveniente da semente e que se encontra invisível no interior do tronco da planta na sua fase de crescimento. Trata-se assim de uma manifestação no mundo exterior da força da semente plantada na terra, sendo que a qualidade do fruto é que demonstra a qualidade da semente. Como samen, a força da semente que se manifesta no fruto indica o pai. Tendo sido porém semeado na terra, a mãe, o fruto é seu filho. Essa linguagem simbólica tem dimensões tanto relativamente ao mundo exterior como ao interior do homem, tanto macro-como microcósmicas.

Também na simbólica ocidental - inclusive com fundamentação bíblica - conhece-se o uso da imagem do fruto como filho e da noção de que dos frutos espirituais ou materiais do homem pode-se reconhecer a sua disposição interior.

Pode-se lembrar das elucidações paulinas que distinguem os frutos do homem carnal daqueles do homem espiritual, manifestando-se estes nas suas palavras e atitudes de benignidade e sabedoria, enquanto que o filho da carne evidencia-se no mal, em conflitos, animosidades, violências.

Assim  como o fruto manifesta uma força que provém da semente e que se manteve velada na aparência exterior do tronco e dos ramos durante o crescimento, nele ascendendo interiormente, esta pode ser associada com o fogo como elemento ascensional, mas como um fogo interior, por detrás daquele exterior que se manifesta nas chamas e que queima.

As representações de divindades e da vida doméstica nos Havelis devem ser consideradas nesse contexto.


A imagem de Ganesha lida a partir da simbologia do fruto

A principal imagem divina representada nos Havelis é a de Ganesha, a imagem que sempre chamou a atenção de observadores ocidentais e que, devido ao atributo da tromba ou à sua cabeça de elefante em corpo de menino ou homem, em geral não compreenderam o significado da linguagem visual. Vários documentos atestam a estranheza de europeus confrontados com essa imagem através dos séculos.

Ganesha é filho de Shiva e Parvati, sendo frequentemente com êles representado. Segundo a tradição é filho antes de Parvati, surpreendendo-se o pai ao depará-lo. A narração da substituição da sua cabeça por aquela de um elefante indica que manifesta características do pai, tal como o fruto manifesta a força da semente na linguagem simbólica.


O elefante adquire na linguagem imagológica da Índia sentidos similares àqueles conhecidos da Antiguidade helênica e transmitidos através dos séculos na cultura ocidental: a êle associam-se características como benignidade, prestatividade, amenidade no temperamento, inteligência e capacidade para aprender, moderação, castidade e vida longa.

É compreensível, portanto, que a imagem surja como manifestação da sabedoria e da verdade, como árvore da sabedoria ou da vida, e assim como propiciador de conhecimentos e das ciências. Como "fruto do espírito", diferencia-se do seu irmão, Kartikeya, divindadade de guerras e conflitos.

Segundo diferentes narrativas, seria unido a divindades da inteligência, da espiritualidade e da prosperidade ou casado com Lakshmi, tendo por sua vez como filhos representações do bem-estar (Ksema) e lucro (Labha). Nos seus braços porta como atributos um espinho, com o qual impulsiona os homens no seu caminho por vezes cheios de obstáculos, e um laço, com o qual libera as suas dificulades.

Reflexões em Shekhawati pelo centenário de Alain Danièlou


As reflexões em Shekhawati foram encetadas a partir de perspectivas abertas pelas obras de Alain Danièlou, filósofo, indólogo e musicológico que marcou o desenvolvimento do pensamento desde o início do movimento de estudos de processos culturais iniciado no Brasil nos anos de 1960.

Como considerado em outro contexto, as suas colocações sobre Shiva devem ser vistas a partir de sua experiência musical e dos mecanismos físico-psíquicos e mentais com que a música modal se relaciona. Aquele que vibra em sintonia com a divindade manifestada musicalmengte experimenta um processo físico-psíquico e mental a caminho da superação da predominância do ego: ativação da esfera das emoções e sentimentos, purificação do corpo em controle de seus ímpetos e adormecimento das ambições do intelecto. (Veja)

O homem que vivencia esses mecanismos corresponde à imagem do continuum entre os dois polos, o masculino e o femino de Shiva e Parvati, representado na sua unidade na imagem metade homem e metade mulher de Ardhanarishwara. (Veja)

Ganesha pode ser visto neste sentido como fruto daquele que tem os olhos semicerrados no sentido de não ter-se totalmente distanciado do mundo das aparências, mas que também não dele totalmente se afastado.

A linguagem de imagens que pode ser estudada exemplarmente nas pinturas de Shekhawati indica assim uma compreensão de sucesso, prosperidade e bem-estar diversa daquela do homem voltado à riqueza material e que a demonstra.

Diferentemente desta atitude que é acompanhada ou manifesta uma supremacia do ego, o homem que é interiorizado e que procura um aperfeiçoamento interior tem antes esse predomínio mitigado, mas, ao mesmo tempo, as emoções e os sentimentos movidos.

A riqueza de seus frutos, alcançaa por decisões sábias e comedidas, é acompanhada de begnidade e de paz. É essa atitude que deve encontrar-se no início de todas as transações, assim como Ganesha marca o início de rituais.

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).  "Lembrando Shekhawati em Las Vegas. Concepções de sucesso em diferentes contextos nas suas relações com processos psico-fisiológicos e mentais - o desejo de riqueza numa teologia da prosperidade norte-americana no Brasil e Sabedoria“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 165/12 (2016:06).
http://revista.brasil-europa.eu/165/Riqueza_e_Sabedoria.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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