Do Reino da Terra Firme ao presente
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 172
Correspondência Euro-Brasileira©
Do Reino da Terra Firme ao presente
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 172
Correspondência Euro-Brasileira©
Cartagena de Indias. No Texto: Univ. Catolica de Eichstätt. Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.
N° 172/1 (2018:2)
Colombia, Panamá, Costa Rica & Brasil
Do „Reino da Terra Firme“ ao presente
Análises de condicionamentos culturais e Esclarecimento
- ampliação de visões no repensar relações do homem com a natureza -
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Índice da edição Índice geral Portal Brasil-Europa Academia Contato Convite Impressum Editor Atualidades
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Dá-se, assim, continuidade à revista que abriu o corrente ano, dedicada que foi ao mundo insular caribenho. (Veja)
Não foi a primeira vez que se realizaram estudos euro-brasileiros nos três países agora considerados. (Veja) Esse interesse justifica-se pelo significado dessa região para os estudos de processos culturais em relações globais.
Sobretudo sob a perspectiva da história e do presente de caminhos, de elos e interações entre a esfera do Atlântico e do Pacífico, esses países adquirem especial relevância atual por serem marcados por costas nos dois mares e pela mais estreita faixa de terra que os separam no continente.
Atualidade da retomada de estudos da Colombia, Panamá e Costa Rica
A ampliação recente do canal interoceânico do ístmo do Panamá, ca. de um século após o seu término, trouxe novamente à consciência o significado dessa região sob os mais diferentes aspectos para estudos que consideram desenvolvimentos globais.
A consideração de processos transatlânticos, atlântico-pacíficos e mesmo transpacíficos relaciona-se com aquela de desenvolvimentos inter- e transamericanos. O significado dessa região com características e ponte entre continentes e oceanos torna-a imprescindível para estudos culturais das Américas nas suas relações com outros continentes.
Diálogos e tomada de consciência de referenciais e posicionamentos
Esses estudos exigem cooperações interdisciplinares e estas esforços no sentido de perspectivas adequadas na análise de desenvolvimentos.
O alcance de visões abrangentes tem como pré-condição a tomada de consciência por parte daquele que analisa relativamente aos condicionamentos culturais que determinam visões e estabelecem referenciais.
O observador brasileiro, pela sua formação, tende a ver contextos e desenvolvimentos e a considerar fatos, ocorrências e vultos a partir de um outro posicionamento e outras perspectivas do que aquele formado em países latino-americanos de passado colonial espanhol. Essas diferentes posições remontam historicamente à divisão do globo entre a Espanha e Portugal à era das Descobertas.
A visão de desenvolvimentos partidos de Portugal é antes dirigida ao Oriente, alcançado então através do contorno da África em rumo ao Índico, enquanto que a visão daqueles partidos da Espanha corresponde a caminhos históricos dirigidos ao Ocidente. Compreende-se, assim que os países hispânico-americanos e a América colonizada pelos portugueses encontrem-se por assim dizer de costas, olhando o Brasil o mundo em direção ao Atlântico.
Posições e perspectivas explicáveis pela história colonial na consideração de processos e interações globais tem constituido uma preocupação já de longa data nos estudos que tematizam a necessidade de uma atualização de visões nos estudos interamericanos e transatlânticos.
O pouco conhecimento recíproco de vultos e datas históricas, o desconhecimento mútuo da literatura nas diversas áreas dos conhecimentos, da situação e de tendências do pensamento e da pesquisa demonstram da forma mais evidente a existência de diferentes culturas de saber determinadas pela formação daqueles que se dedicam ao estudo de processos nas suas amplas dimensões.
A experiência dessas diferenças que dificultam diálogos e cooperações favorece o reconhecimento da necessidade de atenção aos condicionamentos culturais que marcam visões históricas, conhecimentos, interesses, questionamentos e interpretações que influenciam e mesmo determinam desenvolvimentos.
A ampliação de visões surge como necessária para a aproximação em consciência continental de países que passaram por similares processos de formação colonial e de relevância perante a importância que adquire a esfera do Pacífico na atualidade.
Condicionamentos culturais nos seus fundamentos e abrangência
A tomada de consciência dos problemas resultantes de estreitezas de visões explicáveis por condicionamentos culturais determinados pela história colonial leva as reflexões de maior amplitude e profundidade.
Para além das diferenças quanto a referenciais, a atenção deve-se dirigir aos condicionamentos derivados do sistema de concepções e imagens da visão do mundo e do homem que se encontra à base dos processos de expansão européia, independentemente da nação condutora de sua transmissão ao Novo Mundo.
O reconhecimento e a análise de condicionamentos culturais a serviço da libertação de suas restrições e consequente abertura de visões, ainda que partindo do contexto latinoamericano, adquire um significado abrangente.
Esse intento vem de encontro assim por um lado às exigências que se impõem aos estudos culturais em dimensões globais desenvolvidos nos países considerados, tão marcados pela internacionalidade derivada de suas posições interoceânicas. Por outro lado, a análise de concepções transmitidas por um edifício cultural condicionador surge como necessária perante a desastrosa e trágica destruição do meio natural no continente e que é de significado global para a Humanidade e para o planeta.
Significado de estudos culturais nos países considerados - Cartagena de Indias
Entre êles, salienta-se Cartagena de Indias como capital cultural da Colombia, sede da Universidade de Cartagena que, com os seus cursos de pós-graduação e educação continuada, oferece possibilidades para estudos mais aprofundados e amplos.
Deve-se, sobretudo, salientar o significado dos museus locais, cujo significado ultrapassa de muito os limites de Cartagena, entre êles o Museu de Arte Moderna, e aqueles já considerados em estudos anteriores ali desenvolvidos: o Museu Nautico do Caribe, o museu do santuario de S. Pedro Claver, que se apresenta como „sede dos Direitos Humanos“ e, sobretudo, o museu da Inquisição. (Veja).
Focos da Cooperação Espanhola: diversidade, inclusão, anti-discriminação
A Cooperación Española no seu Centro de Formação - um dos vários na América Latina - manifesta explicitamente uma orientação voltada a questões sociais atuais no tratamento de temas culturais com o acento dado à diversidade, à inclusão e anti-discriminação.
A passagem do ano foi marcada por exposição de arte popular „pluriétnica e multicultural“, conceitos que indicam similares preocupações com aquelas de iniciativas culturais no Panamá e em Costa Rica. A valorização da diversidade étnica e cultural surge como um dos principais anelos nas reflexões e iniciativas atuais nos centros culturais dos países da região.
Transmissão de concepções através da linguagem visual e libertação
Um evento signicativo de abertura de 2018 foi o Bolívar Mural da Comunidad de Artistas Visuales de Cartagena y Bolívar, no qual a linguagem visual surge como meio a serviço de conceitos de sentidos políticos e culturais tais como os de resistencia, territorialidade, identidade e memória histórica.
Essa consideração de conceitos na atividade criadora manifesta a relevância da linguagem visual nessa iniciativa e no debate cultural. Ela vem ao encontro da atenção que vem sendo dada nos estudos de processos culturais à leitura de imagens e sinais, à percepção e compreensão de seus sentidos.
A menção do nome de Bolívar surge assim como significativamente oportuna para trazer à consciência que a consideração de condicionamentos mentais e psíquicos através de imagens transmitidas tem um significado de libertação ou independência de elos ou cadeias. Essas correntes prendem o homem a imagens e sentidos transmitidos subrepticiamente ou de forma pouco refletida através dos séculos.
Ponto de partida na consideração da esfera geo-cultural: o conceito de „terra firme“
Essa distinção, que expressa a visão dos navegantes europeus, teve a sua expressão em documentos vários e em tratos que marcaram a organização do espaço geográfico.
O conceito de terra firma ou costa firme surge em designações de territórios continentais do norte da América do Sul e da América Central descobertos a partir de 1498, tais como Nueva Castila de Oro del Reino de Tierra Firme, Castilla del Oro de Tierra Firme ou simplesmente Reino de Tierra Firme. O conceito de terra firme surge em posteriores denominações de órgãos político-administrativos ou militares do período colonial.
A denominação de territórios segundo regiões ibéricas - Nova Castela, Nova Granada e outras - revelam por sua vez projeções de configurações regionais e políticas da Espanha no Novo Mundo, representando sistemas de referências culturais dos descobridores, administradores e colonizadores.
A menção da Espanha e de regiões e cidades em combinação com o conceito de terra firme merece ser assim considerada com maior atenção. A projeção no mundo descoberto de regiões ibéricas relaciona-se com a visão de navegantes que, nas longas viagens marítimas, repletas de perigos e inseguranças, ansiavam em avistar o firme das „terras de Espanha“.
O uso do conceito de terra firme como denominação de reino ou província, sem a referência a uma terra da Espanha é impreciso quanto a determinações territoriais, modificando os seus limites no decorrer da história. É um fato compreensível, uma vez também que as terras foram descobertas, devassadas e possuídas gradualmente, ampliando-se a área vista inicialmente como firme.
Não é suficiente compreender a expressão terra firme simplesmente no sentido mais convencional de continente. Qual seria então o sentido de uma Castilla del Oro de Tierra Firme como Castilla del Oro „do continente“ se já existia uma Castela no continente europeu?
A terra firme de navegantes, a nave e a „Popa da Galera“ de Cartagena de Indias
O termo terra firma merece ser considerado no sentido de vigência de antigas concepções e imagens co-determinadoras de visões do mundo dos europeus que chegaram ao Novo Mundo pelos mares e de uma compreensão da existência como uma viagem em nave em direção a um porto.
Ter-se-ia aqui um complexo de sentidos associados à imagem da nave que, ainda que não-conscientes ou refletidos, co-determinaram modos de ver e ações, marcando procedimentos e processos culturais nas regiões descobertas e colonizadas. Nas análises de condicionamentos culturais, merece ser essa imagem considerada com especial atenção.
A barca e a viagem marítima ocupam compreensivelmente uma posição de relêvo no repertório de imagens de remotas origens, tanto em Ulisses e da Odisséia como na narrativa bíblica de Noé. No Cristianismo, a imagem surge nos Evangelhos, na nave de S. Pedro e na simbologia da Igreja. Em muitas ocasiões foram elas consideradas sob diferentes aspectos nos estudos até hoje desenvolvidos, salientando-se sobretudo aqueles voltados à sua vigência na tradição portuguesa e brasileira, podendo-se lembrar aqui o romance „A Nau Catarineta“.
Nesse intento, Cartagena de Indias adquire fundamental relevância. Ali se eleva os mares o „Cerro da Galera“, montanha que assim foi designada pelos navegadores que chegaram á região nas primeiras décadas do século XVI pela semelhança de sua forma com a de uma nave.
A imagem completa-se com a denominação de seu topo como de popa. A „Popa da Galera“ desempenhou papel de primeira grandeza na história religiosa e cultural de Cartagena, estreitamente relacionada com o convento que ali se edificou e que, conhecido como „convento da Popa“, constitui ainda hoje um dos principais bens culturais da região e do país, centro de peregrinações e de festas que são das mais significativas e concorridas de Cartagena.
Esse monte desempenha um papel de extraordinária relevância na história e na vida cultural de Cartagena com o convento dos Agostinianos que ali se situa e com as grandes festas populares da Candelária de dois de fevereiro. A sua importancia para os estudos de processos culturais - também daqueles relacionados com o Brasil - decorre sobretudo da narrativa histórica relativa às circunstâncias de sua fundação.
Os estudos relativos a condicionamentos culturais realizados em 2017 na antiga „Terra Firme“ tiveram no Museu ali instalado o seu ponto de partida e principal foco.
Referenciais: a projeção de contextos europeus e imagens exemplares
Regiões e cidades ibéricas projetadas nas terras descobertas possuiam características geográficas e históricas que as diferenciavam, tradições que se manifestavam no culto e em festas, despertando associações e levando a transposições sob diferentes aspectos ao Novo Mundo.
A maior evidência desse proceder segundo um próprio sistema referencial dos europeus encontra-se na esfera religiosa, fundamental em época que foi não só da expansão européia como também a do Cristianismo ocidental.
Sobretudo a transposição de formas de veneração de modêlos de exemplaridade humana de significado para a história, as tradições e a auto-consciência de regiões e cidades ibéricas foi expressão e fator de permanências e manutenção de elos afetivos e mentais.
Devoções de navegantes, conquistadores, administradores, colonos e mesmo religiosos, marcadas emocionalmente pelos contextos de sua formação de infância, juventude e vida, tiveram a sua expressão em dedicações de regiões e igrejas que marcaram a vida espiritual, festiva, mentalidades e fisionomias de cidades e regiões.
O culto de santos forneceu modêlos de exemplaridade nos quais se procurou diretrizes para comportamentos e procedimentos, ainda que por vezes concretizados de forma que retrospectivamente surgem como altamente questionáveis.
Como já considerado na esfera insular, devoções de imagens estreitamente relacionadas com determinadas cidades da Espanha - como a de Nossa Senhora de Antigua de Sevillha por Colombo - marcaram não só a vida de navegadores como também a designação de terras, que em parte até hoje se mantém e que são veneradas como padroeiras de países. (Veja) Nossa Senhora de Antigua foi a padroeira da primeira cidade na terra firme, a de Darién no ístmo. (Veja)
Também em Cartagena relata a tradição que um frei da Popa da Galera procurou uma imagem de Maria com as características daquela que conhecia da sua terra natal, com a qual estava vinculado emocionalmente e que a obteve sob circunstâncias inexplicáveis, como de milagre.
Embora transmitidos com características resultantes de desenvolvimentos de determinadas regiões e cidades, essas imagens concretas representavam por sua vez expressões particulares de imagens mais gerais e que atualizavam de forma contextualizada: uma imagem - pintura ou escultura - de Maria com as características e os valores emocionais da venerada em Sevilha ou outra cidade era expressão em plano de maior abstração de Maria como imagem de concepções de fundamentação teológica.
Para além da consideração de transposições de imagens de determinados contextos europeus nas suas implicações quanto a elos mentais e psíquicos com situações de origem e como referenciais, a análise de condicionamentos culturais deve ir mais longe, considerando as imagens em plano mais geral do que aquelas que as representam de forma contextualizada. Esse intento vem ao encontro de estudos de imagológicos de um sistema cultural de antiga proveniência e que, em si, possui mecanismos que possibilitam atualizações em diferentes situações e referenciações históricas.
Distância do observador, perspectivas e visões mais amplas
Intentos de análise de condicionamentos culturais no presente levam à consideração do próprio condicionamento cultural daqueles europeus que transmitiram ao Novo Mundo o sistema cultural condicionador. A atenção deve ser dirigida não só a imagens em determinados contextos, e àquela imagem geral que é por elas atualizada nos diferentes contextos. Ela deve ir mais longe, procurando reconhecer e revelar a imagem-tipo subjacente e precedente da imagem que surge como anti-tipo e que passa a ser atualizada de forma contextualizada.
Para essa análise, o observador necessita amplar a sua visão em diferentes planos, uma vez que se trata de sucessivas individuações.
Essa abertura de perspectivas pressupõe uma posição de distância do observador relativamente ao observado.
Também aqui poder-se-ia considerar esse processo de distanciamento em diferentes planos. O primeiro seria aquele que leva o observador a ver o mais geral ou abstrato a partir do particular, um procedimento que exige atenção a sentidos mais amplos e profundos, e, assim, concentração e compenetração. Esse primeiro passo seria aquele do observador integrado no próprio sistema cultural e que deste se afaste em recolhimento para, concentrado, captar e contemplar sentidos mais profundos e amplos. O segundo passo seria o de reconhecer, nessa imagem condutora e anti-típica, o tipo a ela subjacente e que é também o tipo de sua representação contextualizada. Esse passo leva a um distanciamento relativamente ao que precede a imagem condutora e que é inerente ao próprio sistema. Um terceiro passo seria o de ampliar a consideração do tipo para além do contexto narrativo no qual se insere o anti-tipo, investigando seus paralelos em outros contextos. Já aqui ocorre um afastamento relativador do sistema de sinais transmitido. Por fim, a visão mais ampla é alcançada com uma posição de distância relativamente a todo o complexo de concepções e imagens-
Também para o aprofundamento e diferenciação dessas reflexõs oferece-se Cartagena de Indias como centro particularmente favorável. A sua história cultural é marcada pela tradição de recolhimento e de clausura transmitida pelos religiosos Agostinianos que fundaram o Convento da Popa e que remonta à vida eremita em distante passado.
Continuidade de reflexões iniciadas no Brasil há 50 anos
As reflexões encetadas no museu do Convento da Popa constituiram um momento no desenvolvimento do pensamento voltado à renovação de estudos culturais iniciado em São Paulo em meados da década de 1960. No âmbito das reflexões levados a efeito na procura de consideração de diferentes,por vezes conflitantes concepções e aproximações, realizaram-se diálogos no Colégio Santo Agostinho, em São Paulo. Concomitantemente, realizaram-se estudos e reflexões no colégio das Cônegas de Santo Agostinho (antigo Des Oiseaux), salientando-se aqui a personalidade de Eleanor Florence Dewey. (Veja)
Nesses encontros, realizados na atmosfera marcada por recolhimento nos respectivos colégios, procurou-se um afastamento relativamente à agitação da cidade e da sociedade, dos múltiplos envolvimentos e interesses como pressuposto para estudos mais aprofundados. Considerou-se, nos diálogos no Colégio Santo Agostinho, que um dos fatores da escolha do assim-chamdo Morro Vermelho no bairro do Paraíso pelos Agostinianos foi justamente o da procura de um local mais distante, favorecedor de recolhimento.
Vindos para São Paulo em fins do século XIX, os Agostinianos assentaram-se no bairro da Luz, onde fundaram o Colégio da Luz, atuando também na Igreja da Boa Morte. Essa trajetória pareceu revelar uma coerência de sentidos que marcou também a escolha de contextos para a realização de eventos da sociedade então constituída (Nova Difusão, 1968), sendo apresentações sacro-musicais levados a efeito tanto na Luz como na Boa Morte. O significado da veneração de Nossa Senhora da Luz na tradição agostiniana foi salientado em diferentes ocasiões.
Atualidade dos estudos: 400 anos de Frei Andrés de San Nicolás (1617-1666)
A recapitulação dessas reflexões após 50 anos justifica-se pela atualidade de duas comemorações que trazem à consciência o significado da tradição agostiniana sob dois aspectos aparentemente contraditórios: aquele que levou à reforma protestante e aquele que tornou-se motor da reforma interna católica e, assim, da contra-reforma protestante.
No Ano Lutero de 2017, discutiu-se o fato de ter sido o reformador e principal vulto do Protestantismo um membro dos Agostinianos. Considerado esse ano e a década que o precedeu sob o aspecto do significado da Reformação para o Brasil em diferentes contextos e ocasiões, levantou-se frequentemente a questão dos pressupostos ou desenvolvimentos precedentes que explicam anelos reformatórios na tradição de pensamento e vida em que se inseriu o reformador.
No sentido dos estudos de processos coloniais na área estudada, porém, a principal justificativa dessa atenção residiu nas comemorações que, na Colombia, marcaram a passagem dos 400 anos de uma das mais destacadas personalidades dos Agostinianos Recoletos: Frei Andrés de San Nicolás.
Como vulto destacado da história da ordem, assim como cultural e literária não só colombiana, pelo fato de ter vivido e atuado em Roma e na Espanha, o jubileu teve significado também na Europa e em outros continentes. Vários aspectos de sua vida e obra foram considerados, trazendo à luz a necessidade de uma maior consideração do papel exercido pelos Descalços ou Recoletos em processos culturais nas Américas.
Essa atenção vale sobretudo para os fundamentos da ordem Agostiniana nas suas origens medievais de união de eremitas, o que torna compreensível o seu significado para reflexões concernentes ao recolhimento e afastamento da sociedade. Não mais vivendo em regiões desertas, mas em centros urbanos, traziam a tradição de recolhimento e da vida penitente às cidades, onde passaram a atuar através da pregação, do ensino e, de particular significado para as Américas, da missão.
Nesse sentido, a imagem do „deserto“ na obra de Fr. Andrés de San Nicolás mereceu ser considerada nos estudos realizados na Colombia, tanto no contexto da narrativa bíblica do Velho Testamento como no Novo Testamento. (Veja)
A tomada de consciência de que o termo não pode ser compreendido apenas no seu sentido mais comum de deserto de areia, mas sim no de lugar deserto ou pouco frequentado, ermo, distante; traz à luz os sentidos metafóricos do termo e a compreensão de sentidos de narrativas não literal, mas sim também como indicativo de um distanciamento interior, de um afastamento relativamente à sociedade ou à vida de cidades, mesmo que nelas vivendo.
Contextualização na Espanha em décadas marcadas pela reforma católica restaurativa
A atuação dos Recoletos nas Américas pressupõe sobretudo a consideração da reforma católica na Espanha em fins do século XVI e início do XVII no contexto mais amplo do movimento de reforma/contra-reforma que teve o seu marco no Concílio de Trento (1545-1563).
O „altar de oro“ da igreja os Agostinianos do Panamá - principal monumento de arte do país - oferece possibilidades privilegiadas para análises de expressões visuais de concepções teológicas no sentido da Reforma tridentina. (Veja)
A consideração de que os Recoletos foram representantes de um movimento de reforma no sentido restaurativo de retorno ás bases doutrinárias e da tradição em afastamento de todo o mundano em formas de expressão do culto, traz à consciência relações entre o afastamento do mundo na tradição eremita e tendências restaurativas.
Na atual discussão sobre o fundamentalismo religioso, esses riscos decorrentes de um intento de distanciamento do considerado como mundano merece ser discutido. Somente uma posição de distanciamento relativamente ao próprio condicionamento cultural pode relativar esse perigo decorrente da procura do „deserto“ da tradição, tomando-se consciência da necessidade de uma posição de distância na avaliação de concepções de distância transmitidas.
Distanciamento relativamente ao mundano de cidade portuária e comercial
O papel dos Agostinianos, de sua orientação religiosa e seu modo de vida em pobreza como virtude evangélica, assim como da vida em fraternidade segundo o modêlo apóstolico e da reforma no sentido de retorno ao fundamental em processos culturais nas Américas torna-se compreensível no seu significado considerando o desenvolvimento de centros portuários e comerciais marcados pela riqueza e pela procura de riquezas e de vida luxuosa com desatinos de toda a ordem: escravidão, insegurança e violência.
Com a sua tradição, os Agostinianos entenderam-se como uma espécie de corretivo em época na qual o processo expansionista da Europa alcançou do Atlântico a área do Pacífico em direção ocidental.
Personificação de princípio do mundo material: o „cabrón“
Cartagena adquire um especial significado para estudos de história das religiões e de concepções e práticas religiosas populares. É compreensível que, em sociedade marcada por ambiçoes materiais e problemas humanos, anseios, crimes e inseguranças tenham fomentado práticas vistas como condenáveis pela Igreja. O fato de ali instalar-se um tribunal da Inquisição revela a intensidade de práticas vistas como de feitiçaria e que resultariam de um pacto com o „príncipe deste mundo“. (Veja)
O local dessa entidade era fora da cidade, na região erma da Popa da Galera. Ali encontrava-se a sua imagem e ali realizavam-se oferendas e atos com danças e muito tabaco. O levantamento de uma cruz no alto da Popa foi o primeiro ato dos religiosos que procuraram combatê-la.
Dando continuidade a preceito, a entidade condutora das práticas combatidas era designada por cognomes e eufemismos, salientando-se aquele de „cabrón“.
Esse termo correspondia à linguagem visual que atribuia à chifres e outros atributos caprinos à imagem dessa entidade, correspondia também ao uso do termo „cabra macho“ na linguagem coloquial nos seus múltiplos sentidos de ludibrador, trapaceiro, „trickser“, malandro mas também de „compadre“ ou outras designações que sugerem uma falsa amizade interesseira por atrás de atitudes diplomáticas.
A „limpeza“ com a derrubada dessa entidade dos altos da Popa deu-se com a vinda de religioso agostiniano que, conduzido por uma visão de Maria, ali deu início ao convento e lançou os fundamentos do culto mariano que até o presente determina a vida religiosa e cultural de Cartagena.
Mal-entendidos quanto a origens - o desconhecimento dos mecanismos do sistema
„Cabrón“ é um termo que indica a procedência das concepções e práticas da esfera ibérica, em particular através das Canárias.
Também nessas ilhas, as primeiras alcançadas em processos de expansão européia e de transformação cultural cristianizadora de indígenas da Idade Média tardia, não só o termo, mas também as interpretações revelam problemas de não-entendimento dos mecanismos próprios do sistema de concepções e imagens que até hoje marcam os estudos culturais referentes à América Latina e, em especial, ao Brasil.
A suposição de continuidade de concepções religiosas aborígens ou africanas nas Canárias em estudos de fenômenos considerados sob a noção de sincretismo deriva - assim como nas Américas - do desconhecimento de que o próprio sistema cultural possui mecanismos que permitem referenciações com o pré-cristão em diferentes contextos, com o „velho“, com uma situação do homem visto como terreno ou carnal.
Essa harmonização, porém ocorre no plano do típico - não daquele do anti-típico que corresponde ao Novo.
O uso do termo „cabrón“ para designar um determinado tipo humano revela concepções relacionadas com o intelecto e com luz e trevas. Segundo a tradição teológica, a separação das trevas da luz, da noite e do dia da luz criada no primeiro dia corresponde às criaturas angelicais, também elucidadas como substâncias intelectuais.
O combate à entidade denominada por „cabrón“ pode ser assim entendido como dirigido ao intelecto decaído do homem, às trevas no seu interior em combate entre a noite e o dia no seu sentido metafórico. É essa substância intelectual sinistra que surge como príncipe de uma sociedade marcada por anelos de enriquecimento, como aquela de colonias como a portuária Cartagena de Índias.
Tarefa esclarecedora da Ciência e concepções de luz no sistema cultural
A função esclarecedora da Ciência exige, para ser cumprida, a elucidação dessas concepções relacionadas com a luz (e trevas) no condicionamento cultural.
Também aqui, portanto, torna-se necessária uma distância de observação para a obtenção de uma perspectiva mais abrangente, ou seja, um intento de esclarecimento no sentido de esclarecer concepções de esclarecimento inerentes ao sistema cultural.
A análise de concepções de luz transmitidas na expansão européia no Novo Mundo revela-se como fundamental perante o significado do culto de Candelária ou de Nossa Sra. da Luz ou das Candeias nas Canárias e na América Latina, salientando-se aqui Cartagena de Índias em correspondência à intensidade de sua veneração entre os Agostinianos.
Nas reflexões encetadas no museu instalado no Convento da Popa a atenção foi dirigida aos fundamentos dessa devoção no ato da Apresentação ao Templo narrada nos Evangelhos. Retomou-se ali o estudo do Nunc dimittis, o Cântico de Simeão no seu significado para estudos culturais que vem sendo desenvolvidos há décadas. É nesse canto que o filho de Maria é reconhecido pelo velho Simeão como luz e gloria do povo Israel. É ela que a porta, o que explica a imagem da vela ou da candeia e a denominação de Candelária. (Veja)
As expressões de regozijo que até o presente marcam a festa de 2 de Fevereiro elucidam-se nas suas características através de seus fundamentos tipológicos no Velho Testamento, uma vez que a Apresentação deu-se em cumprimento dos preceitos judaicos. Essas bases encontram-se na saída de Israel do Egito, na Aliança e no canto de Miriam e as mulheres do povo. Explica-se, nesse contexto, o significado de danças, em particular da cumbia e da simbologia do fogo e da luz nas grandes festas da Candelária de Cartagena.
Ciência e concepções de Conhecimento e da autoridade professoral no sistema
No seu sentido último, um procedimento científico que se dedique ao esclarecimento de condicionamentos culturais exige a consideração à distância de concepções de ciência e saber não só explícitas da história do pensamento, mas também aquelas intrínsecas à linguagem de imagens.
É nesse contexto que adquire o culto a Sta. Catarina de Alexandria particular relevância e que explica o seu significado em processos coloniais em diferentes partes do mundo e que se manifesta nos exemplos das igrejas de Goa (Veja) (Veja) e a da catedral de Cartagena de Índias. (Veja)
Como a narrativa hagiográfica revela, Catarina, convertida por um eremita em recolhimento ou em afastamento do grande centro do saber que foi Alexandria, foi com os seus conhecimentos e capacidade de esclarecimento, capaz de levar à conversão cientistas e eruditos, o que explica o fato de ser protetora de cientistas, filósofos, advogados, de universidades e instituições de ensino
Considerou-se, entre outros aspectos, os elos da imagem com concepções de vida ativa nas suas relações com a vida contemplativa, assim como com aqueles de casa, de atividades domésticas e de sede, trazendo à luz as suas relações com a cátedra, com sés, catedrais e com a autoridade do professar e do ser professor.
A narrativa de Sta. Catarina tendo como núcleo o seu feito de convencer os homens de saber do antigo mundo, revela uma convicção da insuficiência de uma procura de conhecimentos que tem como base o mundo percebido pelos sentidos, de uma ciência e filosofia natural, demonstrando a necessidade de ser o conhecimento guiado por um princípio mais alto, ou seja, pela Sabedoria divina.
Exigência de análise do transmitido culturalmente perante problemas ambientais atuais
A análise do condicionamento cultural exige também uma consideração dessas concepções a partir de uma visão mais ampla à distância. Esse intento representa uma exigência no presente, marcado que é pelos graves problemas ambientais que representam um risco para o homem, os seres viventes em geral, para o próprio planeta e que exige revisões de relações entre Cultura e Natureza e procura de novos caminhos.
Neste sentido, uma atenção especial merece as metas políticas e as iniciativas de proteção e conservação da natureza em Costa Rica com os seus numerosos parques e reservas. (Veja)
A meta política de neutralidade relativamente à questão climática segundo os princípios de mitigar e adaptar, corresponde a uma exemplar tomada de consciência da responsabilidade do homem perante desenvolvimentos globais.. No caso do aquecimento da atmosfera, os seus efeitos se manifestam sobretudo em regiões costeiras, de mangues e várzeas, uma problemática tratada no Tortuguero, o „Amazonas de Costa Rica“. (Veja)
A consciência das dimensões internacionais de problemas pode ser constatada na transparência com que se apresenta perante visitantes questões problemáticas como a do uso de agrotóxicos na agricultura industrializada. No caso do cultivo e da exportação da banana - significativo devido a interesse brasileiro recente em empresa atuante em Costa Rica - , o tratamento do problema em dimensões internacionais já não é tão marcado por posições político-ideológicas do passado recente, mas antes por preocupações ambientais globais. (Veja)
Processo de ocupação de terras nas preocupações relativas ao mundo natural
A ação do homem no meio ambiente, que hoje leva a situações críticas que coloca em risco a própria existência do homem, tem um caráter processual que deve ser considerado com particular atenção numa esfera do mundo determinada na sua história pela expansão européia.
Essa expansão levou do Atlântico ao Pacífico e as interações entre essas duas esferas do globo foram favorecidas no decorrer dos séculos pelo fato de ambas serem separadas pela relativamente estreita faixa de terra do Istmo do Panamá.
A história da ocupação de territórios é marcada pela fundação de cidades, transferências de pêsos quanto à sua função política e comercial e abertura de vias de comunição, caminhos, ferrovias e, sobretudo, do canal interoceânico do Panamá. A atualidade da recente ampliação do canal justifica a retomada de estudos sobre o seu significado ali desenvolvidos. (Veja)
Colón e Santos como cidades geminadas
O fato do Brasil e do Panamá possuirem duas importantes cidades portuárias geminadas - Colón e Santos - representa um ponto de partida para a consideração relacionada dos dois países. (Veja)
Para além das similaridades do ambiente natural das duas cidades, são sobretudo as suas funções portuárias e comerciais e o papel que nelas desenvolveram as ferrovias para o escoamento da produção agrícola que merecem ser focalizados.
O papel das ferrovias para a história da configuração urbana, étnica e cultural de cidades portuárias e comerciais pode ser estudo em particular em Puerto Limón, na Costa Rica, cidade marcada por diversidade étnica e cultural. (Veja) Desenvolvimentos da cidade e de sua arquitetura revelam similaridades com aqueles de cidades de outras regiões do globo, também do Brasil, e, vice-versa, cidades brasileiras contribuem à leitura de Puerto Limón.
Esse procedimento abre perspectivas para visões amplas esclarecedoras de desenvolvimentos locais, possibilitando apreciações à distância, como no caso da catedral de Puerto Limón. (Veja)
Processos urbanos em relações com a música - os Oratorianos no Panamá
O interesse por questões de urbanismo e arquitetura no processo de expansão e ocupação da „terra firme“ manifesta-se no centro de estudos na área arqueológica de Panamá Viejo e no projeto internacional que ali se desenvolve em cooperação com a universidade de Tübingen e que considera a cidade nas suas relações com configurações sociais e culturais. (Veja)
Não só a arquitetura, mas também a música deve ser considerada no estudo de processos em época marcada por anelos de reforma restaurativa na Igreja. A sua maior expressão é a presença do movimento oratoriano nas Américas, cujo monumento é o Oratorio da Cidade do Panamá. Coração e Lira surgem como imagens emblemáticas de intentos e desenvolvimentos. (Veja)
Elos culturais e afetivos com espaços, o „estar á vontade“ e restauração patrimonial
Na discussão de condicionamentos culturais deve-se considerar também aqueles derivados de elos emocionais e mentais com paisagens, cidades e regiões, ou seja, da perspectiva da análise urbanística e arquitetônica de orientação cultural.
A atualidade dessa consideração deriva da revitalização na Europa, de tendências voltadas ao „pago“ ou à terra natal, o que leva, na Alemanha, a um novo interesse pelo conceito de „Heimat“, de difícil determinação. Vindo de encontro a esse interesse, considerou-se esse conceito no sentido urbano de elos afetivos e mentais com bairros, quarteirões e ruas em dois casos, os centros históricos de Cartagena e do Panamá.
Em Cartagena, as reflexões foram motivadas pela escultura-monumento „Sapatos Viejos“, inspirada em poesia dedicada por seu autor à „minha cidade“. Essa plástica traz à tona a questão do „sentir-se em casa“ na cidade, do „estar à vontade“ e que se manifesta também na aparência de desalinho de velhas ruas e casas desgastadas. Essa visão poética revela também implicações desses valores afetivos com visões do passado idealizadas e que garantem a permanência ou reforçam condicionamentos culturais. (Veja)
No Panamá, a restauração do „Casco antiguo“, declarado Patrimônio Cultural da Humanidade, levanta problemas relativos ao processo de gentrificação, uma vez que os imóveis, valorizados com as restaurações, afastam os velhos moradores que ali tinham a sensação do „estar em casa“.
Com a nobilitação do uso de espaços através de museus, galerias, bares e restaurantes, com a vinda de artistas e intelectuais, constata-se uma transformação cultural que surge como paradoxal: a recuperação exterior de edifícios e ruas não corresponde à vivência dos espaços daqueles que neles se „sentiam em casa“. Revela-se aqui uma outra face das reflexões relativas a distanciamento: os edifícios são recuperados, conservados e valorizados, interiormente porém, passam por uma transformação, recebem novos sentidos e funções. (Veja)
Antonio Alexandre Bispo
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „Colombia, Panamá, Costa Rica & Brasil. Do „Reino da Terra Firme“ ao presente. Análises de condicionamentos culturais e Esclarecimento - ampliação de visões no repensar relações do homem com a natureza“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 172/1(2018:2).http://revista.brasil-europa.eu/172/Colombia_Panama_Costa-Rica.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
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Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
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