Estudos creolos e do pós-Apartheid
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 155

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 155/16 (2015:3)



Estudos creolos pós-coloniais do Índico e do pós-Apartheid sul-africano

Sofia de Mary Sibande em exposição em La Réunion
em pontes com o Brasil - lembrando Cecília Meirelles (1901-1964)


De trabalhos promovidos pela A.B.E. em La Réunion
pelos 450 anos do Rio de Janeiro e 350 anos da chegada dos franceses nas Mascarenhas


 
Questões relativas a processos culturais em situações coloniais estiveram no centro das atenções dos estudos realizados no Índico em 2015 devido ao fato de comemorar-se, na França, os 350 anos da chegada de franceses nas Mascarenhas. (Veja)

Esse debate foi conduzido sob a perspectiva da valorização do creolo e de expressões musicais creolas que se processa nas últimas décadas em países dessa esfera do globo e que adquire na atualidade dimensões globais com a internacionalização do Instituto Creolo das Seychelles em iniciativa de La Réunion, esta território francês do ultramar. (Veja)

Nos diálogos promovidos pela Academia Brasil-Europa, salientou-se que os trabalhos desenvolvidos no Norte do Brasil, em particular na região o Oiapoque no decorrer de pesquisas realizadas nos anos 80 e 90 do século XX, chamaram a atenção ao fato de que não a língua, mas sim processos culturais devem estar primordialmente no centro das atenções, e portanto não a línguistica e a filologia, mas sim os estudos culturais devem ser considerados como área condutora de estudos.

Dando continuidade a debates realizados em cursos e seminários universitários realizados em cooperação com a A.B.E., considerou-se assim a questão creola sob o aspecto mais amplo da identidade, mentalidade e psique de europeus já nascidos em regiões coloniais e seus descenentes, brancos ou frutos de miscigenações, de expressões denotadoras de consciência de nascimento e orgulho da terra e da situação material alcançada, de auto-afirmação perante europeus
continentais.

Esss impulsos explicariam um desejo de comprovação de terem alcançado o mesmo nível de saber, modos de vida e expressões artísticas da Europa mesmo sem terem saído das regiões extra-européias, o que torna compreensível o alto grau de erudição, de refinamento de trajes, modos de vida individual e em sociedade, assim como as expressões artísticas segundo correntes avançadas ou de moda nos grandes centros da Europa que podem ser constatados em vários contextos coloniais. (Veja)

Tratar-se-ia aqui também de uma síndrome de demonstração de conhecimentos, do estar-se informado e aptidões analisável como resultado de processos culturais e que explicaria também exageros em modos de vida e formas de expressão que foram sentidas como singulares, criticadas como pernósticas, arrogantes, vulgares, caricaturais e mesmo infantís ou ridículas por viajantes estrangeiros do passado.

Dimensões do problema: „creolos de coração“, mulheres e africanos libertos

Essa problemática diz respeito não apenas aos creolos - compreendidos como europeus e seus descendentes nascidos em regiões coloniais e colonizadas - mas também àqueles „creolos de coração“, ou seja, europeus que, se fixaram e se integraram na sociedade colonial, adquirindo uma consciência e visão correspondente àquelas dos creolos nela nascidos. Este foi o caso sobretudo de mulheres européias que se casaram com creolos, como estudado no caso da pintora Adèle Ferrand em La Réunion. (Veja)

Em princípio, tratar-se-ia de uma problemática que diz respeito ao homem livre e de posses, capaz de, nas situações coloniais, ter tempo livre para seguir com atenção publicações européias, impulsos recebidos por estrangeiros visitantes e cultivar a poesia, a música e as artes.

Nas Seychelles, a atenção dirigiu-se porém sobretudo à questão da integração de africanos libertados da escravidão pelos ingleses que atacavam navios negreiros árabes no Índico e que, trazidos para aquelas ilhas, constituiram uma „nova população“. (Veja)

Nessa „capital do mundo creolo“, os africanos libertos integraram-se na sociedade livre, já então sob o domínio colonial britânico, processo fomentado pela missão cristã e pelo ensino, creolizando-se na língua, em modos de vida, trajes e na prática de música e dança.

A atenção primordialmente dirigida a processos leva, assim, a uma ampliação do campo de estudos, ultrapassando a perspectiva francocêntrica dos estudos creolos. Surge como tarefa da pesquisa culturológica mais avançada considerar as similaridades de mecanismos e as diferenças nas várias situações coloniais - no caso de referencial francês ou britânico - assim como as suas interações.

Essa tarefa foi tratada no âmbito dos estudos promovidos pela A.B.E. no museu Léon-Dierx em Saint-Dénis, o mais importante museu de arte e centro de estudos de artes visuais do Índico.

As obras expostas nesse museu motivam e permitem a discussão de diferentes aspectos das relações entre as artes e os processos criolos no seu desenvolvimento histórico, nas suas interações regionais, nos seus paralelos com outras esferas do globo, no caso em especial com o Brasil e nas suas irradiações e consequências na Europa.

Sophie. Exposição de Mary Sibande no museu de La Réunion

Uma exposição temporária apresentada nas instalações desse museu por ocasião dos estudos promovidos pela A.B.E. no corrente ano dirigiu a atenção à atualidade desse debate no âmbito de questões relacionadas com a existência e superação de barreiras raciais e étnicas, discriminações e compreensão de necessidades, ímpetos e expressões de grupos populacionais menos privilegiados ou subalternos. Tratou-se de uma exposição, nesse centro de artes visuais do Índico, de quadros e de instalações de grandes dimensões relacionados com processos culturais da África do Sul da artista Mary Sibande.

Essas obras giram ao redor da figura de Sophie, criada pela artista em 2007 e que surge como uma representação do seu segundo eu, alter ego, ao mesmo tempo sua amiga e segunda identidade, o que surge como significativo para o tratamento de questões relativas a problemas psicológicos em processos culturais. O próprio nome escolhido para a figura pela artista revela relações com situações mentais e psicológicas da mulher em situações subalternas, pois foi inspirado no uso do termo Sofia para a denominação de empregadas domésticas negras sul-africanas por parte de seus patrões brancos.

Nessa sua figura, a artista oferece uma representação de processos por ela própria vivenciados e sentidos, pois provém de um ambiente familiar que contou através de gerações com várias empregadas domésticas. Tendo sido a sua mãe e avó serviçais, foi ela a primeira que seguiu estudos superiores. Pretendendo inicialmente ser historiadora, interrompeu a sua formação para dedicar-se à arte. Ela representaria exemplarmente as mulheres jovens sul-africanas nascidas nos anos 80 do século XX e que experimentaram a liberdade após a supressão do Apartheid, abrindo horizontes e perspectivas para o próprio desenvolvimento e condução de vida.

As interações de trajes de empregada doméstica - no azul do uniforme de serviçal - e avental branco e a desejada saia monumental do estilo aristocrático do passado vitoriano sugere esse complexo mental e psíquico de uma princesa presa em teia como um pássaro que dela procura libertar-se. Essas interações entre roupagens de serviçal e de nobre madame revelam ainda uma maior complexidade na medida em que incluem também peitorais e amplos cordões multicolores e turbantes que sugerem antigos elos etno-culturais com as raízes africanas de uma Sofia que resplandece quase que como heroína de um mundo de sonhos. No seu mundo imaginário, a Sofia adquire múltiplos caracteres, não só de rainha e princesa que é conduzida a um baile, mas também como cavaleira, general pronto a alcançar vitórias, sacerdotiza que concede bençãos ou de regente.

A transformabilidade do processo cultural representado por Sofia - e que reflete aquele da artista e da sua geração - é expresso por obras mais recentes, criadas após 2013. Essas indicam o início de uma nova fase da vida, a libertação dos elos com o passado serviçal de suas familiares domésticas, concentrando-se nos seus anelos pessoais, suas inquietudes e ambições.

Essa nova fase da mulher dá origem a uma Sofia que vive uma mutação de identidade, que pode ser interpretada talvez como a descoberta, aceitação ou  „sair para fora“ do seu ser mais íntimo e seus desejos, ato simbolizado pela côr lilás ou violeta e suas associações ao mesmo tempo de nobilidade, magia e tristeza. Essas associações explicam-se em parte pelo fato de ser o violeta a cor utilizada à época do Apartheid em atos de violência contra manifestantes, para a dispersão de demonstrantes e seu aprisionamento. É uma fase assim marcada por ansiedades e angústias da nova situação ousada, da passagem do conhecido ao desconhecido.

Nessas obras mais recentes, o observador depara-se com o complexo diálogo ou confronto das duas Sofias.

Pontes com o Brasil - lembrando Cecília Meireles

Na apreciação da exposição de suas obras no âmbito dos estudos euro-brasileiros, não poderia deixar de estabelecer-se elos com a situação, trajes e modos de expressão de mulheres de ascendência africana no Brasil. Por demais similares surgem as representações de Sofia com as imagens conhecidas de tradições brasileiras, de cultos religiosos, de cortejos e danças.

Lembrou-se, sobretudo, da representação dessas figuras na arte, utilizando-se como ponto de partida para as reflexões os desenhos e aquarelas de Cecília Meireles (1901-1964) (Batuque, Samba, and Macumba: Drawings of Gestures and Rhythm 1926-1934, Introduction by Lélia Gontijo Soares, Rio de Janeiro: FUNARTE /National Institute of Folklore, 1983).

Na introdução a essa obra, lembra-se de texto do antropólogo Roberto da Matta:

„The appropriate outfit for Carnaval in Brazil is called the fantasia (literally ‚fantasy‘), which has a double meaning, since it refers to both the dreams and illusions people put into Carnaval and the clothing itself. A Carnaval fantasia could not be termed a ‚disguise‘. since it actually reveals much more than it hides. Since it representats a hidden desire, a fantasia acts as a bridge between the person who resses up in it, the role he plays in life, and the role he would like to play. As a consequence, Carnaval fantasias create a field for social encounter, mediation, and social polissemy, since in spite of the incompatibility between the roles that are graphically represented in the outfits, everyone has gotten dressed up to ‚have fun‘. A poor person symbolically turns into a nobleman because he cannot or will not give up the chance for a moment of social compensation provided by Carnaval.“ (op.cit. 12)

A carnavalização como mecanismo colonial inerente ao edifício cultural

Essa referência ao carnaval no contexto do debate relativo a processos culturais em situações marcadas pela história colonial traz á luz a necessidade de prosseguimento e aprofundamento das reflexões. O conceito e a celebração do carnaval necessitam ser considerados a partir de seus sentidos relacionados com o ano natural do hemisfério norte, já presentes na antiga mitologia de antiga proveniência e suas referenciações bíblicas no processo de cristianização.

Nesse sentido, surge como inserido na estrutura e nos mecanismos do edifício de concepções e imagens geocêntricas e antropocêntricas do homem. A sua transplantação para regiões tropicais significaram uma defasagem de sentidos relativamente ao observado da realidade percebida pelos sentidos e vivenciada no mundo natural, o que leva a uma disparidade entre o real e o virtual, a uma intensidade maior da vida em mundo imaginário, um fundamental campo de tensões que vem sendo considerado sob diferentes aspectos em pesquisas, cursos e simpósios promovidos pela A.B.E..

A ação colonizadora e missionária européia, relacionando expressões culturais do homem do hemisfério sul com representações do homem homem terreno ou carnal do hemisfério norte, pode ser analisada como um ato de carnavalização, um mecanismo que passou a ser internalizado.

Somente uma relativação do próprio edifício de concepções e imagens geo-e antropocêntricas transplantado através da superação do abismo que separa a cultura dos conhecimentos científico-naturais promete permitir a superação de dicotomias e síndromes, de problemas mentais e psíquicos que parecem marcar a problemática cultural de regiões colonizadas dos trópicos.

As análises e reflexões deverão ter prosseguimento.

De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „ Estudos creolos pós-coloniais do Índico e do pós-Apartheid sul-africano. Sofia de Mary Sibande em exposição em La Réunion em pontes com o Brasil - lembrando Cecília Meirelles (1901-1964)“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 155/16 (2015:03). http://revista.brasil-europa.eu/155/Estudos_do_pos-Apartheid.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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