Instrumentos e imagens: Brasil e Madagáscar
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Valiha. Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

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Valiha. Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

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Marovane.Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

Marovane.Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

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Fotos A.A.Bispo 2015 ©Arquivo A.B.E.

 

154/17 (2015:2)




Instrumentos e imagens: Brasil e Madagáscar

Musicologia Interdisciplinar Ano XL (1975-2015)

40 anos da primeira conferência no Museu de Instrumentos Musicais de Berlim
e 30 anos de fundação e reconhecimento de utilidade pública na Alemanha do I.S.M.P.S. - Maurício, Seychelles e Madagáscar




Agradecimentos ao Arquivo Nacional e ao Instituto Internacional de Creolismo das Seychelles
e a cooperações em Maurício, La Réunion e Madagáscar

 
Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.
A música em relações Madagáscar-Brasil foi um dos temas que mereceram particular atenção nos estudos euro-brasileiros desenvolvidos no Índico e que marcaram a abertura dos trabalhos internacionais de 2015 promovidos pela A.B.E. pelos 500 anos do Rio de Janeiro. (Veja)


A grande baía de Diégo Suarez (Antsiranana) com o seu Pão de Açúcar no norte do Madagáscar garante a constante presença do Rio na grande ilha separada da África pelo Canal de Moçambique. (Veja)


Tais lembranças e comparações que se encontram na literatura, em relatos de viagens e que ocorrem a todos aqueles que visitam o Madagáscar são primordialmente de natureza visual, resultantes do confronto com a paisagem malgache. Implicam em questões de imagens, uma vez que muitos daqueles que no Madagáscar se lembram do Rio e fazem cotejos nunca estiveram na Guanabara.


Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

Aproximações visuais e música - imagens em instrumentos emblemáticos


O significado que assim revela do visual, em particular de questões de imagens em estudos culturais que relacionam Madagáscar e o Brasil diz respeito também à música. Aqueles que nunca estiveram no Rio mas que que o tomam como referencial ao entrar na baía de Diégo Suarez ou ao visitar ainda que de longe o tabuizado Pão de Açúcar malgache, trazem imagens mentais marcadas por associações múltiplas, entre elas, sobretudo, com o carnaval e o samba.


Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

Sob o aspecto sonoro, porém, o observador externo, nos seus primeiros contatos com a música de Madagáscar, não pensa no Brasil ou o escuta interiormente. Constata, porém, que também para o Madagáscar canto, música instrumental e dança estão continuamente presentes, indicando ser de central significado para a vida de seus habitantes, para o país e seus grupos populacionais.


Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

Esse significado pode ser de imediato reconhecido em instrumentos tradicionais do Madagáscar,  em particular o vahila e o marovane, sendo sobretudo o primeiro apresentado como emblema e comercializado como objeto típico do país, um de seus principais e característicos souvenirs.


Marovane.Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.
Apresentando figuras que emergem do fundo de madeira do seu corpo, esse instrumento - assim como o marovane - surge como uma espécie de síntese emblemática do país. Nele se encontram representados animais e plantas de sentidos simbólicos para o Madagáscar, o lemúrio, o zebu e a árvore do viajante e o baoba ou „árvore de pão de macaco“. O instrumento passa a ser lido como um complexo todo que abrange essas figuras-símbolo, relaciona e amalgama os seus sentidos.


Essas representações sinalizam aspectos fundamentais da cultura malgache, indicam concepções e imagens intrínsecas de um edifício cultural que deve ser percebido, analisado e compreendido. Elas não querem ser lidas superficialmente na sua representação visual, mas como sinais de sentidos que indicam e que são velados ao exteriormente visto pelos olhos. Essa leitura não é arbitrária, mas exige conhecimentos transmitidos pela formação cultural ou obtidos em estudos.


Em grupos que procuram representar a cultura tradicional malgache, o observador constata não apenas o uso de instrumentos que não conhece, mas também o uso de instrumentos europeus, como o violão e o violino, assim como improvisados, como idiofones feitos de latas de conserva ou de bebidas, nos quais se colocaram pedrinhas. Sobretudo estes últimos evidenciam substituições de instrumentos segundo circunstâncias e possibilidades, preenchendo os substitutos funções dos tradicionais e suas indicações de sentidos. A leitura de um instrumentário assim heterogêneo torna-se difícil à primeira vista, sendo que significativas chaves para a análise cultural organológica encontram-se naqueles instrumentros que apresentam imagens emblemáticas, tais como o valiha e o marovane.


É compreensível que o valiha surja como instrumento de significado músico-pedagógico, empregado no ensino musical e na formação cultural por meio da música de crianças e jovens malgaches. Para aqueles que crescem em meio ocidentalizado de recente passado colonial, marcados pela recepção de expressões e tendências internacionais através dos meios eletrônicos, repleto de dificuldades, depauperado materialmente e degradado na sua natureza, o instrumento surge como veículo para a conservação e transmissão de valores de um patrimônio imaterial, de consciência e identidade cultural.


Valiha e marovane na Escola de Música e Dança de Diégo-Suarez -ZomaréOcéanIndian


O valiha é como um dos poucos instrumentos tradicionais ensinados em escolas ao lado de violão, bateria, saxofone, acordeão, trompete, tuba ou piano.  Este é o caso da Escola de Música e Dança de Diégo-Suarez (Antsiranana), instituição vinculada ao ZomaréOcéanIndian. Esta associação, dedicada ao fomento da cultura e das músicas do Oceano Índico, apoia a associação malgache Zomaré de Diégo-Suarez com o seu projeto de uma Casa da Música e da Escola de Música e Dança.


Essa associação, com sede em Saint-Paul, La Reúnion, e sede social em Saint-Benoit, França, procura conduzir, em particular em La Réunion e no Madagáscar, ações culturais e musicais, assim como investigações. Como presidente-fundador de Zomaré e professor na escola de Diégo-Suarez distingue-se Kabaro de Bahoaka, executante de vários instrumentos, compositor e poeta que, na década de sessenta criou a banda municipal de Diégo-Suarez, formando muitos instrumentistas.


No ensino de valiha na escola de Diégo-Suarez empenha-se Bicky (Rakotosolofondranjanirina Jean Marie), também membro-fundador de Zomaré e que se dedica igualmente ao ensino do violão; como compositor, criou também peças para valiha. Nascido na cidade portuária de Tamatave, marinheiro, passou a atuar em 1975 em Diégo-Suarez, onde para além de outras atividades como violonista, fundou o grupo Chrislesol, com o dedicou-se a peças conhecidas internacionalmente e de salegy. Depois de 1979, atuou como violinista e tecladista em diferentes grupos. Também Manana Gilbert ensina valiha e marovane na escola de Diégo-Suarez. Proveniente da região de Ambaja, domina a cultura Sakalava, tendo sido um dos fundadores do grupo Lamalama.


O Madagáscar em estudos de Musicologia Interdisciplinar - 1975-2015


A consideração de instrumentos e à música e dança do Madagáscar na musicologia de orientação cultural em contextos globais deve ser vista nas suas inserções em amplo desenvolvimento das reflexões teóricas, da pesquisa e do ensino que remontam ao Brasil.


Foi resultante de preocupações originadas na década de 60 quanto a problemas constatados na História da Música, no Folclore e no estudo organológico devido a categorizações de esferas culturais, passando-se a defender um direcionamento da atenção a processos (Nova Difusão). (Veja)


Desde o início foi esse desenvolvimento marcado por interdisciplinaridade, não apenas pelo fato de relacionar estudos históricos, empíricos e sistemáticos voltados à música, como também por ser desenvolvido em cooperação com outras áreas, em particular também aquelas dedicadas à comunicação visual no âmbito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.(Veja)


Esse intento marcou os debates quando da  introdução da área da Etnomusicologia nos estudos superiores de música e de formação de professores de Educação Musical e Artística em São Paulo, em 1972. A interdisciplinaridade na musicologia de orientação cultural passou aqui a ser discutida em estreito relacionamento com questões de polivalência do ensino artístico nas escolas. (A.A.Bispo, „Interdisciplinaridade e Polivalência 1973“, Brasil-Europa & Musicologia, Colonia, 1999, 152-155).


Com o início das atividades internacionais de programa assim desenvolvido possibilitadas pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), em 1974, questões organológicas levantadas no âmbito da introdução a Etnomusicologia na formação de professores de música no Brasil passaram a ser discutidas na Europa.


No início de 1975, realizou-se encontro no Museu de Instrumentos Musicais de Berlim que marcou o desenvolvimento que se seguiu e no qual procurou-se discutir internacionalmente as novas aproximações ao tratamento teórico-cultural de instrumentos na procura de superação de problemas de classificações convencionais da sistemática organológica já constatadas no Brasil.(Veja)


A atenção, inicialmente dirigida compreensivelmente a instrumentos de percussão, em particular a tambores de couro, entre outros aos amponga, foram logo ampliados a idiofones nas suas diversas formas e materiais, em especial àqueles formados por cabaças cheias de grãos ou sementes (korintsana), a kahiamba, as „vassourinhas“ de palha ou a aros que se entrechocam ao dançar, assim como os paus que são percutidos (doka).


Todos esses instrumentos chamaram a atenção pela sua semelhança àqueles conhecidos no Brasil, incluindo-se aqui também flautas de bambús, as sodina, as barakoma de bambú, ou de cabaças (kiokioka), à flauta pã kiloloka, ao instrumento de sôpro constituído por grande chifre, o anjomara, ou aos grandes caramujos marítimos usados como instrumentos (antsiva). Uma especial atenção passou a ser devotada a instrumentos de cordas, vários lembrando instrumentos ocidentais do tipo violão (kabosa, jejy, kabotsy), ou o violino (kabosa, iokanga). Já nessa época salientou-se a presença de instrumentos conhecidos da esfera árabe, como o instrumento do tipo clarinete maintikely.


Entre aqueles pesquisadores que mais contribuiram para as reflexões nos anos seguintes salientou-se Klaus Wachsmann. Entre outros aspectos, considerou-se com esse especialista em estudos musicais da África do Leste a necessidade de estudos mais atentos da inserção de expressões músico-culturais e de instrumentos no tratamento etnomusicológico. O Madagáscar entrou no centro das atenções com a publicação de artigo relativo a instrumentos musicais e história em Madagáscar em coletânea de ensaios organizada em homenagem ao pesquisador, em 1977 (Norma McLeod, „Musical Instruments and History in Madagáscar“, Essays for a Humanist: an Offering to Klaus Wachsmann, New York 1977).


A necessária análise de funções e sentidos de instrumentos nos estudos de fundamentos


Esses debates, assim como diálogos com pesquisadores em museus e centros de estudos, entre êles no Museu de Tervuren, Bélgica,  serviram para preparar realização de simpósio etnomusicológico dedicado à África realizado em Bonn e em Colonia em 1979 e no qual participaram vários pesquisadores brasileiros. (Veja)


Realizando-se esse simpósio no contexto de um Congresso Internacional de Música Sacra, compreende-se que a atenção dos pesquisadores tenha sido dirigida a questões que pudessem fornecer bases seguras a anelos de desenvolvimento de uma música religiosa adequada culturalmente a diferentes contextos extra-europeus, em particular, no caso, da África. O estudo da função e dos sentidos de instrumentos, de suas inserções em práticas religiosas e edifícios culturais, de suas correspondências e das associações que despertavam surgia como fundamental para o alcance dos fins propostos.


Como reconhecido pelos participantes brasileiros empenhados na consecução do programa de desenvolvimento de uma musicologia de orientação cultural, corria-se aqui porém o risco de uma redução de complexos culturais a serem investigados ao presente e à pesquisa empírica, sem levar em consideração que muitas dessas regiões já possuiam história secular de contatos com a Europa. Muitas dessas regiões não só tinham recebido como reagido a transplantes e influências culturais, devendo ser essas interações e os processos em que se inseriam necessariamente consideradas. Desconsiderar esses processos significaria contribuir ao empobrecimento da memória e da consciência histórica de comunidades.


Sobretudo os instrumentos tornavam evidente a necessidade não só de consideração do histórico na pesquisa etnomusicológica como também da perspectiva etnomusicológica no estudo de fontes históricas. Lembrou-se que muitos dos instrumentos da prática de cunho tradicional em diferentes contextos extra-europeus são comprovadamente de origem ocidental, representando documentos da recepção cultural no decorrer da história de contatos e interações.


O levantamento e o estudo contextualizado de fontes históricas no contexto da expansão européia à época dos Descobrimentos então desenvolvidos abriram caminhos para a consideração de dados históricos relativos à música em Madagáscar, à atuação de músicos europeus, à introdução de instrumentos, em particular militares, de cantos religiosos por missionários católicos e protestantes ou de danças de salão ocidentais. Com o desenvolvimento sistemático da pesquisa em outros contextos, os desenvolvimentos no Madagáscar puderam ser analizados nas suas inscrições em processos históricos.


Esses dados e análises forneceram as bases para o tratamento do Madagáscar no âmbito dos cursos de música no encontro de culturas ou de história da música em contextos globais levados a efeito em cooperação com o ISMPS nas universidades de Colonia e Bonn, em particular também naqueles voltados a Moçambique. (Veja)


Fontes históricas: Etienne de Flacourt (1607-1660)


Uma fonte de grande importância para estudos da música - e da cultura em geral - nas suas relações com processos culturais do Madagáscar é a Histoire de la grande isle Madagáscar, composée par le sieur de Flacourt... avec une relation de ce qui s‘est passé dans les années 1655, 1656 et 1657 (....) (Troye/Paris, N. Outdot, G. Clouzier, 1661).


Essa obra surge como de significado em geral para estudo de referências de interesse etnomusicológico em fontes do passado com as suas referências relativamente pormenorizadas que contém sobre música e dança no seu capítulo XXXIV („Jeux, Passetemps, Chansons, & Danses“, pág. 110). A sua importância decorre também do fato de ter sido escrita por um autor que vivenciou e marcou como autoridade administrativa uma época de relêvo da presença francesa no Madagáscar em Fort Dauphin no século XVII, muito antérior portanto ao estabelecimento do regime colonial na segunda metade do seculo XIX. (Veja)


Nesse capítulo, Flacourt salienta de início a diversidade de cantos e danças no país, assim como a propensão geral dos seus habitantes à música: apesar das diferenças, por toda a parte a nação malgache gostava de cantar e dançar. O que era para êle mais digno de atenção era que nos cantos nada haveria de dissoluto, e essa grande seriedade manifestava-se também nas danças, mesmo que nelas fizessem - para o observador europeu - posturas muito ridiculas. Todas as suas canções ou consideravam de forma brincalhona algum homem ou mulher, ou os louvavam, ou decantavam grandes feitos de seus antepassados.


Os cantos não seriam „musicais“, mas os habitantes da costa do Manghabei tinham cantos com forte cunho melódico, e nos Matatanes empregavam um certo tipo de flauta. Em Carcanossi dansavam girando e andando um atrás dos outros, observando uma certa cadência e passo; seja ao som de tambores, seja em canções respondendo a dois ou quatro àquele que começavam a canção. Os homens, que eram os dançarinos faziam mil posturas que incitavam qualquer um a rir, e o todo observava a cadência da canção. Em outros lugares traziam um bastão na mão e os manejavam com muita graça. Em Manghabei tinham um outro modo de dansar, muito ridículo, dançando duas mulheres por vez, os homens não o fazendo à época que o autor fêz a observação.


O tocador de herrauou era aquele mais escutado, aquele que apenas recitava assuntos sérios, e mais frequentemente estórias do tempo passado, discorrendo e cantando noites inteiras, sem interrupção. Todas as mulheres gostavam muito de cantar, fazendo imediatamente um canção sôbre qualquer ação ridículo de alguma pessoa.


Flacourt descreve o valiha entre os instrumentos musicais, a primeira menção conhecida desse instrumento. Os malgaches cantavam ou dançando ou tocando um valiha, que o autor descreve como um pequeno monocórdio, ou tocando uma voulle ou grande cana com 6 cordas, ou o herrauou, um monocórdio tocado com um arco.


Chapitre XXXIV

Jeux, Passetemps, Chansons, & Danses. (pag. 110) Les chansons & danses sont autant differentes comme sont les Provinces, & par tout le pais cette nation aime fort à chanter & danser; & ce qu‘il y a de remarquable en eux, c‘est qu‘ils ne chantent rien de dissolu, & leurs danses aussi sont assez serieuses, quoy qu‘ils fassent en dansans des postures assez ridicules. Toutes leurs chansons sont ou eu en se gaussans de quelque homme ou femme, ou bien en louans d‘autres, ou en chantans les hauts faits de leurs ancestres.


Ils chantent, ou en dansans ou entenans un valihan, qui est un petit manocordre, ou bien en jouans d‘une voulle ou grosse canne ou il y a six cordes, ou en jouans sur l‘herrauou, q‘est un manochorde avec un archet.

Leurs chansons ne sont aucunement musicales: mais du costé de Manghabei leurs airs ont quelque forte de melodie aux Matatanes, ils se servent d‘une certaine sorte de flute.

Ils dansent en Carcanossi en tournoyans & marchans les uns apres les autres, en observans une certaine cadence & demarche; soit au son des tambours, soit aux chansons en respondans tous à deux ou à quatre qui commencent la chanson & les hommes qui sont les danseurs font milles postures de ballet qui incitent à rire un chacun, & le tout en observans la cadence de la chanson; en d‘autres endroits ils tiennent un baston à la main, & se manient d‘assez bonne grace; à Manghabei ils ont une autre façon de danser assez ridicule, & ne dansent que deux femmes à la fois, les hommes ny dansent point á ce que i‘ay observé.


Le jouer d‘herrauou c‘est celuy qui est le plus escouté, lequel ne recite que des choses serieuses, & le plus souvent des fables du temps passé, & sera une nuit entiere á discourir & chanter sans hesiter. Toutes les femmes aiment fort à chanter, & sur quelque action ridicule de quelque personne so font incontinent une chanson. (op.dit. 111)


Valiha e a sua descrição como monocórdio - dimensões de um termo


O emprêgo do termo monocórdio para a descrição do valiha por Flacourt merece particular atenção. Essa menção não deve ser entendida como indicação de instrumento com uma só corda, uma vez que havia monocórdios de várias cordas, o que era conhecido pelo autor. Esse instrumento, porém, também denominado de canon, trazia associações com concepções de antiga proveniência referentes a ordenações matemáticas, de intervalos e de escalas, com múltiplas correspondências e associações, abrindo-se aqui perspectivas para possíveis significados percebidos por Flacourt nos instrumentos malgaches.


O instrumento tem em geral de 21 a 24 cordas. No passado, embora não citado por Flacourt, essas cordas teriam sido formadas por fiapos do corpo de bambu. Flacourt não menciona o marovane, que indica um similar contexto de sentidos, mas que tem um corpo de ressonância em retangular, em forma de caixa, com cordas de ambos os lados, podendo representar este uma variante daquele com corpo tubular. Que o marovane possui similares sentidos com o vahila sugere o fato de encontrar-se similares imagens pintadas no corpo do instrumento, por exemplo do boi. Assim considerando, não a forma do bojo parece ser fundamental na análise - se tubular de bambú ou em forma de caixa - mas o fato de tratar-se de instrumento de cordas que sooam de  um corpo ôco, vazio, e que pela linguagem visual é relacionado com o boi, o animal que é sacrificado.


O marovane no relato de Ida Pfeiffer segundo notas ordenadas no Rio de Janeiro


O relato de viagem ao Madagáscar de Ida Pfeiffer, cujas notas foram ordenadas para a publicação após a sua morte em 1858 pelo seu filho Oscar Pfeiffer no Rio de Janeiro (Veja), inclui, entre as suas várias referências de interesse musical, uma menção ao marovane.


A viajante referece-se ao instrumento como sendo próprio do Madagáscar, executado durante a „dança malgache“ e cuja fabricação seria segundo ela a única expressão de um espírito inventivo do país. A sua descrição, porém, refere-se ao valiha, uma vez que fala de um longo tubo de bambu de quatro pés, grosso como um braço, no qual deixaram-se alguns fiapos e cujas cordas eram apoiadas com pequenos pedaços de madeira. Para dar uma idéia da sonoridade do instrumento a seus leitores europeus, a viajante o compara com uma velha cítara de má qualidade.


Einige führten auch den langweiligen malegaschischen Tanz auf, dießmal mit Begleitung des Marovane, des einzigen Instrumentes, zu dessen Verfertigung sich der madagaskarische Erfindungsgeist erhoben hat. Es besteht aus einem armdicken, vier Fuß langen Bambusrohr, an welchem rings umher Fasern aufgehoben und auf kleine hölzerne Sättel gestüßt sind. Sein Ton ist ungefähr wie der einer alten schlechten Zither.“ ( Ida Pfeiffer, Reise nach Madagaskar : nebst einer Biographie der Verfasserin, nach ihren eigenen Aufzeichnungen, Viena, 1861, 104).


Representações visuais como sinais: instrumentos no edifício cultural


A consideração das imagens representadas no valiha e no marovane abrem assim caminhos para a análise de seus sentidos e a compreensão de suas funções na cultura tradicional.


Sabe-se que o marovane era utilizado por grupos musicais que participavam de cerimônias funerárias. Nesas, a música servia para auxiliar e acompanhar a caida no transe dos médiums. Considerando que para o transe a correção e a propriedade da música executada surgem como fundamentais, pode-se tecer reflexões sobre a função de instrumentos que, como o monocórdio conhecido na Europa, de antiga tradição, seriam estreitamente relacionados com ordenações numéricas e acústicas. Compreender-se-ia, também, as razões pela qual o termo valiha seja empregado no sentido genérico para instrumentos do tipo de cítara, de diferentes formas e materiais, e que Ida Pfeiffer tenha utilizado o termo marovane.


Mesmo que sejam usados com função não-religiosa, profana ou secular, essas relações com a morte e o mundo dos espíritos merece particular atenção, considerando-se a força do culto dos ancestrais no Madagáscar.


Nesse sentido, a representação de determinadas imagens nos instrumentos, que surgem por assim dizer como um corpo que as abrangem, deve ser alvo de estudos culturais sob diferentes aspectos. Reciprocamente, a análise dessas representações contribuem para a compreensão de sentidos do representado em outras situações.


Cabeças de boi, chifres, lemúrios, árvore de viajante, morte, sacrifício e espíritos


As figuras e representações de zebus ou de cabeças de bois com chifres - não de corpo - nos instrumentos trazem à consciência o significado de bois para os povos do Madagáscar. Possuir reses significa não apenas riqueza, mas também a possibilidade de imolá-los por ocasião de morte. O roubo de reses e grupos considerados como ladrões de gado surgem como uma constante em fontes concernentes ao Madagáscar.


Como relatos de viajantes do passado mencionam, o sacrifício podia ser entendio no sentido de que a alma do animal sacrificado acompanhasse a dos defuntos, preparando a sua ida ao reino das sombras. Consequentemente, túmulos eram ornamentados com chifres dos bois sacrificados. Similar idéia de não se chegar ao reino das sombras de mãos abertas, mas acompanhado pela alma do sacrificado podia justificar a morte de bois quando da procura de túmulos de ancestrais. (Veja)


Foto A.A.Bispo. Copyright. Arquivo A.B.E.

Considerando esses elos, vem à mente do historiador que considera questões organológicas que elos entre instrumentos de cordas e a imagem do boi, inclusive no uso de chifres para a sustentação de cordas, podem ser constatadas em instrumentos da Antiguidade e em mitos que, reinterpretados, atravessaram os séculos.


Esse é o caso de antigos instrumentos do Oriente e, na cultura helênica, do descobrimento da lira por Hermes, uma vez que à invenção da lira a partir  de uma tartaruga, seguiu-se o roubo de bois de Apolo e seu sacrifício. Essa linguagem de imagens do antigo mito, cujas dimensões de sentidos e permanência através dos séculos tem sido tratada em publicações e eventos, entre êles nos simpósios „Música Sacra e Cultura Brasileira“ levados a efeito no Brasil, adquire novas possibilidades de análises contextualizadas com o estudo dos instrumentos malgaches. Ao mesmo tempo, a antiga imagem abre perspectivas para os estudos culturais, uma vez que aguça a percepção do pesquisador para possíveis afinidades quanto a funções e sentidos. (Veja)


Também a representação de lemúrios em instrumentos parece ter não apenas significado decorativo ou ilustrativo de um animal característico do Madagáscar. Os sentidos e as associações relacionados com essse animal são múltiplas, e o analista cultural não pode deixar de pensar no continente designado como Lemuria que teria em longínquo passado unido o Madagáscar à Índia ou mesmo a área do Pacífico à América. Os grandes olhos e os hábitos noturnos dos animais parecem ter sido a razão de a êles ter sido dada a designação lemúrios, que eram, como as larvas, os espíritos de mortes da antiga cultura romana. Com essas concepções relacionava-se a exigência de não esquecer-se do culto dos espíritos dos mortos, para que se não tornassem malignos. (Veja)


A ocorrência da imagem do lemúrio nos instrumentos traz amplas implicações teórico-culturais. A existência de lemúrios no Madagáscar levou a hipóteses de cientistas naturais do século XIX quanto a um continente denominado de Lemúria, cujos restos seriam o Madagáscar e outras ilhas do Índico. No âmbito do Evolucionismo de Ernst Haeckel (1834-1919 ), esse autor, cujas teorias seriam de tanto significado para o Rio de Janeiro (Veja), relacionou esse desaparecido continente com a origem do homem (Natürliche Schöpfungsgeschichte, 1868).


Ainda que o próprio Haeckel tenha-se distanciado dessa suposição, paira ainda a vaga noção de uma origem do homem na África do Leste ou no continente submerso.


Também a árvore do viajante que se encontra nas representações dos instrumentos surge nesse contexto como tendo sentido mais profundo do que aquele de uma simples representação de planta característica do Madagáscar. Como o seu nome indica, é uma árvore do qual o viajante podia saciar a sua sede em regiões áridas. (Veja) Relações de sentidos com a viagem da alma surgem como plausíveis.


Tendências mais recentes da música popular malgache nas suas dimensões internacionais foram alvo de atenções do primeiro curso superior de World Music e processos musicais na era da globalização realizado na universidade de Bonn, em 2003. (Veja)



De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo





Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Instrumentos e imagens: Brasil e Madagáscar. Musicologia Interdisciplinar Ano XL (1975-2015)“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 154/17 (2015:02).http://revista.brasil-europa.eu/154/Instrumentos_Brasil_Madagascar.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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