Lombardia-Brasil: Carlos Gomes (1836-1896)

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 161

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 161/01 (2016:3)



Tema em debate


Lombardia - Brasil
Europa supra-nacional e Europa de nações no debate atual em paralelos histórico-culturais
Do humano universal e do nacional em Antonio Carlos Gomes (1836-1896)


Visita à Villa Gomes em Maggianico/Lecco
50 anos de homenagem a Carlos Gomes em São Paulo (1966)

40 anos do início do programa euro-brasileiro em Milão (1976)

30 anos do Ano Carlos Gomes (1986)


 
A.A.Bispo/Villa Gomes. Foto H. Huelskath 2016. Copyright
O teor básico da presente edição da Revista Brasil-Europa, a terceira de 2016, é resultado das preocupações que dominam a atenção pública e os debates políticos e culturais na Europa e que também têm implicações para os estudos relacionados com o Brasil.


Sob o signo dessas preocupações é que aqui dá-se continuidade ao contexto epocal e regional que marca os trabalhos euro-brasileiros do presente: o da Primeira Guerra Mundial há cem anos nos seus antecedentes e consequências e que, no corrente ano, focaliza em particular aquelas de significado para as relações entre a Itália e o Brasil. (Veja)


Crise na Europa da atualidade: O revival do nacional e do nacionalismo


A vinda de grande número de fugitivos de países assolados por guerras e de migrantes de outras regiões do mundo para os países europeus leva a diferentes reações, a problemas e dilemas que suscitaram movimentos populares e a medidas. Vários países reestabeleceram controles de fronteiras, tornando atuais questionamentos e posições em intensidade que há alguns anos atrás teria sido inimaginável.


Se preocupações pela integração daqueles fugitivos que permanecerão nos países que os acolhem são gerais, procurando-se meios para que não se repitam êrros de migrações anteriores, registra-se, em movimentos populares e em partidos, o temor pela perda de identidade e de características culturais dos países europeus e mesmo do Ocidente, o que leva a clamores por uma renovada consciência patriótica e nacional.


O sucesso de movimentos e partidos que defendem posições nacionais no seu amplo espectro - atingindo extremismos nacionalistas - e os muitos países que levantam muros e barricadas nas suas fronteiras, indicam uma crise da Europa na configuração que assumiu nas últimas décadas.


Alguns dos críticos pleiteiam uma Europa de nações, um retorno a uma Europa reduzida a uma comunidade unida por interesses econômicos, não como uma estrutura supra-nacional que tome a si de forma tarefas e decisões que seriam da égide de cada nação. Em referendos populares, chega-se a colocar em voto o pertencimento ou não à Europa como hoje compreendida. Este foi o caso da Grã-Bretanha com o Brexit.


Muitas são as diferenças de opiniões, posições e visões que exigem considerações conduzidas com particular cuidado diferenciador. Sob todos os aspectos, porém, o revival ou o recrudescimento do sentimento nacional e do nacionalismo político é um de seus momentos do presente que exige particular atenção nos estudos de processos referenciados pelo Brasil.


Significado do revival de nacionalismos para os estudos euro-brasileiros


Os acontecimentos atuais adquirem essa relevância para os estudos euro-brasileiros como conduzidos pela A.B.E. devido ao fato de terem sido marcados desde o seu início por preocupações relativas ao nacional e ao nacionalismo no Brasil e, posteriormente, na Europa, pelos anelos e desenvolvimentos da integração européia.


As iniciativas e os estudos das últimas décadas estiveram sob o signo duplo dessas preocupações, refletindo em particular correntes do pensamento de união e anelos de superação de divisões e limites, de delimitações e estreitezas de visões nacionais.


Teve-se sempre em mente que modos de pensar e agir do passado marcado pelo nacionalismo em diferentes contextos foram fatores principais e mesmo motores de tensões e conflitos, tendo sido um fato relevante que levou à Segunda Guerra Mundial, com todas as suas atrocidades. Os debates das últimas décadas no âmbito do estudos euro-brasileiros foram assim primordialmente dirigidos à luz de uma crítica do nacional e de guiados por valores supra-nacionais.


As tendências quanto a posições e perspectivas que se constatam no presente, que acentuam o patriotismo e características de identidade de nações e que até mesmo manifestam uma perda do reservas quanto à correção política de uso de vocabulários e argumentações biologísticas, étnicas, "povísticas" (völkisch), identitárias anti-multiculturalistas e outras que pareciam pertencer ao passado, exigem análises que a expliquem.


Trata-se de um processo que se desenvolve no presente e que deve ser assim considerado em estudos culturais interdisciplinares que se propõem a analisar processualidades, como é o caso aqueles que são promovidos pela A.B.E..


Lembrando os problemas da ótica nacionalista nos estudos culturais no Brasil


A tomada de consciência da necessidade de novas orientações nos estudos culturais no Brasil em meados da década de 60 do século XX foi justamente resultado da constatação dos problemas derivados de visões, opiniões e posições na historiografia e nas áreas da pesquisa empírica da cultura do nacionalismo, mantidos sob muitos aspectos por autores posteriores.


Todo um passado de séculos anteriores ao que se postulou como momento de definição nacional no presente passara a ser desqualificado por pensadores que partiram de sua época como aquela de compleição nacional. Interpretações nacionalistas de expressões tradicionais populares levavam a suposições errôneas de origens que, já em meados da década de 60 do século passado, não podiam continuar a ser ignoradas na sua inexatidão. Hipóteses de origens assumidas como fatos nos estudos do Folclore e Etnografia tinham repercussões nos estudos históricos e, reciprocamente, visões históricas condicionavam hipóteses explicativas de tradições.


Foi sobretudo na música que se percebeu mais claramente esses problemas causados por visões de desenvolvimentos a partir de colocações ideológicas. Essa perspectivação levava à desvalorização e ao silenciamento de compositores e obras do século XIX e início do XX qualificadas como ainda por demais européias, internacionais, sem características brasileiras, criando-se uma cisão em desenvolvimentos e um marco referencial do "antes e do depois". Expressões artísticas, obras, correntes e compositores do século XIX - nas suas extensões até a Primeira Guerra - foram assim desvalorizadas como sendo emulações européias. Esquecia-se, porém, que o próprio movimento que se compreendia como porta-voz de linguagem e expressões nacionais na literatura e nas artes, julgando ter-se alcançado à época de seus protagonistas uma cristalização sócio-cultural do nacional, era êle próprio inscrito em processos de dimensões internacionais.


Antonio Carlos Gomes (1836-1896) na problemática do nacional e do nacionalismo


Os problemas manifestavam-se, já ao redor de 1966, de forma particularmente crucial no caso de um vulto da história da música do Brasil que não podia ser silenciado ou totalmente desvalorizado: Antonio Carlos Gomes.


Celebrado na sua projeção internacional como o maior compositor do Brasil e mesmo como o maior compositor das Américas, com a sua lembrança iluminada pelo fato de ter mantido modos de vida da terra natal na Itália, onde viveu e atuou, mantendo-se o "Nhô Tonico", impossível de ser esquecido por ter sido o autor da ópera que tematizou o Brasil nos palcos europeus do século XIX , o compositor de Il Guarany criou sempre grandes problemas àqueles preocupados em considerá-lo como nacional ou não.


A literatura a respeito de sua vida e obra testemunha o singular peso dado à questão do nacional e do nacionalismo em Carlos Gomes que até mesmo monopoliza atenções, como se não houvesse outros enfoques para a consideração do compositor internacionalmente respeitado. Mesmo aqueles que o criticavam, mesmo os modernistas que se distanciavam de sua estética, não ousaram em geral colocar em dúvida a sua projeção e o seu significado para o Brasil.


A problemática do nacional e do não-nacional de um compositor que escreveu as suas principais óperas em italiano, do patriotismo de um compositor que viveu e atuou na Itália mas quis morrer no Brasil, da sua brasilianidade ou italianidade transpassa de forma obcessiva e por vezes grotesca a literatura histórico-musical através das décadas.


Mesmo em períodos nos quais a sua obra deixou de ser apreciada e executada, nos quais passou a ser alvo de críticas nacionalistas dos anos 1920, 1930 e 1940, manteve-se uma celebração de seu vulto que toma aspectos heroicizantes. Nessa celebração destacaram-se personalidades e círculos estrangeiros, em particular ítalo-brasileiros, o que acentua a complexidade do tratamento de Carlos Gomes sob a perspectiva do nacional e do nacionalismo à sua época e após a sua morte.


Essa discrepância entre a apreciação e o significado da sua música, a crítica de sua linguagem musical não caracteristicamente nacional e a celebração do autor da Protofonia que era considerada quase que como um segundo hino do Brasil, despertador de sentimentos nacionais, foi um dos principais fatores que aguçou a sensibilidade para os problemas levantados por visões nacionalistas nas reflexões de meados de 1960.


A constante preocupação em detectar o que é ou não brasileiro na sua obra, manifestou-se não só na procura frustrante de traços objetivos de uso de configurações melódicas, rítmos, formas ou instrumentos sua linguagem musical como também na procura de dimensões outras do nacional, antes psicológico-culturais, que se manifestaria sobretudo em similaridades do seu melodismo com a modinha, sentidas como um "não sei quê de brasileiro" em algumas de suas obras.


Essas frequentes preocupações, ainda que derivadas de um direcionamento de atenções imposto por visões de cunho ideológico, favoreceram uma relativação de concepções que reduziam atribuições do nacional e do não-nacional à objetividade do uso de elementos e fórmulas conhecidas da esfera do folclore e do popular.


Essas preocupações avoreceram também o reconhecimento que tais concepções - substanciadas em obras de compositores nacionalistas de épocas posteriores - não deviam ser projetadas anacronicamente ao passado. Não essa projeção de critérios e de visões determinadas por esferas do erudito, do folclore e do popular, deveriam determinar procedimentos na renovação dos estudos, mas sim um orientação segundo processos históricos.


Esse direcionamento a processualidades devia valer tanto na consideração de Carlos Gomes e sua obra a partir de suas inserções em desenvolvimentos e contextos de sua época, como naquela do próprio nacionalismo no pensamento e dos estudos de décadas que o sucederam que tinha até então determinado visões.


A historiografia e o estudo de Folclore dessas décadas ou a ela recorrentes passaram a surgir não  mais como referenciais a-temporais na validade de posições, visões e interpretação, mas

como expressões de épocas e processos, passível de transformações, mutáveis como as próprias auto-imagens do país e relativados, tornando-se, assim, objetos êles próprios de análises: pesquisa da pesquisa, ciência da ciência.


Carlos Gomes em círculos ítalo-brasileiros e o Scambio culturale Italia-Brasile


Estas reflexões marcadas sobretudo pelo vulto de Carlos Gomes, por suas obras e sua interpretação na musicografia, foram particularmente prementes por serem encetadas no contexto de uma instituição de ensino que trazia o seu nome: o Conservatório Musical Carlos Gomes de São Paulo nos anos de sua transição a Faculdade de Música Carlos Gomes.


A permanente presença da memória do compositor na designação e nos atos desse conservatório era acentuada pelo fato de tratar-se de um dos mais importantes centros do ítalo-brasileirismo de São Paulo.


Villa Gomes. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright
A autoridade máxima da instituição - Armando Belardi (1898-1989) - era não só uma das mais ativas e influentes personalidades da vida operística de São Paulo, como também um dos mais atuantes promotores da obra de Carlos Gomes no Brasil e no Exterior. Juntamente com empresários, artistas e apreciadores do bel canto, estes sobretudo de círculos ítalo-brasileiros, empenhava-se na realização de óperas do compositor, na celebração de sua memória e na intensificação do intercâmbio cultural Itália-Brasil. (Veja)


A atenção dirigida a processos nas preocupações renovadoras de estudos músico-culturais trazia assim à consciência as relações existentes entre esses esforços de difusão e de promoção valorizadora de Carlos Gomes e sua obra com processos culturais desencadeados pela imigração italiana no passado e que atingia uma nova fase nos esforços de intercâmbio cultural Itália-Brasil.


Os extraordinários empenhos que levaram à vinda de todo o elenco do tradicional Teatro di San Carlo de Nápoles ao Brasil e a retribuição brasileira de levar à Itália grande número de artistas e técnicos para a representação do Il Guarany em programa de intercâmbio e difusão sob o patrocínio do Departamento de Cultura de São Paulo possuiam complexas dimensões emocionais e psicológicas de italianos imigrados e seus descendentes nas ambivalências entre patriotismo brasileiro e procura de auto-afirmação e intensificação de laços com o país natal ou de antepassados que fora aquele do sucesso de Carlos Gomes. (Veja)


Empenhos de difusão cultural revelavam-se aqui como objeto de análises e de promoção de concepções que possibilitassem esse distanciamento, ou seja de uma "difusão de novas visões de processos e iniciativas de difusão" (ND, 1968).


Carlos Gomes e os ímpetos anti-conformistas de novas gerações nos anos de 1968


Esse movimento de renovação de visões e práticas nos estudos culturais, caindo em época marcada por movimentos estudantís, por críticas a situações estabelecidas, a estruturas sentidas como ultrapassadas, a um status quo que se fazia sentir sobretudo na ópera e na prática musical convencional e de rotina profissional, não podia deixar de ser marcado por um desconforto relativamente ao conservadorismo do intercâmbio Itália-Brasil e ao papel nele desempenhado pela celebração de Carlos Gomes.


Esse desconforto acentuava-se devido às dimensões e implicações políticas que se revelaram sobretudo nas comemorações do centenário da apresentação de Il Guarany em Milão, em 1970, celebrado com ênfase simbólica nas escadarias do Museu Paulista do Ipiranga e que se processou concomitantemente a celebrações da "Revolução de 1964", instauradora do regime autoritário no Brasil.


Carlos Gomes surgia nesse contexto como figura-símbolo do conservadorismo, convencionalismo e estreiteza pequeno-burguesa daqueles que defendiam o status quo e que participavam de desenvolvimentos cerceadores da liberdade aos olhos de jovens que, correspondendo ao estado de espírito de inconformismo e inquietação que vigorava na juventude de 1968 em outras nações, também no Brasil procuravam liberar-se convenções e normas.


Assim como no Modernismo dos anos 20, Carlos Gomes tornou-se um dos alvos de crítica daqueles que propugnavam novos caminhos em espírito de libertação de normas de um academicismo tolhedor de forças criativas, também na movimentação da juventude ao redor de 1968, ainda que em diferente contexto, Carlos Gomes oferecia-se como emblema de situações estagnadas e forças reacionárias.


A imagem do Carlos Gomes com "juba de leão" e os descabelados da juventude de 1968


Por demais fixada na memória daqueles que tinham participado das inquietações inovadoras no Conservatório Musical Carlos Gomes de 1966 permanecia a imagem do compositor em quadro que pendia do seu auditório para que não reconhecessem que aqui vigoravam mal-entendidos e falsas interpretações, ocupações e instrumentalizações conscientes ou inconscientes que não faziam jus ao compositor e à sua obra no seu respectivo contexto histórico.


O Carlos Gomes com "juba de leão" descabelada e arisca, com o olhar fogoso de espírito inquieto ali retratado contrariava o Carlos Gomes  "penteado" a serviço da disciplina e disciplinação segundo preceitos de convenções e normas sociais, correspondendo antes ao espírito que se manifestava na aparência de muitos jovens da época, também estes cabeludos e despenteados.


A intuição e posteriormente o reconhecimento fundamentado da modernidade de Carlos Gomes na sua época foi, assim, favorecidos pela sua imagem, e o descabelamento segundo o seu modêlo tornou-se sinal de que uma reconsideração do século XIX e, nele, o de sua história e obra, não era expressão de passadismo nostálgico. Era, pelo contrário, uma exigência sentida por aqueles que desafiavam visões e concepções que tinham-se tornado convencionalmente aceitas mas que não faziam jus a muitas dessas personalidades que, como Carlos Gomes, participaram de processos culturais progressistas e esclarecedores de sua época.


Exemplo do emprêgo do descabelamento à Carlos Gomes para sinalizar um estado de espírito de desafio a convenções que encorajava a revitalização de obras do século XIX - apesar do ranço que poderiam ter - foi concerto com obras redescobertas de compositores paulistas realizado por aquele qu subscreve este texto à frente do Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo na Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte em São Paulo, em 1974.


Descabelados brasileiros na Europa da década de 70 e os scapigliati na Itália do século XIX


O início do programa de estudos euro-brasileiros na Europa, em 1974, caiu assim em época que, no Brasil, processavam-se agudas transformações na vida músico-cultural e no ensino, entre elas o abalo do sistema de conservatórios e o da vida lírica oficial, contextos que, em ambos os casos, eram marcados pela acentuada atuação italiana e ítalo-brasileira.


No mesmo ano que Il Guarany era apresentado pela primeira vez por grande elenco brasileiro na Sicília e levava-se o Lo Schiavo em São Paulo, assinalava-se o fim de uma "era Armando Belardi" na vida operística oficial.


A ressonância no programa de estudos então iniciados na Europa da vinda de tantos artistas brasileiros e a da apresentação após tantas décadas de Il Guarany na Itália, foi acompanhada por reflexões quanto ao sentido desse acontecimento. Esse empreendimento fora um ponto culminante do intercâmbio Itália-Brasil, mas, ao mesmo tempo, apresentava-se como ponto crucial de um sistema e suas concepções em crise que pareciam desmoronar.


As discussões foram levadas a efeito sobretudo no âmbito do projeto "Culturas Musicais da América Latina no século XIX" desenvolvido no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia. (Veja)


Uma das principais preocupações desses estudos conduzidos sob intentos de direcionamento segundo processos na orientação brasileira foi a de reconhecer o contexto e as correntes culturais em que se inseriu Antonio Carlos Gomes na sua formação e atuação na Itália revelando-se em particular o significado do movimento da Scapigliatura lombarda. (Veja)


A imagem que tanto marca Carlos Gomes com a sua cabeleira revolta e a sua correspondência em jovens brasileiros dispostos a repensar o passado do século XIX, procurando uma renovação de perspectivas musicológicas, tornou-se condutora na consideração do movimento dos descabelados italianos do movimento em que se inscreveu o compositor brasileiro.


Carlos Gomes e a renovação de perspectivas musicologicas: o descabelado e o selvagem


A discussão de Carlos Gomes no âmbito do projeto "Culturas Musicais da América Latina no século XIX" foi marcada pelo fato desse empreendimento, pelo seu iniciador e pelo seu título de natureza histórica, ter sido desenvolvido na área de Etnomusicologia.


Do ponto de vista da Musicologia Histórica - como refletido com Carl Dahlhaus (1928-1989) - uma obra como Il Guarany  surge como exponencial exemplo do Exotismo musical na Europa do século XIX. O estudo de Carlos Gomes segundo representações visuais da época, porém, trouxe à consciência que a sua aparência e atitudes foram vistas como sinais de incivilização, de selvageria, sendo êle próprio representado em caricaturas como indígena ou aborígene, sendo que essa imagem teria contribuido ao sucesso do Il Guarany e à sua aproximação e integração ao círculo dos intelectuais e artistas da Scapigliatura, também cabeludos e descabelados como êle.


O reconhecimento dessas relações contribuiram à solidificar a convicção de que apenas uma aproximação interdisciplinar, dirigida a estudos de processos culturais seria adequada ao estudo do compositor e sua obra. Nem uma aproximação exclusivamente histórico-musical, centralizada na concepção do exotismo, nem uma aproximação etnomusicológica convencional poderiam contribuir à análise diferenciada da problemática representada por Carlos Gomes. Esta última aproximação de etnomusicólogos revelava até mesmo questionáveis aproximações com intentos da Historiografia e do Folclore de cunho nacionalista do passado, procurando com afinco ou detectar um interesse do compositor pelo estudo de expressões populares do Brasil ou, através de análises, elementos de uma linguagem musical nacional brasileira na sua obra.


Carlos Gomes e os estudos da emigração/imigração italiana


Com o desenvolvimento dos estudos de emigrações e imigrações - tarefa precípua do programa euro-brasileiro já pelo fato de orientar-se segundo processos - , o papel desempenhado por Carlos  Gomes no contexto da emigração italiana de sua época e na colonia ítalo-brasileira de décadas posteriores passou a constituir alvo principal de atenções. Assim como em outros contextos - em particular aqueles da imigração alemã ao Brasil - os anelos de integração européia da segunda metade da década de 1970 e início de 80 trouxeram à consciência a necessidade de revisões e reorientações de referenciais.


Em simpósio internacional levado a efeito em 1983, tematizou-se a necessidade de condução desses estudos não a partir de configurações de fronteiras nacionais atuais que em geral não correspondem àquelas do século XIX, nem caindo em reduções quanto às dimensões continentais americanas de migrações transatlânticas. Também nas considerações da imigração italiana, reconheceu-se que o olhar deveria ser dirigido às transformações internas que modificaram a configuração política interna da Itália em direção à unificação em reino nacional: não projeções da Itália do presente no passado, mas sim a dinâmica interna no seu desenvolvimento temporal de criação do estado nacional deveria ser considerada na análise dos pressupostos culturais dos imigrantes nos países que os receberam.


O fato de Carlos Gomes ter vivido e atuado no norte da Itália, em regiões pré-alpinas próximas à Áustria e a regiões requisitadas pelos italianos e que seriam obtidas posteriormente com o desfecho da Primeira Guerra Mundial, traz á consciência que não poderia ter ficado à parte de anelos que desencadearam desenvolvimentos e que eram vivos naqueles de seu círculo de convivência.


Todo o cuidado de interpretações anacrônicas é aqui pouco. Carlos Gomes não foi personalidade da Primeira Guerra nem do período em que a ela se seguiu. A sua época foi aquela antes marcada pelos problemas sociais e pela miséria na Itália do liberalismo e do desenvolvimento fabril de grandes cidades - aqui em especial Milão -, principal fator da emigração italiana e que explica a participação de Carlos Gomes em iniciativas de beneficiência e assistência. (Veja) Ao contrário, o culto de sua memória e sua obra de décadas posteriores, na Itália e na colonia ítalo-brasileira, cai em outro período da história da Itália, aquela vitoriosa da Guerra, devendo ser estudado segundo outros critérios.


Carlos Gomes no Ano Europeu da Música de 1985


Carlos Gomes não poderia deixar de constituir objeto de particular atenção no "Ano Europeu da Música" de 1985, quando fundou-se o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS e.V.) como representação européia do Centro de Estudos em Musicologia fundado em São Paulo, em 1968. (Veja)


Como poucos músicos extra-europeus, o compositor brasileiro alcançou projeção na história da música européia, surgindo como um dos grandes nomes da música italiana do século XIX. Essa atenção às dimensões européias de Carlos Gomes foi favorecida pelo fato de comemorar-se, em 1986, os 150 anos de seu nascimento.


Em reuniões do ISMPS e de representantes latinoamericanos de projeto do ICM/UNESCO em Roma, na mesma data, salientou-se a oportunidade da efeméride para o prosseguimento de estudos e reflexões.


O ano de 1986 relembrou não apenas o seu nascimento em Campinas em 1836, mas sim também os 90 anos de seu falecimento em Belém, em 1896. Foi justamente esta última efeméride que foi particularmente considerada no "Ano Europeu da Música".


Retornando ao Brasil pouco antes de sua morte, escolhendo o Pará e não o seu estado natal, assumindo o cargo de direção de instituição de ensino que sempre desejara, essa volta de Carlos Gomes ao Brasil adquire particular relevância nas discussões relativas a seu patriotismo, brasilidade ou nacionalidade.


O caminho escolhido para considerar esse retorno foi, em prosseguimento dos estudos até então realizados, o da sua recepção em Belém e de sua memória e valorização no presente. Diferentemente de São Paulo, com a sua grande e influente comunidade ítalo-brasileira, a situação no Pará exige outras aproximações para ser adequadamente considerada. Por essa razão, considerou-se sobretudo posições, argumentações e iniciativas de pesquisadores, artistas e jornalistas locais nos anos de 1985 e 1986, em particular textos relativos à questão do nacional e do nacionalismo em Carlos Gomes. (Veja)


O Ano Carlos Gomes de 1986 e a sempre presente problemática nacionalista


Essa particular consideração das comemorações de Carlos Gomes em Belém em 1986 levou a que entrevistas realizadas no Pará e textos publicados na imprensa paraense fossem lidos e discutidos na Europa. Os temas alí tratados foram alvos de debates, nos quais se salientaram reflexões sobre os fatores psicológico-culturais, a imagem e a idealização do Grão Pará na Europa como explicativos da decisão do retorno final de Carlos Gomes ao Brasil. Merecedor de especial atenção foi constatar a reflexão, em Belém, dos problemas relativos às dificuldades historiográficas derivadas de perspectivas posteriores à sua época e à sua vida, inseridas em outros contextos político-culturais, ou seja, aquelas da historiografia nacionalista. (Veja)


Como excepcionalmente oportuno foi visto o fato de, em 1987, comemorar-se o centenário de nascimento de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), compositor que rivaliza com Carlos Gomes como principal compositor brasileiro e que tematiza como poucos o nacionalismo na música. Os trabalhos relativos a Carlos Gomes em 1886 foram assim compreendidos como uma ponte preparatória ao Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia que se realizou no Ano Villa Lobos em promoção da Sociedade Brasileira de Musicologia e com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.


Voltando à Scapigliatura em colóquio internacional pelos 450 anos de São Paulo


Por motivo dos 450 anos de São Paulo, em 2004, pesquisadores e estudantes de musicologia das universidades de Bonn e Colonia, preparados em cursos de História da Música em Contextos Globais, vieram a São Paulo para a realização de um colóquio internacional de estudos interculturais e no qual Carlos Gomes constituiu referencial.


As sessões na capital paulista, dedicadas a relações entre a lírica e o desenvolvimento urbano, assim como ao lirismo na leitura e compreensão da cidade, retomaram as discussões relativas à Scapigliatura milanesa nas suas ressonâncias no Brasil no Teatro Municipal. A essa sessão, seguiram-se reflexões que incluiram ato simbólico no monumento de Carlos Gomes que consideraram a vida póstuma de Carlos Gomes e sua obra, a sua interpretação celebrativa pela colonia ítalo-brasileira sob o signo de uma constelação internacional totalmente diversa daquela da época em que viveu e atuou.


Esse encontro de pesquisadores e universitários europeus perante o monumento de Carlos Gomes em São Paulo, em 2004, deu ensejo ao prosseguimento das discussões na Europa e em encontros no Brasil nos seguintes, em particular no seminário "Imigração e Estética" levado a efeito no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia em cooperação com a ABE/ISMPS, em 2006.


Visita à Villa Gomes em Maggianico/Lecco pelos 30 anos do "Ano Carlos Gomes"



Decorridos dez anos da sessão realizada no Teatro Municipal de São Paulo sob o signo da lira, assim como o ato homenagem a Carlos Gomes perante o seu monumento, surgiu como oportuno retomar o debate em 2016, uma vez que nele se transcorrem 50 anos da homenagem ao compositor em São Paulo (1966), dos 40 anos de viagem de estudos a Milão do programa euro-brasileiro (1976) e dos30 anos do Ano Carlos Gomes de 1986, no qual o compositor foi declarado oficialmente "patrono da música no Brasil".


Esse debate decorre agora à luz dos desenvolvimentos políticos atuais na Europa, marcados pelo revival do nacional e do nacionalismo.


Os trabalhos incluiram uma visita à Villa Gomes em Maggianico (Lecco), edifício que hoje abriga uma escola de música, o Civico Istituto musicale Giuseppe Zelioli. O seu diretor - Gianluca Cesana - expondo as razões da denominação de instituição instalada na antiga Villa Brasilia segundo o nome do organista de Lecco Giuseppe Zelioli (1880-1949) -, trouxe à consciência as diferenças existentes entre o universo de Carlos Gomes e aquele da restauração litúrgico-musical representado por Zelioli. (Veja)


Como é intento do Civico Istituto musicale dedicar-se com mais empenho ao estudo do compositor que continua sempre presente na vida de alunos e professores, coloca-se a tarefa de estudos mais aprofundados do espírito que marcou o espaço. Lembrou-se, nessas reflexões, que a consideração de Carlos Gomes no âmbito dos estudos de música sacra levantaram questões já há décadas, uma vez que, embora tenha-se formado na prática musical de igreja da sua cidade e composto obras sacro-musicais, não foi à música sacra que se dedicou e projetou.


Completando dados levantados pela pesquisa documental ou transmitidos pela literatura específica, considerou-se que a própria Villa Gomes, na sua arquitetura, no seu parque e na sua pintura interna podem oferecer importantes indícios do edifício de concepções e imagens em que se inscreveu Carlos Gomes e, assim, de sua orientação de pensamento e mesmo espiritual.


A maior evidência da existência de um complexo coerente de idéias e visões no universo de Carlos Gomes é o brasão no mosaico do piso de entrada da Villa e que necessariamente era visto por todos em que nela entravam.


O emblema, onde a esfera armilar da bandeira imperial brasileira é substituída por uma lira, possibilita leituras de sentidos que, embora múltiplas nas suas associações e implicações, manifestam uma lógica interna fundamentada em antigas tradições do pensamento simbólico. (Veja) A leitura de faixa ornamental de sua fachada, assim como de pinturas internas da Villa Gomes revelam porém outras relações imagológicas, desta vez não brasileiras, mas italianas: com a Divina Comedia de Dante Alighieri (1265-1321).


É na interação de sinais emblemáticos referentes ao Brasil e à Itália que se podem desenvolver análises do complexo de idéias e imagens condutoras do pensamento, da vida e da criação de Carlos Gomes, dos vínculos entre brasilianidade e italianidade. A análise da arquitetura, da pintura e das representações plásticas da Villa Gomes revela um papel central concedido à música através do motivo da lira, interpreta-o porém em sentido abrangente, que diz respeito a processos internos ao homem, ao progresso, à civilização e à cultura. (Veja)


Nesse edifício conceitual e de imagens da Villa Gomes inscreve-se também o seu parque, que deve ser entendido, com as árvores vindas do Brasil, não apenas no sentido superficial de sua designação como exemplo do exotismo no paisagismo, mas sim segundo imagens da floresta na Divina Comedia nas suas relações com florestas virgens do Brasil. (Veja)


A instalação da escola de música na Villa Gomes e os materiais que guarda remontam ao Ano Carlos Gomes de 1986, quando então revitalizou-se a memória do compositor brasileiro em solenidade realizada em Lecco e que, com conferência proferida por Gaspare Nello Vetro, tornou-se um marco das comemorações de Carlos Gomes na Itália e mesmo dos estudos relativos ao compositor em geral. (Veja) Significativo para a consideração de intercâmbios ítalo-brasileiros é a consideração de materiais vindos do Brasil e que documentam a recepção na Itália das iniciativas comemorativas em Campinas e um intercâmbio. (Veja)


A visita e os estudos da Villa Gomes não poderiam ser desenvolvidos adequadamente se não se considerasse a região em que se situa, a sua proximidade à Villa Ponchielli (Veja), a Lecco como cidade marcada pelo milanês Alessandro Manzoni (1785-1873) e, sobretudo, por Antonio Ghislanzoni (1824-1893), e ao lago de Como em geral.


Essa consideração da paisagem e da cultura locais permitem valorizar obras de Carlos Gomes tais como o Inno Alpino (Veja) e Sul Lago di Como - Regata. (Veja) Longe de serem exemplos de criações sem maior significado, circunstanciais ou de salão, essas obras testemunham concepções de alcance de alturas ou de objetivos a partir de esforços do homem que trabalha em si próprio e do dever de colocar o alcançado nas alturas a serviço da humanidade.


O espírito entusiasmado marcado pela vitória no alcance de fins, o coração inebriado e a visão ampla das alturas no sentido real ou figurado, deviam, pelo homem que desce, ser levado àqueles que se encontram em situação mais baixa, de necessidades ou desorientação. (Veja)


Nesses textos postos em música por Carlos Gomes revelam-se ideários políticos da época do liberalismo italiano, filosóficos e de condução de vida, do dever de benemerência em ações beneficientes, assistencials e no ensino, abrindo caminhos para a compreensão mais profunda da vida de Carlos Gomes, do seu empenho de ascensão e, tendo alcançado alturas, das suas ações beneficientes e, descendo metaforicamente à floresta, de sua vinda a Belém para dirigir o Conservatório.


É no universo filosófico-cultural de múltiplas implicações assim delineado que merece ser considerado Carlos Gomes que, sintomaticamente, foi maçom.


Transcedendo preocupações em detectar o nacional na sua linguagem musical segundo critérios e questionáveis essencializações posteriores, e longe das estreitezas de críticas e reinterpretações nacionalistas também posteriores, Carlos Gomes revela-se, de fato, como merecedor de ser considerado como o maior vulto brasileiro de músico por suas qualidades éticas, suas visões amplas do Humano, pelo seu empenho na formação e no esclarecimento, pelo seu decantar do amor e da liberdade.


Antonio Alexandre Bispo





Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“ Lombardia - Brasil. Europa supra-nacional e Europa de nações no debate atual em paralelos histórico-culturais. Do humano universal e do nacional em Antonio Carlos Gomes (1836-1896) “
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 161/01 (2016:03). http://revista.brasil-europa.eu/161/Lombardia_Brasil_Carlos_Gomes.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

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