Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos e gravação: organizadores brasileiros do Simpósio.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/13 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3110




A prática polifônica a cappella
entre seu significado musicológico, prático-musical
e a sua função no culto
Irradiações de meditação musical

no tombamento das igrejas de São Francisco em São Paulo (1981)



Este texto deve ser compreendido à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano. Estes são voltados a balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de interações que teve o seu início em 1974. (Veja)


Esses números da Revista consideram sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios e a que se evitem repetições de idéias, projetos e iniciativas de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 
As orientações e tendências que se constatam no atual Pontificado fazem com que problemas músico-culturais já há muito discutidos adquiram nova atualidade. Torna-se assim oportuno recordar preocupações, opiniões e iniciativas das últimas décadas para um prosseguimento consequente das reflexões à procura eficaz de soluções. 


Um desses problemas é o cultivo do repertório polifônico. Aqui unem-se preocupações por parte de regentes e músicos em geral, sobretudo aqueles que se dedicam a coros e a movimentos de fomento da prática coral, uma vez que constatam uma discrepância entre os seus ideais, empenho e iniciativas com aqueles da prática litúrgica.


As tendências atuais, reintensificando concepções e caminhos decorrentes do Concílio Vaticano II, acentuam a participação ativa da comunidade nos cantos, diminuindo ou mesmo pondo em risco a função da música coral e, assim, da prática polifônica. Sendo grande parte do repertório polifônico constituido por obras sacro-musicais, estas perdem a sua função original, passando a ser executadas apenas em salas de concerto ou em situações extraordinárias de culto. Nem todas essas obras, porém, possuem características que as fazem aptas a execuções fora de suas funções litúrgicas ou paralitúrgicas.


Constata-se, assim, uma contradição quanto a ideais e esforços entre aqueles empenhados no estudo e na prática musical e aqueles de religiosos e agentes da pastoral. Isso vale sobretudo para regentes que se consideram líderes de uma prática coral que justificam como sendo útil ou até mesmo indispensável para difusão cultural, para a formação de músicos e apreciadores, para o alcance de fins educativos, político-culturais e mesmo sociais


Cumpre lembrar nesta situação que tais contradições não são novas, refletindo de ambos os lados sobretudo desenvolvimentos remontantes à década de sessenta do século XX: o despertar de interesses pela polifonia em meios musicais e sua manifestação em movimentos corais e o distanciamento justamente dessa prática na liturgia no contexto de reformas que tornaram obsoletos ideais da polifonia vocal latina do período anterior ao Concílio.


Esses desencontros quanto a concepções não se resumiram ao Brasil. Atingiram sobretudo também sacerdotes, compositores e músicos de igreja que haviam dedicado a sua vida ao estudo e à prática da polifonia ou que terminavam a sua formação em instituições como o Pontificio Istituto di Musica Sacra em Roma. Compreende-se que questões relacionadas com a polifonia tenham também marcado as reflexões sôbre música, pesquisa musical e estudos culturais voltadas a Portugal e ao Brasil na Europa a partir de 1975. (Veja)


Do lado brasileiro, essa preocupação temática era resultado do interesse pela música de fins da Idade Média e da Renascença no Brasil, manifestado de forma exemplar pelo Collegium Musicum de São Paulo, sob a direção de Roberto Schnorrenberg (1929-1983) (Veja). Ela correspondia, em geral, ao interesse pela assim-chamada música antiga no Brasil. Este interesse não era recente, como indica a longa história da Sociedade Bach de São Paulo (Veja), experimentava, porém, uma reintensificação sob novas condições e com novas características nos anos sessenta, marcadas por um fascínio pelo cravo e por instrumentos antigos em geral. (Veja)


Diferentes correntes, tendências, inserções contextuais, vínculos com pesquisadores, músicos e coros e conjuntos da Europa e dos Estados Unidos e mesmo posições político-culturais interagiam nesse interesse pela música antiga. No caso da polifonia, não se tratava apenas de questões de erudição e descobrimento de um repertório pouco presente na vida musical dos grandes centros do Brasil, ou seja, de difusão cultural. Ela relacionou-se com questões mais amplas referentes à prática coral, à formação e à Educação Musical, unindo assim teoria e prática. Como o próprio nome Collegium Musicum sugere, estendeu-se ao Brasil uma tradição secular de prática musical de estudiosos e acadêmicos, que se manifesta ainda na atualidade através da existência de instituições assim denominadas em universidades européias, abertas a estudantes de todas as disciplinas.


Significativamente, também no Brasil foram os anos de especial florescimento do Collegium Musicum de São Paulo também aqueles de entusiasmo pelo canto coral acadêmico, o que se manifestou nas atividades de outros grupos corais em faculdades, como o Madrigal das Arcadas e o da Faculdade de Medicina, e, mais genericamente, de coros de Universidades, como o de Campinas.


A procura de conhecimento e o fascínio por mundos sonoros pouco conhecidos, intentos de difusão cultural a serviço da renovação de programas de concertos ainda por demais presos a repertórios convencionais e empenhos de fomento e de despertar de entusiasmo pela música entre estudantes relacionaram-se em dimensões maiores no Movimento Coral, salientando-se aqui o de São Paulo, o que revela as bases, conotações e implicações político-culturais de concepções, intenções e ações.


Em visão retrospectiva, reconhece-se que esse movimento representou uma revivificação, sob novas condições, em diferentes contextos e com novas características de intuitos e esforços de emprêgo da música - em particular aqui do canto coral - a serviço da difusão e formação cultural de círculos mais amplos da população.


A sua maior expressão, e que mais evidencia as suas dimensões políticas fora o Canto Orfeônico na sua fase de excepcional florescimento à época do Estado autoritário das décadas de 30 e 40. Também o Canto Orfeônico possuia já nessa época uma longa história, inserindo-se em correntes européias de fomento da prática musical e da educação do povo. O emprêgo da música e, em particular, da prática coral nesse sentido revela, apesar de suas diferenças sob as várias situações políticas, concepções culturais, compreensões de cultura e da função educativa daqueles preocupados com um nível cultural considerado como insuficiente do povo.


A necessidade de agentes e mediadores para esse trabalho formativo em amplas dimensões torna compreensível o empenho pela formação de professores de Canto Orfeônico para as escolas e de regentes de corais de operários, de diferentes grupos populacionais e das mais diversas instituições. O desenvolvimento do Movimento Coral na década de 70 coincidiu significativamente com novas concepções educativo-musicais e de formação de professores em substituição àquela do Canto Orfeônico. (Veja)


Esse desenvolvimento não se procedeu apenas de forma irrefletida e não consciente de seus fundamentos e suas implicações. Reconhecendo-se que seus ideais formativo-culturais subjacentes, apesar de todas as diferenças, baseavam-se em concepções de esferas da cultura, do erudito e do popular, passou-se a questionar essa categorização, preconizando-se um direcionamento das atenções antes a processos culturais, uma preocupação que levou à criação de uma sociedade (Nova Difusão) com um Centro de Pesquisas em Musicologia.


Tradições de prática a cappella no Brasil nos estudos de processos culturais


A.A.Bispo e Roberto Schnorrenberg
A prática a cappella no Brasil foi uma das primeiras áreas de estudos tratada sob os novos direcionamentos teóricos, que relacionavam as pesquisas históricas com as empíricas de vivência e análise de tradições. Tendo-se dado início a pesquisas de fontes no Arquivo da Curia Metropolitana de São Paulo em 1964, foram estas acompanhadas da participação observante em coros de motetos de Semana Santa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. As obras assim levantadas passaram a
ser comparadas com motetos de outras igrejas e localidades de São Paulo e Minas Gerais.


Aspectos histórico-teóricos de questões relacionadas com a polifonia e com transformações da linguagem musical da monodia à polifonia e à homofonia passaram a ser tratados sob o ponto de vista interdisciplinar no curso de Estruturação Musical da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. O Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista foi então criado com o sentido de experimentar na prática possibilidades de consideração de resultados da pesquisa músico-cultural empírica no cultivo de repertório histórico marginalizado.


Alguns dos concertos assim realizados, entre outros na igreja de S. Cristóvão do antigo Seminário de São Paulo, em 1973, incluiram motetos recuperados de manuscritos ou transmitidos pela tradição viva. Alguns desses motetos foram então publicados.


Polifonia vocal em programa de estudos e cooperações na Europa a partir de 1975


Do lado português, o interesse pela polifonia nas conferências de Colonia derivou sobretudo da tese de Maria Augusta Alves Barbosa, que então desenvolvia trabalhos de pós-doutoramento relacionados com o músico e teórico-musical Vincentius Lusitanus. (Veja)


Aspecto particularmente tratado no seu estudo dizia respeito a uma discussão polêmica do século XVI relativa a distinções de gêneros e modos em época de transformações de concepções e práticas musicais, de permanências modais, de intuitos de revitalização de antigos modos e de mudanças de uma percepção e pensar horizontal ao vertical.


O tratamento das questões contextualizadas na figura de Vincentius Lusitanus levou a reflexões várias sob o aspecto historiográfico e teórico-cultural, entre outras a da possibilidade de reconhecimento de tendências conservadoras ou avançadas, dirigidas ao passado, á permanência e promoção do alcançado ou abertas a desenvolvimentos e ao futuro. (Veja)


O interesse pelo estudo da polifonia em Portugal manifestou-se também e sobretudo nos estudos do Pe. Armindo Borges relativos ao mestre de Capela da Sé de Lisboa Duarte Lobo (15?-). (Veja) Tendo realizado estudos de contraponto e do repertório polifônico no Istituto Pontificio di Musica Sacra e a seguir com um dos mais renomados representantes de uma renovação da tradição polifônica na música sacra na Alemanha, e não vendo mais possibilidades de aplicações de conhecimentos assim ganhos na prática musical sob as condições resultantes do Concílio Vaticano II nos Açores, A. Borges passou a dedicar-se aos estudos musicológicos relativos á polifonia portuguesa no contexto das relações interno-européias. (Veja)


O caminho de vida de A. Borges demonstra de forma exemplar os problemas que se faziam sentir na década de setenta àqueles que se dedicavam a estudos e ao cultivo da polifonia. Nas suas consequências, o Concílio levara a uma valorização da participação ativa da  assembléia no culto, do canto comunitário em vernáculo e à perda de funções do canto em latim, do Gregoriano e da polifonia. Esse desenvolvimento explica as preocupações crescentes com a perda da herança representada pela música litúrgica criada através dos séculos e que constituia grande parte do patrimônio cultural europeu.


Esse problema, considerado em simpósios e conferências várias, determinou em grande parte a programação do Congresso Internacional de Música Sacra levado a efeito em Bonn e Colonia em 1980, onde o Gregoriano, a Polifonia e a preocupação pelo desenvolvimento de uma música sacra adequada aos diversos contextos culturais extra-europeus estiveram no centro das atenções. (Veja)


Os brasileiros que participaram nesse Congresso, porém, perceberam as graves consequências resultantes de visões que separavam o europeu do extra-europeu e dos critérios de julgamento de desenvolvimentos e de iniciativas delas decorrentes. A não consideração de processos transcontinentais de séculos, estreitamente relacionados com a expansão da cultura cristã-ocidental levava à consideração de países como o  Brasil exclusivamente sob um enfoque etnomusicológico limitado a expressões vistas como extra-européias, ignorando ou desvalorizando desenvolvimentos histórico-culturais, obras e compositores, não podendo corresponder, assim, às exigências da realidade.


Essa deficiência fazia-se sentir também e especialmente no tratamento da prática polifônica, uma vez que esta - em particular também aqui a dos motetos de procissão - já pode ser documentada nos inícios da presença de cristãos e da ação missionária em diferentes regiões do globo. A consideração de problemas relativos á polifonia nos anos pós-conciliares não podia deixar de partir dessa longa história e dos complexos processos que fizeram com que antigos repertórios permanecessem vivos na tradição através do tempo, de forma popularizada, em parte anonimizada e por vezes memorizada, chegando a constituir uma parte hierática da cultura musical em séculos de florescimento da música sacra com acompanhamento instrumental. Sob a perspectiva dessa inserção da prática coral em processos culturais é que se desenvolveram estudos relativos ao stile antico no Brasil. (A.A.Bispo, „Motetten“, Die katholische Kirchenmusik in der Provinz São Paulo zur Zeit des brasilianischen Kaiserreiches (1822-1889), H. Hüschen (Hg.), Kölner Beiträge zur Musikforschung 108, Regensburg: G. Bosse,1980, 245-260).


A decisão de promover-se logo em seguida a esse Congresso um simpósio internacional de grandes dimensões no Brasil relacionou-se, assim, estreitamente com questões da polifonia. Também aqui essa iniciativa teve o sentido de superação dos problemas detectados na discussão sacro-musical em centros europeus então marcados pelo dilema entre preocupações patrimoniais e intentos renovadores que se justificavam segundo o espírito do Concílio.



Uma questão cultural: a polifonia vocal a partir da perspectiva de regentes


No Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ de 1981, o  tratamento do complexo temático concernente à prática polifônica incluiu também um outro aspecto que até então não tinha sido suficientemente considerado: o do papel dos regentes nos estudos e no trabalho de difusão de repertórios e no movimento coral nas suas dimensões educativas e político-culturais, também estas muitas vezes de intenções formativas. Grande parte do dilema que se sentia entre concepções divergentes entre a pesquisa e a prática musical por um lado e os religiosos e os agentes da pastoral de outro explicava-se pelos diferentes critérios de consideração do canto coral e de suas funções.


O interesse de regentes no âmbito das tendências de redescobrimento e revalorização da polifonia vocal levara a que se ocupassem com estudos musicológicos internacionais e edições de monumentos da música européía. Nesse caminho, houve uma aproximação à pesquisa histórico-musical no Brasil que levantava obras do passado.


Um dos problemas que aqui se faziam sentir, porém, residia no fato de que estudos conduzidos segundo interesses de regentes diferenciam-se daqueles de uma pesquisa científica livre, não primordialmente preocupada com a utilização de obras em programas de concertos, aberta, assim, à consideração de outros aspectos músico-culturais, por exemplo de características de execução constatadas na tradição viva e que não surgem como aptas para interpretações em concertos e gravações segundo critérios qualitativos da atualidade. Embora musicólogos devam ter necessariamente sólida formação musical, deveria haver entre êles e regentes - e músicos prátícos em geral - uma clara distinção, o que nem sempre acontecia. A ação de regentes no desenvolvimento e na institucionalização dos estudos musicológicos no Brasil nem sempre foi positiva, a ela cabendo em grande parte a culpa da inserção inadequada desses estudos em Escolas de Comunicações e Artes.


Um outro problema que aqui se fazia sentir dizia respeito à auto-consciência de regentes e maestros/maestrinas de canto coral que, acostumados a posições de liderança perante os seus coros e classes de aula, assumiam atitudes autoritárias. Uma das razões do combate à música coro-orquestral do movimento de reforma litúrgico-musical do século XIX residira justamente na crítica à vaidade e empáfia de cantores e maestros, que não raro assumiam competências que deviam caber aos sacerdotes.


Nesse contexto, procurou-se comparar a problemática brasileira relativa à polifonia vocal e à sua visão por parte de regentes com aquela de europeus. A exposição da prática da música para coro na liturgia da Europa Ocidental ficou a cargo do Drs. J. Boogaarts, regente e especialista em assuntos relativos à polifonia dos Países Baixos.


Durante o Simpósio em São Paulo, esse especialista partiu da diferença entre obras concebidas mais polifonicamente e aquelas concebidas mais do ponto de vista harmônico-acordal numa visão panorâmica da música para coro a -cappella européia.


Na sua explanação, lembrou que esses dois estilos distintos correspondiam a grandes fases da História da Música. Sem considerar a heterofonia mais remota da Ars Antiqua, poder-se-ia dizer segundo êle que os compositores, antes de 1600, ter-se-iam ocupado principalmente com a técnica polifônica. Através das edições dessas obras, iniciadas no séulo XIX, os músicos passaram a poder conhecer as grandes obras dessa época, aquelas de Josquin, Willaert, Lasso, Byrd e outros.


A mais importante característica dessa técnica segundo J. Boogaarts residia no fato de que todas as vozes possuiam uma grande autonomia, movimentando-se independentemente não apenas do ponto de vista melódico, mas também quanto à estrutura rítmica - uma música sem barras de compasso, cantada a partir de partes separadas, sem partitura, sendo a rítmica da textura vocal um resultado por assim dizer de uma acentuação livre de arsis e thesis, construída sobre grupos de valores de duas ou três breves ou semibreves.


Uma releitura da conferência então proferida indica a preocupação de J. Boogarts de valorizar o Canto Gregoriano no tratamento da questão polifônica, seguindo aqui a literatura e as concepções do movimento de renovação do Gregoriano do século XIX de Solesmes. Assim, segundo êle, a estrutura rítmica considerada de forma sumária da polifonia do século XVI seria aquela do Gregoriano como desenvolvida por D. André Mocquereau (1849-1930) no seu Nombre Musicale.


Um outro aspecto a que deu particular atenção na sua exposição foi aquele referente à convicção desde o Concílio de Trento de que o texto é mais importante do que a música, devendo ser sempre compreensível, fato justificável por reflexões de natureza pastoral. A inteligibilidade do texto, porém, não se coadunaria com a estruturação polifônica, de modo que desde então poder-se-ia observar uma tendência crescente à técnica homofônica.


O panorama traçado tinha consequências para a consideração da tradição dos motetos no Brasil. O conferencista salientou o processo de predominância gradual da música com acompanhamento instrumental no Barroco no âmbito católico - no Protestantismo, desenvolveu-se um tipo de composição homofônica com texto em vernáculo, muito simples na sua maior parte. Na música sacra católica, compositores como Lallande, Charpentier e outros procuraram manter a técnica a-cappella ao lado das formas com acompanhamento instrumental, como no caso de Lotti.


Uma colocação peculiar do conferencista disse respeito a desenvolvimentos que teriam ocorrido ao redor de 1700. Até então, a música sacra teria sico ainda primordialmente ligada à liturgia, ou seja, concebida expressamente para o culto. Aos poucos, porém, os compositores teriam passado a escolher textos nos quais podiam expressar sentimentos, entre êles dando preferência ao Requiem, em particular ao Dies Irae e o Stabat Mater. A maior parte dos poucos exemplos de música sacra sem acompanhamento dos séculos XVIII e XIX consistia em obras originadas de uma união emocional do compositor com determinados textos ou em composições destinadas a uma prática religiosa paralitúrgica.


Para Boogaarts, o que Solesmes tentara realizar relativamente ao Canto Gregoriano no século XIX, o movimento de Regensburg (Ratisbona) o teria feito no concernente à polifonia. Esse movimento criara as pré-condições para a Renascença palestriniana no século XIX e XX. Essa época foi também aquela do desenvolvimento da Musicologia e da primeira edição completa das obras de Palestrina.


Digno de particular atenção na releitura de sua exposição de 1981 é o fato de ter considerado o significado artístico das obras criadas no âmbito do movimento ceciliano, uma posição que demonstrava a sua visão de regente e músico prático que se guiava primordialmente por critérios qualitativos musicais. Para o regente, composições nascidas sob a influência desse movimento de Ratisbona não teriam ultrapassado o nível de obras epigonais. Eram composições em um neo-estilo que, com exceções, já não mereceriam ser executadas na atualidade.


Apesar disso, não se deveria porém desvalorizar as intenções que tinham levado ao surgimento dessa neo-Polifonia. De início, tratava-se de uma nostalgia romântica, de uma procura do desconhecido medieval, comparável ao neo-gótico na Arquitetura. Entretanto, através desse movimento, ter-se-ia readquirido uma visão mais clara do tipo qualitativo de música litúrgica.


Segundo a visão panorâmica oferecida no Simpósio, a música com acompanhamento instrumental ter-se-ia cada vez mais afastado dos limites vocais no decorrer da primeira metade do século XX. Esta teria sido uma das razões do aparecimento de uma segunda forma de prática musical ao lado da música sacra de qualidade artística. Esta prática musical teria recebido influência da música ligeira, até mesmo do jazz, assim como da música popular com bases comerciais da sociedade de consumo.


Sintomático da visão de regente que marcou a exposição foi a apreciação singularmente depreciativa de produção musical de renomados compositores eclesiásticos da época mais recente. Grande parte de regentes e coros passaram a procurar um tipo de música sacra que correspondesse à satisfação pessoal dos executantes e/ou à ação dessa música nos ouvintes. Essa música, pretenciosamente de importância e fácil de ser executada, era intercalada com solos e acompanhada por órgão. A Missa Secunda Pontificalis de Lorenzo Perosi (1872-1956) seria um exemplo desse tipo de composição. Os coros quase que não se relacionavam com a liturgia, sendo a ação nos coros mais importante do que aquela no altar.


Nas cidades maiores da Europa, segundo o conferencistas, havia um outro tipo de coros. Estes dedicavam maior atenção ao Gregoriano, procurando tirar dele o fundamento de todo o repertório. Trabalhavam sempre com meninos, cantando obras da Renascença, além daquelas de compositores modernos. Estas eram aquelas que, com contraposição às tendêncis neo-estilísticas, procuravam seguir antes estilos instrumentais modernos, embora os seus autores procurassem escrever em estilo melódico-vocal as suas obras ligadas à liturgia. Entre os autores que podiam ser aqui citados, o conferencista lembrou de H. Lemacher (1891-1966), F. Poulenc (1899-1963), H. Schroeder (1904-1984), H. Badings (1907-1987), M. Jobst (1908-1943), O. Messiaen (1908-1992), A. Jenny (1912-1992), S. Jaeggi (1903-1957), K. Johansson e L.Toebosch (1916-2009). Esse repertório a-cappella era porém insuficientemente apreciado e valorizado.


Passando a tratar do desenvolvimento posterior à Segunda Guerra, Boogaarts ofereceu um panorama que, partindo de uma situação inicialmente favorável, era marcado por uma crise. Com o incentivo do ensino musical e com o apoio das associções de música sacra, muitos coros tinham chegado a atingir um nível elevado. Muitos músicos tiveram assim a sua formação em coros de igreja.


A partir de meados da década de sessenta, porém, essa estrutura da prática sacro-musical sossobrou em grande parte. Apesar do Concílio Vaticano II ter colocado em primeiro lugar expressamente o latim e o Gregoriano, além do repertório polifônico, na prática passou-se a observar apenas a permissão do uso do vernáculo. Com isso, muitos músicos profissionais passaram a renunciar a um trabalho como músicos de igreja. O repertório de coros juvenís passou a ser na sua maior parte limitido a contrafaturas do repertório de canto profano ou de uma homofonia simples derivada da música de igreja protestante.


A situação da música sacra na Europa à época do Simpósio seria, assim, má. Apenas em alguns centros procurava-se ainda cultivar o repertório clássico, em particular de cantos do Ordinarium, executados em missas solenes em vernáculo.


De uma visão de regente do desenvolvimento histórico à concepção musical da liturgia


Importante nas concepções de Boogaarts foi o de salientar que essa situação não tinha um significado negativo apenas sob o ponto de vista da prática musical: a rítmica específica que caracterizava a estrutura da missa solene na sua plenitude teria sido eliminada nas suas bases.


Apesar desse desenvolvimento, a música para coro a-cappella despertava ainda o interesse geral. Era fácil de ser conseguida, graças a edições musicológicas como o Corpus Mensurabilis Musicae. Muitas dessas obras podiam ser conhecidas através de gravações, de modo que a música litúrgica do passado continuava a ser parte integrante de programas de concerto. Também e sobretudo sociedades corais menores e núcleos urbanos de menores dimensões passaram a manter esse repertório. Entretanto, a natureza da música ligada à liturgia, sobretudo aquela anterior a 1600 exigia que se reconhecesse que essa música perdia grande parte do seu conteúdo específico quanto executada fora do campo de forças rítmico da liturgia.


O autor ofereceu, assim, com a sua interpretação de desenvolvimentos, uma visão musical ampla ou metafórico-musical da liturgia. Esta seria na sua estrutura global, um Todo de tensão rítmica, onde a música ocupava uma função culminante.


Essa concepção baseava-se na convicção de que apenas se pode transmitir valores imateriais ao homem através de formas materiais. Na liturgia, a perfeição do Eterno imaterial apenas poderia ser expressa aproximadamente através d forma mais perfeita. A sua preocupação foi a de mostrar que a liturgia possui uma Rítmica específica que não deveria ser turvada pela música, mas sim por ela apoiada. A atuação sacro-musical devia servir a transmitir, através da harmonia terrena, uma imagem da liturgia celestial.


Na Europa, os regentes e músicos de igreja se deparavam com a tarefa imensa de não apenas conservar a música sacra, trabalho feito pelos musicólogos e por músicos que executavam essas obras, mas sobretudo de dar novos impulsos a essa música, de lhe dar nova força, deixando-a ter funções no contexto litúrgico para que pudesse corresponder a seu conteúdo por excelência, devolvendo também às formas litúrgicas a Perfeição que necessitavam.


O latim, o Canto Gregoriano, a música polifônica concebida segundo o espírito do Gregoriano e o quadro geral litúrgico formavam para o especialista um todo inseparável. A música polifônica seria sempre sentida como uma contribuição culminante, comparável a um capitel de templo grego. Manter tal unidade tornava-se mais difícil com uma polifonia acompanhada pelo órgão ou orquestra, uma vez que essa música se afastava do contexto litúrgico do Gregoriano em latim. Muitas dessas obras chamavam demasiadamente a atenção dos ouvintes, prejudicando assim o Ordo litúrgico.


Visões de regente de problemas - prática coral nas suas implicações político-culturais


Um outro problema que se colocava segundo o estudioso era de cunho estético. A sociedade européia-ocidental estaria tão condicionada pela máquena industrial, tão voltada ao rendimento econômico que o homem se tornara demasiadamente rude na sua sensibilidade.


Tanto para o clero como para os fiéis, na sua maioria, o usual do quotidiano tornara-se norma, de modo que o músico de igreja que procurasse fazer algo acima do trivial tinha de lutar contra obstáculos. Somente, porém, através de exigências mais severas é que se poderia levar os ouvintes a perceber através da vivência qualidades do Belo, da absoluta Perfeição da liturgia celestial.


Naturalmente, esses esforços teriam repercussões na sociedade global, Quando se estivesse convencido da organicidade que deve haver na liturgia e no todo do ano litúrgico perguntar-se-ia como é que uma tal otimização poderia ser alcançada. Tudo isso significaria que sobretudo a música homofônica, dominada por uma estrutura métrico-rítmica não servia para funcionar como música litúrgica.


O coro devia estar sempre consciente que o fazer música em coro representa uma atividade social: o indívíduo é subordinado ao todo. Cantar em coro significaria primordialmente ouvir o outro em todos os aspectos e isso devia ser exercitado continuamente. Os exercícios de respiração e técnica vocal seriam adequados a essa conscientização. Principalmente nos coros infantís, a melhor sonoridade seria alcançada através de ensaios variados, regulares mas curtos.


Cada ensaio deveria conter exercícios para o desenvolvimento da concepção sonora e da memória auditiva. Com a indispensável leitura musical, era possível que um coro, acostumado a cantar por imitação, conseguisse dentro de pouco tempo cantar à primeira vista. A improvisação surgia como um bom meio para o desenvolvimento da consciência sonora, dando ao cantor uma liberdade maior relativamente aos outros. Por outro lado, isso daria à voz mais possibilidades de adaptação a uma sonoridade coral homogêna. Principalmente a improvisação em antigos modos eclesiásticos seria de importância para a execução de música antiga.


Na música a-cappella, ter-se-ia também o grande problema representado pela afinação. Esses problemas de afinação teriam surgido através do desenvolvimento da música polifônica para instrumentos de teclado. Antes do período renascentista, usava-se a afinação pitagórica: quintas e oitavas puras. No decorrer do tempo, o intervalo de terça passara a ser considerado consonância, levando a um predomínio da afinação das terças à custa daquela pelas quintas. Por isso, também na música renascentista deveria dar-se preferência a terças puras no lugar de quintas puras. Para o cantor de coro era difícil perceber a problemática da assim chamada coma sintonica. Cada semitom devia ser entoado um pouco maior do que no sistema temperado, de tal forma que entre mi/fa, si/do o mi e o si sejam pouco mais baixos; aparecendo acidentes transitórios, as notas bemolizadas devem ser cantadas mais alto e as notas elevadas mais baixo. Um coro, no qual cada membro escute um ao outro, alcançaria logo um alto grau de pureza de afinação.


Um regente devia ser tão exigente a ponto do coro ter a impressão de que se estaria exigindo demais. Constatando, porém, que tudo pode ser alcançado com esforços, a prática teria efeitos educativos.


O mesmo valeria com relação ao repertório. Na Europa, com o aumento de programas de emissoras e de gravações, e consequente difusão de obras, muitos coros desejavam executar as obras já conhecidas, em geral acima de suas possibilidades. Para a liturgia, esse desenvolvimento seria fatal.


Como docente de regência coral, o especialista holandês permitiu-se fazer algumas sugestões que contribuiriam ao alcance da unidade por êle defendida na estruturação litúrgica das celebrações. A obra de Orlando di Lasso ofereceria uma possibilidade mais acessível de se estruturar uma missa solene. Já mostram uma tendência à homofonia, uma preparação às técnicas de estruturação posteriores, representavam porém uma transição àas obras polifônicas mais complexas. O trabalho com os contemporâneos de Lassos, por exemplo Arcadelt, Vittoria, Aichinger e outros também representaria um pressuposto para o conhecimento mais sólido das obrs mestras da polifonia franco-flamenga. Um caminho natural seria o de partir da Missa brevis de Palestrina, passando pela Missa Philomena de Gombert até alcançar uma das obras mestras da polifonia, como o moteto Huc me sidereo de Josquin.


Uma boa configuração musical da liturgia poderia também ser alcançada através da chamada prática alternada entre coro e comunidade. A Missa De Apostolis de Heinrich Isaac e a Missa paschalis de Ludwig Senfl, entre outras, seriam excelentemente apropriadas a uma integração do Canto Gregoriano no contexto litúrgico. Evidentemente, as peças de curta extensão, adequadas para a prática alternada, eram bem recebidas pelos coros de igreja. Entre os exemplos, citar-se-ia a Ave maris stella de Dufay, a Salve Regina d Obrecht e muitas composições do Magnificat dos séclos XV e XVI. Também de épocas mais recentes existiriam peças que permitem execução alternada, como a Missa Breve De Angelis de Jacques Chailley.



Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo




Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "A prática polifônica a cappella entre seu significado musicológico, prático-musical
e a sua função no culto. Irradiações de meditação musical no tombamento das igrejas de São Francisco em São Paulo (1981)".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/13 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Polifonia-no-Brasil.html