Violência e guerra no edifício cultural

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/9 (2015:6)





Guerra e violência no sistema de concepções e imagens
em relações Ocidente/Oriente
- embriaguez de sangue, o matar e o se matar -




 
Praia Vermelha. Rio de Janeiro. Foto A.A.Bispo 2007

Praia Vermelha. Rio de Janeiro. Foto A.A.Bispo 2007
No término do ano marcado pela passagem dos 450 anos do Rio de Janeiro, no qual foram sobretudo tratados sob vários aspectos a extraordinária beleza de sua paisagem e a metamorfose urbana que procurou torná-la à altura dessas qualidades naturais, marcando a sua fisionomia, (Veja) também memórias de guerras e sobretudo a violência que perturba hoje essa imagem não podem deixar de ser consideradas.


Na situação internacional do presente, marcada por guerras, conflitos religiosos com atos de atrocidade que até há poucos anos teriam sido considerados como impensáveis, reflexões sobre a questão da violência e da guerra são de grave atualidade.


A aterrorização de cidades européias, a guerra de dimensões internacionais na Síria, no Iraque e em outras regiões do mundo, trazem a guerra de novo à consciência também dos estudos culturais a realidade da violência e da guerra: e isso em anos nos quais se rememora cem anos da hecatombe da Primeira Guerra e a derrocada da antiga ordem européia. (Veja)


Praia Vermelha. Rio de Janeiro. Foto A.A.Bispo 2007
Nos estudos de imagens e da recepção cultural nas suas interações e reciprocidades, que levaram em 1982 ao primeiro Forum euro-brasileiro, a atenção não foi dirigida somente às expressões laudatórias de viajantes extasiados e que, no caso do Rio de Janeiro, adquire feições hínicas. (Veja)


Uma leitura atenta de registros de visitantes de diferentes épocas revela que nelas não se encontram apenas observações sentidas como positivas e que são lidas com agrado por olhos brasileiros.


O desagrado de susceptibilidades feridas já levou há muito a comentários ferinos da objetividade e mesmo da idoneidade e imparcialidade de visitantes europeus que publicaram impressões negativas sobre o Brasil, por exemplo no caso de Ida Pfeiffer (1797-1858). (Veja)


Problemas sociais, violência e criminalidade, de gangs que se guerreiam e de combates com forças policiais marcam hoje de forma muito mais intensa e determinante do que no passado a imagem não só do Rio de Janeiro e mesmo do Brasil em geral, não podendo deixar de ser considerados com atenção.


Estes problemas devem e são de fato considerados sob diferentes perspectivas, econômicas, políticas, administrativas, policiais, sociais, humanas em geral e ambientais. Nos estudos culturais, as reflexões tendem a dirigir-se sobretudo às implicações dos graves desenvolvimentos e situações sociais e humanas na história e no presente, tematizando-as na literatura e em filmes. A violência também pode ser tematizada na ação do homem relativamente à natureza, à destruição do meio ambiente.


Reflexões mais aprofundadas levantam porém a questão de condicionamentos culturais que possam elucidar possíveis disposições à violência ou atitudes em si de violência, nem sempre conscientes e refletidas.


Lutas e combates na linguagem visual em encenações lúdicas tradicionais


Muitas são as expressões lúdicas tradicionais caracterizadas por combates e lutas, tais quais jogos-danças de espadas e paus nas suas diversas manifestações e já conhecidas da tradição européia, de apresentações de lutas de exércitos contrários, de cortejos que celebram a vitória do partido vencedor sobre o vencido subjugado.


De como expressões tradicionais de luta na seriedade do lúdico, adquirindo dimensões esportivas, co-determinam a imagem do Brasil e a sua projeção internacional, dá testemunho a capoeira no caminho de sua difusão quase que global.


A intensidade com que a representação de guerras, lutas, combates de forma explicita ou implícita na competição aparentemente pacífica entre „cordões“ em pastorís ou outras expressões, apenas pode ser explicada considerando a sua inserção em sistema de imagens e concepções marcado por tensões, relações de oposições e lutas. 


A atenção dirige-se, assim, à análise de seus fundamentos imagológicos e dos mecanismos de tensão e violência no edifício cultural transmitido ao Novo Mundo com a colonização e missionação, e que é de remotas origens.


Relações Cultura/Natureza e a tradição filosófico-natural: tensão e luta de elementos


No exemplo das muitas expressões culturais que claramente indicam relações com o ciclo do ano natural do hemisfério norte transposto também às regiões sub-equatoriais com a expansão européia, também aquelas que menos explicitamente revelam tais elos necessitam ser analisadas sob a perspectiva das relações Cultura/Natureza nas suas antigas bases filosófico-naturais.


É o reconhecimento desses mecanismos condicionadores que promete favorecer esclarecimentos, atitudes esclarecidas e distanciadas em auto-análises e, através do distanciamento, da relativação da própria vigência do edifício cultural consuetudinário.


Em colóquio internacional realizado no Centro Cultural São Paulo por ocasião dos 450 anos de São Paulo, em 2004, tematizou-se o significado de estudos do sistema de concepções e imagens ainda particularmente capaz de ser observado na linguagem visual de expressões culturais no Brasil para a compreensão de mecanismos que podem elucidar tensões e conflitos em contextos mais abrangentes de dimensões mundiais.


Este é o caso das encenações de lutas entre „cristãos e mouros“ no repertório de folguedos do ciclo do ano religioso e que já foram nos estudos euro-brasileiros desenvolvidos nas últimas décadas analisados nos seus fundamentos no Velho Testamento e, no Novo, entre os frutos do espírito e o da carne.


Já essa última formulação paulina indica a necessidade de um tratamento do tema não sob o ponto de vista superficial de uma leitura literal da Bíblia, mas sim nas suas relações com concepções do homem, ou seja, antropológico-culturais. Neste sentido, o complexo de questões relativos a lutas, combates e à violência vêm sendo considerados há décadas na corrente de pensamento e de preocupações em que se insere o programa de estudos euro-brasileiros iniciado na Alemanha em 1974/75.


Tensões e lutas no interior do homem - revendo correntes da Psicologia Cultural


O direcionamento da atenção a processos não implica apenas na consideração de expressões de lutas e combates em processos históricos de expansão colonial, de imigrações, de recepção ou difusão. Exige também a consideração de processos internos ao homem e, assim, aproximações antes filosófico-psicológicas e demopsicológicas em estreitas relações com a observação empírica e a vivência participativa do pesquisador.


Neste sentido, os estudos euro-brasileiros inseriram-se em longa tradição de preocupações com a questão da violência no Brasil, na América Latina e no homem em geral. Essa tradição baseou-se sobretudo na recepção do pensamento do conde Hermann Keyserling (1880-1946) em círculos de língua alemã de São Paulo, sendo o seu principal representante Martin Braunwieser (1901-1991). (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932).


Essa preocupação pela violência no programa de estudos euro-brasileiros iniciado na Europa em 1974/75 teve sempre dimensões abrangentes, incluindo as relações entre tensões e conflitos sob o aspecto psicológico-cultural e a violência na sociedade e na cultural, do homem com a natureza e, em particular com a vida em geral.


Essa preocupação foi marcada sempre pelo impacto emocional desesperador da vivência das atrocidades cometidas contra animais e da destruição natural, procurando reconhecer possíveis coadunações entre a „luta pela sobrevivência“ do pensamento científico-natural da evolução e o sistema cultural milenar que condiciona o homem.


Não só violência e gangs - o Brasil como país de churrasco no Exterior


A imagem do Brasil passa a ser cada vez mais marcada pelo churrasco, por churrascarias que se encontram por todo o mundo e por um propagado carnivorismo em reclames que, nessa intensidade, era desconhecido há décadas atrás.


O Brasil assume assim cada vez mais uma questionável posição nos esforços globais de intensificação e ampliação de processos humanizadores em superação de um antropocentrismo na ética, uma exigência perante as atrocidades que se cometem contra a vida animal.


Torna-se difícil assim dar prosseguimento adequado a empenhos éticos de respeito à vida em relação ao Brasil que se referenciam segundo Albert Schweitzer (1875-1965) (Veja) Este movimento e respeito à vida é, porém, de grande atualidade, nele atuando muitas personalidades e instituições, salientando-se entre outros o amplo trabalho de esclarecimento e humanizador da Albert Schweitzer Stiftung.


O problema reconhecido e tratado já nas meditações de Keyserling diz respeito a questões filosóficas de amplas dimensões, uma vez que aqui se defrontam em interrelações segundo o filósofo duas esferas ou ordens: aquela dos que agem friamente em cálculo, de homens de empresas, de negócios, do comércio e da economia,  e aquela de emocional, de valores de sentimentos, de coração ou alma. Essas duas esferas necessitam, segundo o filósofo, permanecer na dinâmica de um todo, dele não se separando, guiadas pelos seus respectivos valores máximos.


Ter-se-ia aqui, repetindo, na tradição das Meditações Sulamericanas um confronto entre duas esferas, uma de ordem imaterial - de cálculo de interesses econômicos e empresariais - e outra emocional, em outras palavras de espírito e alma, sendo que a autonomia da primeira fechando os olhos à segunda leva a um atrofiamento da esfera dos sentimentos, com resultados negativos para os próprios homens e para as relações humanas, como explanado por Keyserling há décadas. O progresso humanizador não pode ser guiado apenas por razões de cálculos e interesses econômicos, mas exige a ordem emocional ou alma - valendo o mesmo reciprocamente - e isso segundo os máximos valores das respectivas esferas. (Veja)


Oriente/Ocidente. Partindo do gaúcho: vida dos pampas segundo R. Güiraldes (1886-1927)


Nas suas meditações, o viajante e filósofo alemão trata da „guerra“ no terceiro capítulo de sua obra, fazendo-o preceder, no segundo capítulo, pela consideração da insegurança, da fome e do mêdo originais. (op.cit. 59-78)


O ponto de partida de suas meditações sobre a guerra é apresentado como tendo sido empírico: o da sua observação participante na vida dos pampas.


O texto revela a influência do romance Don Segundo Sombra (1926) do escritor argentino Ricardo Güiraldes, onde a vida dos gaúchos é tratada.


Assim como Keyserling, R. Güiraldes, também de família tradicional, possuia conhecimentos de várias regiões e culturas do globo, também do Oriente. Como Keyserling, Güiraldes estava próximo, nos anos 20, do espiritualismo que procurava, em amplos círculos de pensadores europeus, antes e depois da Primeira Guerra, uma renovação da cultura através de uma reaproximação e uma frutificação mútua entre o pensamento do Ocidente e a sabedoria do Oriente.


Já em 1913 publicara Keyserling, com bases em conferências realizadas no International Institute of China, em Schanghai, o seu opúsculo sobre as relações internas entre os problemas culturais do Oriente e do Ocidente como uma mensagem aos povos do Oriente. (Hermann Graf Keyserling, Über die Beziehung zwischen en Kulturproblemen des Orients und des Okzidentes: Eine Botschaft an ie Völker des Ostens, Jena: Eugen Diederichs, 1913).


Essas reflexões foram reapresentadas, de forma desenvolvida, no seu „Diário de Viagem de um Filósofo“, publicado apenas após a Guerra, em 1918. (Graf Hermann Keyserling, Das Reisetagebuch eines Philosophen, 2 vols, 7a. ed. Darmstadt: Otto Reichl, 1923)


Nas suas palavras, o Oriente teria muito o que aprender do Ocidente, uma vez que resultados das ciências, da técnica, de instituições humanitárias e sócio-econômicas seriam supra-nacionais, devendo ser por todos utilizados.


O Ocidente teria também muito o que
aprender do Oriente quanto à cultura interior, a metódica da educação de si própria, do auto-controle e da arte da interiorização.


Entretanto, a tarefa se colocava diferentemente de ambos os lados e ambas passavam por uma grande crise.


Para o Ocidente, era uma questão de fundamentos. Este encontrava-se na situação paradoxal de lançar bases para um edifício já existente que, apesar de corresponder a um plano, este seria hoje desconhecido.


Para o Oriente, tratar-se-ia não de lançar fundamentos, mas de construir um edifício melhor sobre os mesmos. (op.cit. 26-28)


Keyserling inicia o seu texto nas Meditações Sulamericanas relatando a sua estadia na estância na qual Ricardo Güiraldes escreveu o seu Don Segundo Sombra, e onde conheceu Don Segundo pessoalmente, então já em avançada idade.


Em festa oferecida a Keyserling pela família Güiraldes, com música e dança, o filósofo conheceu o velho Don Segundo, vendo-o executar passos e movimentos típicos da vida dos campos, admiráveis na habilidade refinada de gestos e de expressões.


Keyserling relata então, como essa atmosfera marcada por cultivado tradicionalismo deu lugar a cenas violentas, ainda que, nos gestos e ações, denotassem habilidade e mesmo refinamento.


Foram agarrados bois com extrema habilidade, degolados, cortados em pedaços e a carne e os órgãos internos grelhados e devorados de forma que lhe ltrouxe à memória os antigos comensais descritos por Homero.


Por todo lado corria sangue, como se de todo o pampa jorrassem fontes de sangue da terra. A melancolia carregada e depressiva das planícies infindas era acentuada pelos corvos e urubús que sobrevoavam o local de chacina.


Os gaúchos, por um lado de sentimentos tão refinados, tão sentimentais, sempre silenciosos, sempre bondosos, eram, por outro lado, essencialmente carniceiros, sempre prontos a tirar a sua faca afiada para degolar um animal agarrado à sorte. Estavam sempre prontos em qualquer oportunidade para deixar o sangue correr.


O tipo do gaúcho era, para êle, fundamentalmente marcado pelo ato de degolar. A partir dessa constatação, Keyserling enceta reflexões sobre relações aparentemente contraditórias entre suavidade, doçura, delicadeza e cultura de um lado e o matar de outro.


Sentimentalidade e prontidão para degolar sem pêso de consciência


Vivenciando a paradoxal concomitância entre uma extrema sentimentalidade expressa na música e na dança e a falta de sentimentos e comiseração para com os animais, assim como a disposição para o matar e o carnivorismo gaúcho, Keyserling impressionou-se sobretudo pelo fato dos homens não sentirem o mais leve pêso de consciência pelo fato de degolarem e agirem com tal violência nessas carnificinas e orgias de sangue.


Ninguém levantava a questão do julgamento moral do ato de matar e da configuração interior do homem sempre disposto a degolar criaturas, deixar o sangue correr, retalhar e devorar a carne.


Nessa falta de peso de consciência e escrúpulos de sentimentos e emoções, os carniceiros dos pampas, sem consciência de culpa, eram por assim dizer inocentes, pois não indagavam e não consideravam o matar à luz da consciência.


Keyserling viu nesse fato mais um indício da vigência na América do Sul de uma esfera primitiva ou primordial da vida, anterior ao despertar da luz da consciência. Tratava-se, assim, de uma queda irrefletida ou inconsciente em situação anterior ao surgir da luz, e, portanto, de trevas. Essas trevas se encontram nas profundezas do homem e na proto-consciência coletiva.


Raízes de impulsos do matar nas trevas das esferas mais baixas do homem


Dessas reflexões, Keyserling tira conclusões relativas ao desenvolvimento da humanidade e da cultura. Nesse mundo ínfimo do homem, faltaria a distinção clara entre o matar e morrer.


O primeiro motivo do matar não tinha sido um daqueles sempre lembrados da necessidade do caçar para comer ou do guerrear.


Tratava-se, segundo êle, do impulso do matar por matar em êxtase de sangue. A vivência dessa esfera tenebrosa nas mais baixas profundezas do homem podia ser feita na guerra, quando o soldado, no embate, deixa de lado todos os preceitos de consciência, entregando-se ao matar cego, caindo quase que numa embriaguez de sangue, mas também pronto a auto-sacrificar-se.


Esse fato levava Keyserling a ver uma relação entre o matar pelo matar com o sacrifício. O motivo primordial do matar por matar nas suas relações com o sacrifício e auto-sacrifício teria antecedido àquele da luta contra inimigos ou da necessidade de comer. A luta teria surgido apenas quando o aspecto do jôgo passou a ter primado na consciência, o que, porém, já pressupõe capacidade de criação de imagens e, assim intelecto.


O primeiro motivo do matar na situação tenebrosa na qual despertou a luz da consciência seria aquela do delírio de sangue. Nessas situações de trevas, de cegueira e estupidez originais, nas quais estam enraizados esses impulsos da violência e do matar, não havia nada de lúdico. Nesse estado reinaria apenas as trevas da seriedade.


Nada seria mais falso para Keyserling do que cosmogonias que partem de situações paradisíacas que são próprias da imaginação infantil. No início não teria estado nenhum paraíso, mas sim o mundo subterrâneo, tenebroso, infernal. Foi nessas baixezas negras que despertou, ainda fracamente, a luz da consciência.


Por isso, a cegueira é característica desse estágio primitivo ao qual o homem decai. Assim, a morte do indefeso - homem ou animal - precede a luta clara, de cara a cara, em igualdade de condições. O assassínio por detrás - tão comum na América do Sul segundo o filósofo - precederia o combate leal, uma vez que no assassinato por detrás não se vê o mal. A luta de combate teria tido início quando o atacado passou a se defender ou quando o homem foi atacado por outros. Assim, a caça, que até hoje entusiasma homens que mantém características de animais de rapina, seria essencialmente morte de indefesos por detrás, e portanto, covarde. O mesmo poderia ser observado nas matanças dos pampas sul-americanos: covardia.


Com essas reflexões, Keyserling procurava explicar a razão pela qual o matar não estaria vinculado de início com idéias de mal.  O primeiro matar do homem não estaria na sua proto-consciência sob o signo da utilidade, seja do consumo da carne como alimentação ou da rapinagem. Seria puro e primitiva êxtase de sangue, matar por matar. É a seguir que se desencadeia um processo que leva à guerra.


Lembrando Caim, diz que o seu ato de matar Abel fêz despontar a vontade de sangue, sendo os seus descendentes guerreiros. Assim como Caim se sentiu amaldiçoado após ter morto um homem, ou seja, sentiu-se como um infeliz, também o sulamericano que mataria um homem não se compreenderia como assassino, mas como um „desgraçado“.


Quando a questão do exterminar um ser por um motivo utilitário passou a se colocar, como no caso das lutas pelo poder, o filho passou a assassinar o pai, o irmão o irmão.


Raízes da vontade de matar nas trevas da vida primordial de gana


O matar por matar, a vontade de êxtase de sangue seria própria de uma vida primordial nas suas esferas mais baixas e primitivas, o que Keyserling trata sob a designação de esfera da gana. (Veja) O extermínio daquele que coloca obstáculos a essa esfera da vida seria sentido como óbvio pelo subconsciente, havendo aqui a gana de matar.


Mencionando o Brasil, Keyserling lembra a frequência de assassinatos pelas costas, não de frente. Também menciona a opinião de uma mulher que mostrava compreensão pelo extermínio de alguém que surgisse como um estôrvo na vida, a gana de „enforcar“ aquele que surgisse como empecilho na realização de seus principais ímpetos, que seriam o de ter e possuir, nascidos da insegurança, da fome original que quer monopólio e do mêdo covarde. (Veja) A vida primordial nessas trevas é má, mãe do mal.


Aquele que pensa que só êle existe e quer monopólio e dominar, torna-se feliz com o extermínio daquele que põe em risco a sua situação de preponderância e poder. A hipertrofia do seu ego faz com que este, o pneuma dentro de si, se torne passivo, preso nas prisões de trevas do seu interior. (Veja)


Segundo as Meditações, esses fundamentos sub-terrâneos no homem permanecem vigentes no mundo. As energias que se encontram em estado potencial e se acumulam, se não forem desativadas pela luz da consciência, explodem de forma terrível como na Primeira Guerra Mundial ou na Revolução Russa de 1917 vivenciadas por Keyserling.


Tanto mais o homem pensa ser do espírito aquilo que não é do espírito, tanto piores são as imagens, a mentira e tanto mais negras são as consequências. Torna-se necessário um esclarecimento a respeito da existência dessa esfera tenebrosa nas profundidades do interior do homem como algo que não é do espírito, baixezas de uma esfera orgânico-psíquica, da vida primordial má nas profundezas interiores o homem.


Quando os combatentes tornam-se claros da existência do ódio e da sanguinolência no ínfimo dos seus seres, esclarecem-se a respeito desses tétricos impulsos e do trágico da existência, podendo-se então encontrar um caminho para um desenvolvimento humanizador.


Relações com a antiga mitologia nos estudos euro-brasileiros


Na tentativa de melhor compreender essas difíceis meditações de Keyserling, o primeiro caminho, em meados da década de 70, foi o de considerar as suas próprias menções à antiga mitologia greco-romana. Keyserling refere-se explicitamente a Kronos/Saturno e à luta de titães.


Considerando-se que a tradição mitológica fala que Saturno, filho de Gaia ou Gê foi por esta enviado a cortar o órgão que vinculava Uranos e sua mãe, cujo sangue nela caiu, assumindo então a soberania no lugar de seu pai, compreende-se as explanações de Keyserling referentes ao extermínio daquele que coloca obstáculos à vida. Esse assassínio do pai por Kronos/Saturno foi a mandato da mãe, imagem da vida primordial má, repleta de criaturas monstruosas do Tártaro.


O fato mitológico de que Kronos/Saturno devorava os seus próprios filhos torna compreensivel a menção de Keyserling de uma „fome primordial“ de domínio que o leva a assumir o trono do seu pai. O desenrolar da narrativa mitológica leva à luga e à guerra, em particular àquela após o nascimento de Zeus/Júpiter, iniciando uma nova fase, a da geração olímpica.


As considerações de Keyserling indicam que êle parte desse momento do nascimento de Zeus na terra, correspondendo, na interpretação antropológica do filósofo como a do despontar da luz da consciência no interior do homem.


Neste sentido, as decorrências referentes a Gaia ou Gê, banida nas profundidades com o poder assumido por Kronos/Saturno e Rhea/Magna Mater correspondem àquelas da „mulher-gana“ das Meditações. Estas, porém, partindo da nova geração inaugurada por Júpiter, dizem respeito À nova fase, àquela de Demeter ou Da, a terra na nova ordem.


O homem que deixa-se reger por esta vida original de gana, assumindo de forma pouco inteligente as suas normas, passa a esforçar-se de forma insana a satisfazer os seus desejos de posse. Esta, terminada uma fase de sua „melodia de vida“, passa a outro, o seu rival. Assim o papel desempenhado por Uranos e Kronos/Saturno nas decorrências precedentes e apenas lembradas na memoria de origens, passaria a ser desempenhado por Hephaistos/Vulcano, no seu casamento com Afrodite/Venus, passando esta a seguir a Ares/Marte. (Veja)


Compreensivelmente, Keyserling emprega o conceito de vulcão para caracterizar o submundo do homem em caso de guerra. Esse mundo subterrâneo transforma-se em vulcão que não pode ser retirado da natureza humana, à qual pertence e que não pode ser esquecido e deixado sem controle. Dai se explicaria o fato de um assassino de massas poder tornar-se um santo por acreditar que é Deus que manda que mate os seus inimigos. Tão logo, porém, que o consciente quer justificar o que não é do espírito com argumentos espirituais, o homem se transforma num demônio.


Keyserling localiza a guerra na esfera terrena, não na espiritual ou moral, sendo aquela a que vive o seu impulso cego na violência do combate. A guerra pertence segundo as Meditações a uma outra esfera daquela da vida em tempo de paz. Ela teria as suas raízes no mundo cego subterrâneo. Uma particular atenção dá os filósofos às relações entre o auxiliar de guerra, o soldado de frente, aquele que funde e prepara as armas e comandante, o guerreiro em si - Hephaistos/Vulcano e Ares/Marte.


Na guerra - como na Primeira Guerra Mundial - a humanidade toma consciência que não é idealismo, coragem, disciplina, camaradagem e auto-sacrifícios os motores, mas sim assassínio, mêdo, horror, roubo, mentira, destruição e violentação. A falta de sentido da guerra seria encarnada não só pelos comandantes, mas pelo soldado de frente, que morre anônimo. Os monumentos ao soldado desconhecido lembrariam aqueles que mataram e morreram em anonimato.


Na Guerra, o mundo subterrâneo mau possui uma existência que é vista como sendo de direito. Os seus últimos motivos são a fome primordial e o impulso de vingança. Se esses demônios sempre vivos não estivessem na mais inferior profudidade do homem, não poderia haver guerras. 


Nas Meditações, dá-se atenção também a uma questão paradoxal observada em situações de guerra. O guerreiro, que em todo momento é capaz de praticar e sofrer horrores, é o homem mais alegre e sem-cabeça por excelência. A mente não-consciente reflete a Guerra não como é na sua realidade. Em primeiro lugar, desperta a ideia de disciplina incondicional.  O soldado é capaz de sacrificar-se pelo comandante, morre como soldado anônimo, é assim tão pouco inteligente como Hephaistos/Vulcano da mitologia.


Segundo Keyserling, o que luta, no ardor da luta, assume as normas da esfera do subterrâneo, que é cega e vê com indiferença o matar e o morrer. O assumir a norma do subterrâneo é vivenciada como algo libertador, pois todos os controles são abandonados que, do mundo superior espiritual impede que as forças subterrâneas atuem.


Relações com o relato bíblico da Criação e com a teologia nos estudos euro-brasileiros


As colocações das Meditações e os estudos da Filosofia da Natureza e da antiga mitologia foram desenvolvidos desde o início do programa euro-brasileiro em 1974/75 em cooperações com pesquisadores e centros de pesquisa de relações Antiguidade/Cristianismo.  A temática da guerra foi tratada não apenas nas imagens de soldados e guerreiros da hagiografia, como por exemplo Santo Antonio (Veja) e São Jorge. (Veja)  Sob os impulsos das colocações das Meditações, atentou-se a estudos de fundamentos de situações de violência e guerras relatadas nas Escrituras.


Kayserling parte nas suas interpretações do relato do terceiro dia da Criação, no qual surgiu a vida na forma de vegetação que cobre a terra, que surge sêca ao sair das águas que a cobriam. Essa terra húmida, cujas raízes se encontram nas profundezas, nas trevas da noite do primeiro dia, é aquela que encarna o ímpeto de posse, do ter da vida original das trevas, que é má. (Veja)


Na linguagem visual de gênero, a „mulher-gana“, que representa a terra que surge no terceiro dia, tenta e prende o homem, fazendo-o cair nas esferas mais inferiores onde se encontram as suas raízes. (Veja)


O homem que com ela se une assume as normas a vida de gana é aquele que se torna serviçal de guerra e guerreiro. A origem do desencadear da violência e da guerra reside assim nessa conformação da vida original, no ímpeto de posse e de propriedade. Nas formas tradicionais de culto de Umbanda ou de Candomblé no Brasil, essas relações são conhecidas através de imagens de Ogum - ferreiro e guerreiro - que, correspondendo aos antigos Vulcano e Marte, sendo atraído pela beleza feminina que corporifica a gana do possuir, cai em trabalho insano e violência. Os seus anti-tipos é que devem ser considerados, por exemplo Sto. Antonio e S. Jorge.


Como tratado na sessão comemorativa dos 25 anos do instituto de pesquisas da organização pontifícia de música sacra, em Maria Laach, em 2002, tem-se aqui uma problemática da atração do espírito pela imagem da vida terrena passiva, que deve dar lugar à vida contemplativa, um contexto estreitamente relacionado com a cruz e com o in hoc signo vinces que levou à vitória de Constantino na batalha do ano de 312.


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ Guerra e violência no sistema de concepções e imagens em relações Ocidente/Oriente
- embriaguez de sangue, o matar e o se matar “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/9  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Guerra_no_sistema_de_imagens.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)




 








Ilustrações:: derrota de exército francês nas colinas de Combres, Aquarela do Prof. Hans W. Schmidt, Illustrierte Geschichte des Weltkriegs 1914/15  III, Stuttgart 1915;  Violento retiro de povo em Brest-Litowsk, pintura de Max Tilse, op.,cit.©Arquivo A.B.E.